Jornalismo
como construção:
Uma leitura das estratégias
na
cobertura da Copa do Mundo 2006
Por
Michele
Castilhos Gomes Amaral e Viviane Borelli*
Resumo
O
objetivo do artigo é mostrar
como o jornalismo se constitui num
lugar privilegiado de construção
da realidade social por meio de análise
da cobertura da Copa do Mundo 2006
pelo Jornal Nacional.
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Essa leitura foi feita através de
algumas técnicas da Análise
de Discursos e, para tal, foram criadas
categorias a partir de construção
teórica e observação
da agenda do JN. O trabalho
mostra que o telejornal mostra sua competência
em suas enunciações através
da constante auto-referencialidade durante
a realização do mundial. O
que se mostra é que a mídia
é uma protagonista singular que constrói
a própria noção de
realidade social.
Palavras-chave
[Jornalismo
/ Jornal Nacional / Copa do Mundo]
Introdução
Um
acontecimento esportivo como a Copa do Mundo
mobiliza uma série de estratégias
e ações distintas por parte
das mídias que procuram dar conta
de cobri-la sob diferentes aspectos. Durante
o mundial, os brasileiros vivem intensamente
seu lado torcedor e patriota via processos
de midiatização e, especificamente,
através de construções
jornalísticas.
Em
2006, a Copa do Mundo ocorreu na Alemanha,
de 9 de junho a 9 de julho, no mesmo país
no qual o Brasil venceu a final do mundial
anterior, tornando-se a única seleção
pentacampeã. Em função
disso e pela tradição que
o país tem no futebol, houve uma
grande expectativa em torno do desempenho
dos jogadores brasileiros para que a seleção
fosse hexacampeã.
Para
dar conta de mostrar esses vários
aspectos que dizem respeito ao esporte em
si, como o desempenho, a preparação
para os jogos, as táticas, as jogadas,
a técnica, e também a outros
fatores, como os bastidores, a paixão,
as relações entre os jogadores
e familiares, o contexto e historicidade
dos locais dos jogos, a expectativa de torcedores,
entre outros temas, as equipes jornalísticas
preparam-se durante muito tempo para conseguir
realizar o que idealizam como a 'melhor
cobertura'.
Como
a Rede Globo de Televisão tinha os
direitos exclusivos de transmissão
dos jogos, montou uma ampla estrutura para
alimentar os seus telejornais, especialmente
o Jornal Nacional (JN), o de maior audiência
no Brasil. Em 2006, o JN mobilizou seus
principais repórteres para cobrir
a Copa do Mundo, enviando para a Alemanha,
inclusive, um de seus âncoras, Fátima
Bernardes.
É
por meio de mediações específicas,
a tecno-interação (Sodré,
2002), que as mídias realizam o seu
trabalho de dar visibilidade, legitimidade
(Rodrigues, 2000) e promover diálogos
entre os campos sociais (Esteves, 1998).
O esporte [1] alimentou durante um mês
a agenda do JN que tematizou a Copa
do Mundo através de distintas estratégias
discursivas.
Para
dar conta de compreender como o telejornal
construiu sentidos acerca desse tema, utilizou-se
algumas técnicas da Análise
de Discursos (AD), que visa observar sua
enunciação em um certo contexto,
para empreender uma leitura sobre as chamadas
e escaladas [2] do JN no período
de 9 de junho a 9 de julho de 2006.
Jornalismo
como construção
Diferentemente
do que pressupunham algumas teorias da comunicação,
como do espelho e da informação,
o processo comunicativo é muito mais
que uma mera reprodução e
transmissão da realidade. Nesse sentido,
a atividade jornalística é
complexa e de produção de
sentidos, pois as ações são
realizadas por sujeitos e processos que
fazem com que o campo midiático não
seja um lugar de passagem, mas de operação
de sentidos, que se institui por transações
entre os campos sociais e seus atores.
Esse
trabalho de produção de sentidos
é orquestrado pelo estatuto da linguagem,
em que a atividade jornalística só
existe na medida em que é nomeada
e perpassada pela língua e códigos
lingüísticos, que, por si só,
não pode reproduzir a realidade,
mas construí-la.
Ao
ganharem existência pública
e visibilidade social, os fatos eleitos
para serem cobertos são transformados
em acontecimentos construídos no
interior do campo jornalístico, que
é marcado por tensões, negociações
e trocas simbólicas (Bourdieu, 1997),
complexificando as relações
entre os campos.
O
campo midiático e, especificamente
o que se refere ao jornalismo, ocupa um
lugar central [3] na mediação
da realidade, onde temas dos campos sociais
passam pelo processo de midiatização
(Verón, 1997), havendo cruzamentos
de interesses e negociações.
O
Jornal Nacional agenda o que está
sendo discutido sobre os temas da atualidade
a partir de construções próprias,
em que a centralidade que o campo midiático
ocupa na sociedade faz com que os temas
da atualidade passem, necessariamente, pela
sua agenda.
Além
de se constituir num dos principais dispositivos
de mediação, garantindo visibilidade
dos demais campos sociais, o campo midiático
é um dos principais dispositivos
instituidores do espaço público,
na medida em que a realidade não
só passa pelo campo midiático,
como também é construída
nele.
É
nesse sentido que os acontecimentos só
ganham existência pública a
partir da ação dos dispositivos
de mediação específica,
que os constroem via processos de enunciação.
"Os acontecimentos sociais não
são objetos que se encontram já
feitos em alguma parte da realidade e só
existem na medida em que esses meios os
elaboram", define Verón (1987:X).
Nessa
perspectiva, cada mídia produz o
seu próprio acontecimento, engendrando
uma noção particular de realidade,
pois o jornalismo se constitui num sistema
de codificação e produção
da realidade, de acordo com regras, rotinas
próprias e códigos inerentes
ao seu campo, que é um operador de
práticas, falas e sentidos que provêm
dos outros campos.
A
especificidade das mídias é
que, segundo Fausto Neto (1999), estruturam
e estruturam-se no espaço público,
atuam no espaço público através
de competências próprias, em
que o processo de visibilidade proporcionado
às diferentes falas passa por um
conjunto de "leis" e condições
de produção.
Além
disso, para o autor, os diferentes campos
sociais não dependem do midiático
para sua existência, mas encontram
nele visibilidade e uma instância
de legitimação, pois é
um articulador entre os campos sociais.
Esse
trabalho de construção se
faz sob determinadas condições
estabelecidas pelo campo midiático,
reunindo uma série de aspectos por
meio de 'contratos de leitura' (Verón,
2003), que são proposições
entre a mídia e seus leitores, representando
a forma como seus modos de dizer são
enunciados, regulando e conduzindo os sentidos.
A partir dessa proposição,
as construções midiáticas
resultam numa hierarquização
dos sentidos, pois são determinados
os modos de construção, os
lugares, a ordem e o tempo em que os temas
são publicados.
O
jornalismo é um dos lugares privilegiados,
como assinala Alsina (1989), para construção
da realidade, pois é o espaço
onde se produzem sentidos a partir dos fatos
ocorridos. Segundo conceito do autor, o
jornalista age sobre a realidade social,
na medida em que elabora e determina o que
merece ou não um status noticioso.
A notícia é "uma representação
social da realidade cotidiana produzida
institucionalmente que se manifesta na construção
de um mundo possível" (p. 18).
O
trabalho jornalístico se caracteriza
como um articulador, engendrador de uma
realidade, enfim, num produtor de sentidos.
Cada mídia produz o seu acontecimento
singular com base em metodologias próprias,
nas "pressões", nos discursos
de suas fontes, nos constrangimentos organizacionais,
da constituição e projeção
de seu público leitor, além
da cultura profissional de sua comunidade
jornalística (Traquina, 2005).
O
processo produtivo empreendido pelo jornalismo
é composto por etapas que vão
desde a produção nos bastidores
- relacionadas às técnicas,
processos e decisões do campo midiático
e suas organizações - passando
por outras ações, como a oferta
enunciativa do produto midiático
(enunciado), o discurso (enunciação),
a busca pelo reconhecimento junto ao receptor,
até chegar à recepção
e aos efeitos de sentidos.
A
partir disso, pelo imediatismo e factualidade
que orienta a construção do
jornalismo, a Copa do Mundo é publicizada
de forma intensa durante seu período
de realização. Mas também
se sabe que a ocorrência de alguns
acontecimentos noticiados neste período
são regidos por outros critérios
de noticiabilidade.
A
seleção do que será
noticiado se faz através dos critérios
de noticiabilidade e os valores-notícia
que a comunidade jornalística partilha,
de acordo com Traquina (2005:63) são
"o conjunto de critérios e operações
que fornecem a aptidão de merecer
um tratamento jornalístico, isto
é, possuir valor como notícia".
Os critérios noticiosos são
os valores, as características que
os acontecimentos possuem para que sejam
avaliados e transformados em notícias.
Além
da Copa do Mundo, o telejornal publiciza,
a partir de construções próprias,
outros temas. Essas construções
se fazem através da competência
discursiva que se realiza através
da enunciação jornalística
que se vale também da interdiscursividade.
Para Maingueneau (2000:28), "enunciar
no interior de uma formação
discursiva é, também, saber
como se posicionar com relação
às formações discursivas
concorrentes". Como marca presente
durante o mundial, a competência discursiva
torna-se uma constante nas construções.
Em
relação à especificidade
do telejornal, ressalta-se que ele é
construído a partir de várias
vozes que, de acordo com Fausto Neto (2002:503),
são "'vozes de dentro', 'vozes
de fora', 'vozes transversais', o telejornal
se fia em enquadramentos e em regimes de
discursos, não importa o tema de
referenciação". Essas
vozes fazem com que o telespectador construa
várias formas de reconhecimento,
por isso há uma busca do telejornal
em representar o maior número de
vozes possíveis para uma identificação
genérica.
Como
o telejornal busca alcançar o maior
número de telespectadores, necessita
de um "reconhecimento universal",
segundo expressão de Fausto Neto
(2002), para ter uma aceitação
de um público que é variado,
independente de suas experiências
e opiniões. A enunciação
do telejornal é feita a partir de
construções próprias,
por uma lógica midiática que
orienta a sua organização
de acordo com os valores-notícia
que determinam a noticiabilidade, como a
universalidade e a relevância para
que haja uma identificação
por parte da diversidade de telespectadores.
Na
seqüência, analisa-se de que
forma o Jornal Nacional se 'universaliza'
durante a Copa do Mundo através de
sua competência discursiva, característica
primordial no jornalismo, mas também
na sua competência como telejornal,
através de seu aparato técnico-significante.
Os
números da Copa do Mundo no Jornal Nacional
A
tematização dos assuntos a
serem abordados num telejornal é
um dos processos pelos quais o campo midiático
constrói a própria realidade
social. Durante a Copa do Mundo, o agendamento
do que seria debatido seguiu, especialmente,
os critérios da atualidade e do imediatismo,
tão freqüentes no jornalismo.
Porém, os números analisados
mostram que houve uma supervalorização
do mundial em detrimento de temas também
importantes para o país. [4]
O
interesse dos brasileiros pelo futebol é
evidenciado diariamente nas páginas
dos jornais, revistas especializadas e programas
de televisão. Porém, em época
de Copa do Mundo, esse sentimento se potencializa
e, sobre essa questão, Gastaldo (2002)
diz que o interesse do brasileiro pelo futebol
é pré-existente à competição,
mas a 'demanda social' durante sua realização
cresce e, vinculados ao caráter midiatizado
do evento, a produção e o
consumo de 'produtos' veiculados pela mídia
também aumentam.
A
mídia seleciona os assuntos que considera
mais importantes para serem publicizados.
Mesmo com outros temas disputantes durante
a realização do mundial, constata-se,
através de um levantamento quantitativo,
que a Copa do Mundo acabou tendo uma tematização
ampla, chegando a atingir 90% do conteúdo
do telejornal. Para justificar esses números,
se observa que pelo seu valor-notícia
principal, o imediatismo, a Copa do Mundo
foi destaque durante todo o mês de
sua realização.
Além
desse critério, existem outros elementos
que fazem com que o mundial seja noticiado,
um deles é o fato do jornalismo fazer
sua oferta pensando no seu receptor 'ideal',
neste caso um público apaixonado
pelo futebol.
A
partir da análise das escaladas,
as chamadas para as reportagens mais importantes
da edição e das cabeças
das matérias, que são as chamadas
para as reportagens que vêm na seqüência,
observou-se que 62% das matérias
das escaladas se referiam ao mundial. Do
dia 09/06 até o dia 01/07, 70% das
chamadas das escaladas, em média,
foram sobre o mundial.
Após
a derrota e saída da seleção
brasileira na Copa do Mundo, do dia 03/07
até dia 08/7, esse número
cai para 50%. A partir do dia 03/07, o Jornal Nacional deixa de ser apresentado no eixo
Brasil-Alemanha e volta a ser mostrado somente
no Brasil.
Em
uma média de 22 cabeças de
matéria por dia, 11 são sobre
Copa do Mundo, ou seja, 50% das chamadas.
Na maioria das edições, a
soma das matérias de outras editorias
não alcança as do mundial.
Até o dia 01/07, 65% das cabeças
de matérias eram sobre o mundial.
A partir do dia 03/07, com o formato modificado,
esta porcentagem cai para 40%.
Esses
números dão uma idéia
da relevância dada ao futebol no Jornal Nacional durante a Copa do Mundo e remetem
a um receptor apaixonado pelo futebol. Percebe-se
que por ser um país conhecido mundialmente
por esse esporte e pela Rede Globo ter exclusividade
na transmissão dos jogos do mundial,
o telejornal prioriza com ênfase esse
tema.
Segundo
Rodrigues (1998), a noticiabilidade é
uma característica fundamental que
garante aos acontecimentos uma configuração
narrativa para ser relatado no telejornal.
É por isso que a Copa do Mundo foi
amplamente mostrada, devido a sua visibilidade
e também à disponibilidade
da Rede Globo de mostrar o evento, já
que estava com uma ampla equipe no local
e transmitia os jogos com exclusividade
no Brasil. Durante um mês, houve uma
intensa divulgação do evento,
sendo que a maioria das matérias
estava relacionada à seleção
brasileira.
Além
da noticiabilidade e do imediatismo da Copa
do Mundo, outro critério noticioso
usado para a tematização das
notícias é a notoriedade,
pois tanto os jogadores quanto os próprios
repórteres da emissora tornam-se
atores do evento. A importância dos
jogos fica evidente nas estratégias
discursivas que o Jornal Nacional utiliza
durante o mundial, que foram estudadas a
partir de algumas técnicas da AD
e serão descritas a seguir.
Enunciação:
a competência discursiva do JN
A
partir do corpus, criaram-se algumas categorias
que foram nomeadas através da recorrência
e incidência de características
utilizadas pelo telejornal durante a cobertura
do mundial. O campo midiático tem
a legitimidade de enunciar as vozes dos
outros campos, proporcionando um estabelecimento
de uma ordem social, imposta pelos demais.
A competência discursiva é
uma capacidade legitimada do campo midiático,
que tem autoridade para falar dos temas
dos outros campos sociais (Esteves, 1998;
Rodrigues, 2000).
A
competência discursiva (ou comunicativa),
segundo Maingueneau (2000), é a aptidão
que o enunciador tem para produzir enunciados
que dependem de uma formação
discursiva determinada. Neste caso, o JN,
que representa parte do campo midiático,
por suas características e regras
de funcionamento dá visibilidade
aos demais campos, legitimando seus discursos.
Pela sua centralidade, nos termos de Verón
(1997), o campo midiático tem competência
para falar de temas relativos ao campo esportivo,
especificamente, da Copa do Mundo.
O
que se observa é que o Jornal Nacional
não só possui competência
discursiva, mas também mostra através
de seus processos de enunciação
que tem capacidade única de cobrir
esse grande evento. Além da publicização
de matérias referentes aos jogos
e ao evento em si, também foram produzidas
reportagens que exploravam temas paralelos
ao acontecimento, como informações
de familiares dos jogadores, curiosidades
sobre cidades da Alemanha, diversidade de
idiomas, a movimentação dos
torcedores, peculiaridades dos moradores
do local, entre outros aspectos.
Na
seqüência, detalha-se a análise
dessas diferentes estratégias.
Bastidores:
o mundial fora de campo
Nesta
categoria, evidencia-se a estratégia
de criar outros fatos para serem publicizados
além dos acontecimentos diretamente
ligados à competição
em si. A tematização desses
temas paralelos denota que além de
mostrar fatos referentes à Copa,
o Jornal Nacional também cria fatos
não relacionados diretamente à
competição.
Durante
a cobertura, a equipe do telejornal esteve
na Alemanha nos lugares os quais as partidas
do mundial foram realizadas e onde estavam
as principais seleções do
mundial. O que se percebe é que o
JN, pela exclusividade de transmissão
dos jogos no Brasil, possui certa familiaridade
com a seleção brasileira,
hospedando-se, muitas vezes, nos mesmos
lugares onde a seleção está.
"Hoje, fui conversar com os
jogadores para saber quem sofre mais: eles
ou nós, torcedores?" (09/06/06
- JN).
O
telejornal passa para seus telespectadores
que tem intimidade com os jogadores da seleção
brasileira, pois "conversa" com
os jogadores.
Além dessa familiaridade, o telejornal
enfatiza que está em "todos"
os lugares em que a seleção
se encontra: "Vamos ver como o Capitão
Cafu reagiu lá da Alemanha (...).
O repórter Mauro Naves acompanhou
a visita da nossa equipe ao Estádio
Olímpico." (12/06/06 - JN);
"O repórter Marcos Uchôa
foi conferir o treino da Croácia,
os adversários do Brasil na estréia
de terça-feira" (10/06/06 -
JN).
A
visibilidade dada ao mundial pelo JN
mostra os cruzamentos de interesse e as
negociações dos campos sociais,
pois não só publiciza temas
relativos aos jogos, como também
aos atores de forma familiar: "Mas
nossos atletas, de tão concentrados,
nem tiveram chance de preparar uma surpresa
para as mulheres ou namoradas. Então
decidi dar uma ajudazinha" (12/06/06
- JN). Nota-se que há uma
relação de troca, pois enquanto
o telejornal realiza entrevistas exclusivas,
os jogadores mandam recados para seus familiares,
evidenciando as negociações
entre os agentes dos campos.
O
que se observa é que para corresponder
ao interesse dos brasileiros pela Copa do
Mundo, o telejornal cria matérias
em torno de tudo o que ocorre durante a
realização do mundial, numa
espécie de preenchimento de espaço
do telejornal, destacando a competição
de várias formas e sob distintos
ângulos e abordagens.
Fica
evidente que a competência discursiva
do telejornal anda junto à capacidade
técnica, pois o aparato técnico
significante do JN está em
todos os lugares e tem exclusividade de
imagens: "de um jeito que você
ainda viu [...] captadas por câmeras
exclusivas em ângulos inéditos.
Um show de imagens apresentado por Pedro
Bial". Reconhece-se no JN
a competência de estar ao vivo no
local do acontecimento, com exclusividade
e ineditismo, mostrando que os jornalistas
buscam o "furo" de reportagem,
matérias com algum enquadramento
inédito.
O
"furo" é o que o JN tanto
remete durante a Copa, o estar presente,
o ao vivo, e ter capacidade de mostrar imagens
inéditas e exclusivas para confirmar
essa competência de que faz "o
melhor" para seus telespectadores.
Quando
diz que está presente no local, que
os repórteres conseguem imagens inéditas
e entrevistas exclusivas, o JN está
se auto-referindo e dizendo que é
capaz de fazer a melhor cobertura para que
o público saiba através da
emissora o que acontece no local e também
nos seus entornos.
Jogo:
uma partida dentro da tela
Para
evidenciar que o Jornal Nacional está
presente na cobertura dos jogos, algumas
estratégias remetem à exclusividade,
competência e onipresença que
a emissora e seus telejornais possuem em
muitas matérias, fazendo uma auto-referência
a repórteres e ao próprio
trabalho do Jornal Nacional.
Essa
categoria se refere aos temas ligados diretamente
aos jogos do mundial e é através
de uma série de estratégias
que a equipe do telejornal mostra que está
em todos os jogos, mostrando tudo o que
acontece na competição: "Nossos
repórteres mostram tudo
sobre o jogo em Berlim" (13/06/06 -
JN); "E é ao vivo,
da Alemanha, que Fátima Bernardes
traz todas as informações"
(09/06/06 - JN). A impressão
que se tem é que os telespectadores
só saberão o que acontece
na Copa do Mundo se assistirem ao telejornal,
já que os repórteres levam
todas as informações, muitas
vezes, ao vivo e exclusivamente para quem
assiste, "E você vai ver também,
imagens inéditas da vitória
do Brasil" (14/06/06 - JN).
Essa
onipresença do telejornal e sua equipe
no mundial evidencia que cada mídia
produz seu próprio acontecimento
sob sua ótica e suas próprias
angulações, com uma visão
particular da realidade: "Mas o repórter
Pedro Bial identificou, hoje, um lance
fundamental no jogo, e não foi
nem uma defesa, nem um gol" (13/06/06
- JN). O enunciado denota essa construção
da realidade já que o repórter
é um especialista capaz de mostrar
ao telespectador um fato importante do acontecimento.
Outra
forma de demonstrar a competência
do telejornal é auto-referir-se:
"Nós já mostramos,
aqui no Jornal Nacional" (20/06/06
- JN), afirmando que algum fato já
foi tematizado e está sendo retomado.
Durante o mundial, o JN faz uma auto-referência
constante, seja a seus repórteres
ou a sua presença na Alemanha, em
que esta auto-referencialidade é
também uma estratégia para
criar vínculos com os telespectadores.
O
JN se auto-refere a partir de marcas que
remetem a sua presença no local do
acontecimento. Essa constante fala de si
mesmo evidencia não só a capacidade
técnica e discursiva de sua equipe
no evento, mas também a necessidade
de mostrar ao telespectador que está
apto para conseguir todas as informações.
A
constante enunciação da onipresença
do telejornal mostra que "nada escapa"
dos repórteres e câmeras e
denota que eles são capazes de estar
em todos os lugares do acontecimento.
Retomando
um conceito explicitado, de que os campos
sociais não dependem do campo midiático
para existir, mas encontram nele a visibilidade
necessária para legitimar-se, durante
a Copa do Mundo o que se percebe é
que a competição se tornou
um acontecimento para ser midiatizado. A
presença da mídia garante
um outro status à Copa, que precisa
dos processos midiáticos não
apenas para ter visibilidade junto aos amantes
do futebol, mas também como garantia
de existência e de legitimidade social.
Contexto:
localizando o telespectador
Outra
estratégia utilizada pelo Jornal Nacional durante a Copa do Mundo foi a de
"localizar" os telespectadores
na Alemanha através da referência
a elementos mais contextuais. Essa é
uma forma de evidenciar que o telejornal
está presente no local do acontecimento
e também que está lá
no lugar dos telespectadores que não
puderam ir para acompanhar o mundial.
Muitas
vezes, descreve-se com detalhes os locais
para confirmar a presença dos repórteres
no mundial (e sua competência) como
uma espécie de "viagem ao país
sede da Copa do Mundo", onde o JN situa
os telespectadores, informando sobre a temperatura,
horário e cidades do país.
Referente a esse aspecto de localização,
foi inclusive criado um jargão que
remete à âncora do telejornal:
"Onde está você, Fátima?".
O jargão foi criado na Copa de 2002
e, em 2006, foi ainda mais popularizado.
Uma
estratégia importante que demonstra
credibilidade ao telespectador é
a proximidade que os repórteres demonstram
com a seleção brasileira,
estando, algumas vezes, nos mesmos locais
de hospedagem: "Boa noite, eu queria
saber o seguinte, você ontem disse
que ia viajar hoje para Munique.
Mas,
Munique é uma cidade grande. Onde
está você? (William Bonner).
"No
hotel em que a seleção brasileira
está hospedada, fica há
uns 3 a 4 quilômetros do Centro Histórico
da Cidade" (Fátima Bernardes,
16/06/06 - JN).
Além
da proximidade com a seleção
brasileira, também há uma
"visita" aos principais pontos
turísticos da Alemanha, "Hoje,
estou no marco histórico e lindíssimo
da reunificação das Alemanhas,
o Portão de Brandemburgo, em Berlim.
Deste lado, era a parte Oriental
e atrás do Portão ficava a
parte Ocidental do país" (13/06/06
- JN). Há um detalhamento
sobre os marcos históricos do país,
de seu povo, evidenciando os desdobramentos
que o telejornal faz para preencher sua
agenda e mostrar os vários assuntos
criados junto ao mundial.
Como
membros participantes do evento, os jornalistas
acabam, muitas vezes, tornando-se "atores-testemunhas-protagonistas",
segundo expressão de Fausto Neto
(2006), uma vez que são referências
e, por meio de construções
próprias, mostram o que é
realizado durante a cobertura de um acontecimento.
Os repórteres são parte do
evento, integrando-o; eles dão visibilidade
e tornam público o que acontece,
sendo protagonistas.
As
múltiplas vozes do telejornal
O
telejornal é plural, pois expressa
várias vozes através de um
discurso próprio. Às vezes,
evidencia quem fala e, em outras, fala em
nome dos outros campos: "Mas, ainda
assim, milhões de torcedores têm
certeza de que, de alguma forma, eles também
podem influenciar o resultado de amanhã"
(12/06/06 - JN); "Para o
técnico Parreira, a vitória
de hoje foi um ótimo resultado, mas
a seleção ainda vai crescer
ao longo da Copa" (13/06/06 - JN).
Seja pelos torcedores, ou pelo técnico
da seleção brasileira, o discurso
do JN é construído
através de vozes dos outros campos,
mas a partir de suas próprias regras
e seus posicionamentos ('a seleção
ainda vai crescer').
A
diversidade e a universalidade são
mostradas nesta categoria, já que
as várias vozes dos campos sociais
são representadas através
do campo midiático. Em alguns casos,
o JN faz uma referência a outras
mídias, "a alegria enorme da
imprensa internacional" (14/06/06
- JN) e "jornalistas do mundo
todo fizeram a mesma pergunta"
(15/06/06 - JN).
O
telejornal é um observador atento
que publiciza o que os outros campos enunciam,
o que as outras mídias falam a respeito
da Copa do Mundo e das seleções,
principalmente, a brasileira. Essa forma
de enunciar mostra que o telejornal, além
de suas próprias construções,
manifesta a opinião das outras mídias,
evidenciando, novamente, sua competência
para mostrar não só o que
ocorre no país do mundial, mas também
a repercussão em todo o mundo.
Considerações
finais
Através
da leitura de algumas estratégias
discursivas, se observa que o Jornal Nacional
cria o 'seu acontecimento', mostrando através
de seu olhar e, portanto, construções
próprias a Copa do Mundo. Isso inclui
não só os participantes diretos
do evento, como jogadores, técnicos
ou torcida, mas também os próprios
repórteres do telejornal, que fazem
parte do acontecimento e são também
protagonistas do mundial.
O
campo midiático é um produtor
de sentidos e, como tal, a partir de regras
próprias constrói os temas
da atualidade, como a Copa do Mundo.
Na
medida em que agenda assuntos para serem
postos em discussão na agenda pública,
a mídia não só ele
age sobre a realidade social como também
constrói a própria noção
de realidade.
O
que se observa é que dois campos
sociais diferentes que operam a partir de
lógicas distintas, o midiático
e o esportivo, negociaram trocas.
Da
mesma forma que a mídia se 'alimentou'
dos temas da Copa e de seus atores, proporcionou
visibilidade e legitimou o mundial enquanto
acontecimento. Essas negociações
mostram que a mídia constrói
sua realidade através de informações
que negocia com os mais diversos campos
sociais.
Como
evento importante para os brasileiros, a
Copa do Mundo mobiliza um país de
forma significativa e a mídia, especificamente
o Jornal Nacional, publiciza intensamente
o tema durante sua realização.
Idealizando o receptor "ideal",
o telejornal desdobra o evento, mostrando
e criando vários temas, quando, muitas
vezes, torna-se o ator principal do acontecimento,
já que, segundo o próprio
telejornal, o JN mostrou "tudo"
sobre a Copa.
Analisando
as estratégias discursivas do Jornal Nacional durante o mundial, observa-se que
em vários momentos, o telejornal
anuncia através de auto-referencialidades
que é competente e onipresente. A
análise mostra que a mídia
é não só um observador
privilegiado do acontecimento, como também
um ator que o constitui.
Notas
[1]
Sobre a especificidade das relações
entre mídia e esporte, desenvolveu-se
o estudo: BORELLI, Viviane. "A midiatização
do esporte: leitura das estratégias
discursivas da cobertura jornalística
da Olimpíada de Sydney (2000)".
Dissertação de mestrado desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação
em Ciência do Movimento Humano, Área
de Concentração em Comunicação
e Mídia, da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM/RS), 2002.
[2]
Veiculadas no início do telejornal,
as escaladas são as frases de impacto
ou manchetes.
[3]
A partir do esquema da semiose da midiatização,
desenvolvido por Verón (1997), concebe-se
que no processo de produção
do acontecimento deve-se levar em conta
a relação das mídias
com os campos, as instituições
da sociedade; a relação das
mídias com os atores individuais;
a relação das instituições
com os atores e a maneira com que as mídias
afetam a relação entre as
instituições e os atores.
[4]
Essa problemática foi desenvolvida
em profundidade no Trabalho Final de Graduação
(TFG), intitulado "Eleições
Presidenciais e Copa do Mundo 2006: uma
análise das estratégias discursivas
do Jornal Nacional", que foi desenvolvido
em 2006, como requisito para conclusão
do curso de Comunicação Social
- Jornalismo da Unifra.
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*Michele
Castilhos Gomes Amaral é graduada
em Comunicação Social - Jornalismo
e Especializanda em Projetos de Mídia
pelo Centro Universitário Franciscano
(Unifra). Viviane Borelli é doutora
em Ciências da Comunicação
pela Unisinos e professora do curso de Comunicação
Social - Jornalismo do Centro Universitário
Franciscano (Unifra).
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