Impressões
do Japão:
Relatos de dois professores-convidados
PARTE
2: Irashaimassê!
Por Fernanda
Torres Magalhães

Fig.
1: Jovem
universitaria em Gion. Foto: A.
Avancini.
Irashaimassê!
Irashaimassê!
Essa
é uma das primeiras palavras que
se ouve assim que se chega ao Japão.
Num alto-falante, numa gravação
com uma aguda voz feminina.
Bem-vindo.
Cheguei
ao Japão, mais especificamente na
província de Osaka, no final de março
de 2003. Depois de cruzar o mapa mundi
e acompanhar pela telinha da aeronave
o nosso deslocamento interminável,
aterrissamos quase 26 horas depois de deixar
o aeroporto internacional de Guarulhos.
Confusão geral, confusão mental.
Num primeiro momento, o Japão agride.
Muitos sons, cores, uma língua indecifrável
que se funde em letreiros e imagens coloridas.
Pessoas vestidas de maneira uniforme e que
estão sempre apressadas. Acredito
que os japoneses sejam os mais rápidos
ao fazer um desembarque, pois mal o avião
toca o solo, e lá estão eles
retirando suas maletas do compartimento
de bagagem. Sim, o Japão tem pressa.
Fui
convidada pela Universidade de Estudos Estrangeiros
de Osaka para ocupar a cadeira de "foreign
teacher", onde seria responsável
em ministrar cursos sobre "História
e Cultura Brasileira". Detalhe importante:
em Língua Portuguesa. Em princípio,
parecia uma tarefa fácil, visto que
tinha formação acadêmica
em História, com um Mestrado recém
concluído - ambos na Universidade
de São Paulo - e alguma experiência
em sala de aula. Aceitei o desafio, que
se apresentaria em várias vertentes,
entre elas, ensinar para estrangeiros e
viver em um país com diferenças
significantes.
Até
então meu contato com a cultura japonesa
se limitava ao que a maioria das pessoas
tem acesso, seja no Brasil ou em qualquer
outro lugar. Filmes de Akira Kurosawa e
muitas imagens-símbolos - tais como
o país afetado por uma bomba atômica,
dos grandes guerreiros, da culinária
sofisticada, do zen-budismo, entre outros
- que são largamente divulgadas pelos
diversos meios de comunicação.
Acreditava
que o contato, mesmo que mínimo,
com a cultura e comunidade japonesa da cidade
de São Paulo, serviria como uma espécie
de "estágio" para quando
aqui chegasse. Mas o traço cultural
que presenciamos no Brasil é uma
herança dos imigrantes, uma cultura
que para os próprios japoneses soa
"estranha", parada no tempo. A
cultura japonesa no Brasil passou por um
processo de transformação
necessária para sua própria
sobrevivência. Ela se fundiu com a
nossa cultura local, apesar da força
da tradição japonesa.
Os
primeiros momentos no Japão são
árduos. Física e psicologicamente.
O seu corpo sente a diferença de
fuso horário, deixando-o atordoado
por uns bons dias. Noites e dias trocados,
e ainda tem que se acostumar com o fato
de ter seu calendário adiantado.
No começo essa é a palavra
mágica para seu estágio aqui:
acostumar-se. E nesse processo de adaptação,
muitas gafes são cometidas e perdoadas
pelo olhar benevolente japonês, que
te encara com aquela expressão de
compreensão. Sim, um gaijin
pode errar, dentro claro, dos limites sutilmente
impostos.
Era
chegado o momento de conhecer meu local
de trabalho. Diante de cerca de 30 alunos
do 3o ano do Departamento de Língua
Portuguesa, dei minha primeira aula. Eram
jovens curiosos em conhecer a nova professora
brasileira. Discurso por cerca de uma hora,
explicando detalhadamente a ementa do curso.
Fixei meu programa em História do
Brasil Contemporâneo, desde a ditadura
do Estado Novo à ditadura militar,
enfatizando os aspectos políticos
e sociais.
Os
olhares impassíveis dos alunos não
me diziam nada. Havia ali uma barreira que
precisava descobrir qual era. Na semana
seguinte, no mesmo horário, voltei
à sala de aula. Dessa vez o público
havia se reduzido a apenas dez participantes.
Fui tomada por uma espécie de frustração,
afinal, acreditamos na importância
da primeira impressão, e tive a sensação
de que a minha proposta não tinha
despertado interesse nos alunos. Sensação
nada agradável para um recém-chegado.
Conversando
com uma colega de Departamento, descobri
que a razão do ocorrido foi que os
alunos acharam a disciplina complicada.
Havia uma lacuna na formação
desses estudantes, afinal não era
um curso de graduação em História
e ainda com um outro agravante que acredito
ter sido mais relevante na desistência
dos alunos: o vocabulário acadêmico,
misturado com a velocidade de falante nativa,
assustaram muitos que não conseguiram
sequer ter um entendimento efetivo da ementa.
E assim tive que me adaptar.
O
primeiro ano, obviamente, foi o mais difícil.
Passei por um processo de reaprendizado
da minha própria língua, buscando
sinônimos todo o tempo.
Falar
com estrangeiros faz com que você
se comunique numa linguagem mais amena.
E tive que mudar meu prisma de como seria
ensinar algo sobre o Brasil que fosse ao
mesmo tempo interessante e que não
soasse tão hermético para
os jovens japoneses.
Ser
professor em terras estrangeiras não
seria tão fácil como imaginava.
A questão crucial que se colocava
era como abordar aspectos da nossa cultura
e história que não soassem
tão distantes para eles, e ao mesmo
tempo, queria evitar os lugares-comuns.
Foi um aprendizado crucial para mim, como
educadora, criar um programa de ensino que
fosse acessível, interessante e diversificado.
Um
desafio e tanto: abordar e discutir a sua
própria cultura com estrangeiros,
especialmente uma tão diversa como
a brasileira. Acredito que seja por causa
da força da cultura que o nativo
carrega que as universidades invistam na
contratação dos estrangeiros.
O fato de não ser japonesa já
é uma aula para eles. O estrangeiro
é a diferença, em carne e
osso. A postura, o modo de se vestir, a
maneira de falar, até o fato de você
olhar nos olhos do seu interlocutor é
um aspecto cultural, que pode ser entendida
de outra forma em outros lugares.
No
segundo ano de Japão, e com três
cursos para alunos de 3o e 4o
anos, descobri uma oportunidade única
de apresentar aspectos da cultura brasileira,
muito além dos clichês por
aqui largamente divulgados. Carnaval, futebol,
samba e Amazônia eram temas por demais
explorados. E nem é preciso lembrar
que o Brasil é muito mais do que
isso.
Elaborei
três disciplinas: História
de São Paulo, História da
Fotografia Brasileira e História
da Música Brasileira. Tive bons resultados
e graças à tecnologia do mundo
virtual, pude utilizar de recursos audiovisuais
tão importantes para suprimir a distância
entre os dois países. Falar sobre
a música do Nordeste e dissipar algumas
idéias pré-estabelecidas,
[1] fez valer o esforço de abordar
um assunto que sempre me interessou mas
que não era especialista. As leituras
de José RamosTinhorão [2]
foram primordiais. Aspectos da cultura popular
estão vivos em nossa música,
um dos nossos bens mais preciosos. Choro,
festivais da música brasileira, geração
roqueira dos anos 90, e hip hop foram
também abordados.
São
Paulo como tema de um curso também
foi de uma riqueza imensa. Graças
ao aniversário de 450 anos da cidade,
muita coisa se produziu e material didático
para as aulas foram abundantes. Mostrar
aspectos de uma metrópole como São
Paulo, cidade dos "mil povos",
foi interessante e intenso. São Paulo
pulsa, vibra, tem problemas - como qualquer
outra megalópole -, com o adendo
dos seus aspectos particulares: cidade de
imigrantes, trabalho, cultura, indústria
e produção intelectual.
Mas,
dentre esses três cursos, o que particularmente
apresentou resultados mais diversos e estimulantes
foi o que versava sobre a fotografia brasileira.
Acreditava que a paixão pela fotografia
era uma espécie de lugar comum entre
os japoneses. Ledo engano. A fotografia
no Japão parece exercer uma única
função social: registrar o
"isto foi", ou o "estive
aqui". As máquinas modernas,
sofisticadas, a ampla tecnologia digital
parece que são apenas para exportação.
Muitos alunos nem possuem uma simples câmera
fotográfica. As imagens que fazem
são feitas pelas minúsculas
lentes dos telefones celulares, esses sim
de extrema popularidade entre os jovens.
A
singularidade do curso foi um duplo desafio.
Para mim, entender o significado da fotografia
para os jovens alunos. Para eles, aprenderem
de alguma forma a "lerem" as imagens
que nos bombardeiam a todo instante. E claro,
quando abordamos qualquer arte não
temos como deixar de falar do que está
intrínseco a ela: a emoção.
Toda fotografia é feita por alguma
motivação. O fotógrafo
é movido por uma emoção,
um ímpeto de "materializar"
aquilo que acha digno de registro. Muitas
vezes, falar de emoção para
os japoneses é um risco.
A
aparente frieza e inexistência de
sentimento fazem parte da sua cultura, estão
acostumados a não demonstrarem o
que carregam na sua "anima". Mas,
isso é apenas questão de trabalhar,
de adquirir a confiança e lá
estão eles, devagarinho, se abrindo,
se mostrando emotivamente.
A
aula se dividia em duas partes. A primeira
sobre a história em si da fotografia,
onde lemos trechos de textos de Roland Barthes
e Susan Sontag. [3]. Também apresentava
fotografias de periódicos brasileiros,
[4] que serviram de instrumental para as
aulas. A segunda parte, era destinada à
criação. A cada semana era
sugerido um tema, onde eles próprios
tinham que produzir imagens [5] que tivessem
alguma relação com o assunto
a ser abordado. E assim, a cada sessão
os alunos eram responsáveis em apresentar
suas fotografias - exibidas em "powerpoint"
previamente por mim preparadas - e falar
sobre a emoção, a motivação
por ter registrado o que ali se apresentava.
No
final, o curso assumiu um papel imprevisível.
Aproximou os alunos entre si, além
de ter sido um espaço onde possibilitou
a eles exporem muito mais do que suas imagens.
O jovem é como qualquer outro, independente
do país ou cultura. Com medos, expectativas
e acima de tudo, com emoções.
Mesmo que não estejam tão
à flor da pele.
Notas
[1]
De um modo geral, quando se fala em samba,
a imagem que se tem é o do Samba
Enredo Carnavalesco, com seu ritmo rápido
e contagiante. Outra idéia estabelecida
é a da Bossa Nova como rainha
soberana no cenário musical brasileiro.
No Japão, a Bossa Nova é
bastante difundida, podendo-se ouvi-la com
freqüência em restaurantes e
cafés. A música brasileira
então se resume a: Samba de Carnaval
e Bossa Nova.
[2]
TINHORÃO, J. R. História
Social da Música Popular Brasileira.
São Paulo: Editora 34, 1998.
[3]
BARTHES, R. A Câmara Clara.
Lisboa: Edições 70, 1989.
[4]
SONTAG, S. Ensaios sobre a fotografia.
Rio de Janeiro: Arbor, 1981.
[5]
Foram utilizadas imagens extraídas
da revista Veja, que a biblioteca
da Universidade adquire, e do jornal Folha
de S.Paulo, na versão online.
*Fernanda
Torres Magalhães é mestre
em História Social pela Universidade
de São Paulo.
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