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Resenhas


Uma narrativa sobre o campo

Por Richard Romancini

É possível dizer que o livro História do pensamento comunicacional (Paulus, 2003) do professor e pesquisador José Marques de Melo possui uma característica muito peculiar: é uma proposta de narrativa histórica sobre a área feita, justamente, por um dos principais agentes do campo. Com efeito, pioneiro dos estudos em comunicação brasileiros, Marques de Melo esteve presente em alguns dos momentos definidores do perfil do que é hoje a comunidade acadêmica em comunicação no país (fundação dos programas de pós-graduação da ECA e UMESP, criação da INTERCOM, por exemplo).

Em outros termos, a narrativa sobre a história do campo - que embute, é claro, concepções sobre a natureza do mesmo - é feita "de dentro". Chega mesmo a transparecer, em algumas passagens do livro, como nos relatos de pesquisa ao qual o autor tem se dedicado, um componente de processo vivo. Dado ao qual se agrega, numa apreciação do conjunto do trabalho, uma firme necessidade de fazer, consolidar, socializar resultados aos demais pesquisadores, que é, conforme se verifica pela própria trajetória de Marques de Melo, também típica do autor.

Portanto, não é estranho que o livro possua ainda o tom de um depoimento, memória de um pioneiro que tenta entrever ou apontar predecessores e continuadores. Nesse ponto é que se encontra, creio, o forte enfoque sistematizador da perspectiva da História do pensamento comunicacional proposta e de muitas das iniciativas de investigação atuais do autor.

Vindo de uma geração que, por assim dizer, tinha todo um campo de conhecimento a construir, e que, ao longo do tempo, logra notar a institucionalização, legitimação e crescimento do mesmo, o autor assume a tarefa de historiar este processo. Propõe uma sistematização, que envolve certa periodização e o destaque a personagens e eventos, dentro de um marco cronológico que prepara uma síntese. Pretendo, a seguir, retomar este ponto. Antes, porém, vale a pena descrever com maior pormenor o conteúdo do livro.

Nesse sentido, vale notar como a "dupla motivação" que o autor afirma animar o livro encaminha sua narrativa sobre o campo para determinadas escolhas. "Em primeiro lugar", diz Marques de Melo, o livro "pretende fortalecer a auto-estima daquela corrente que não se sente inferiorizada pelas tradições intelectuais forâneas, irrigando e cultivando as raízes mestiças que sustentam o nosso pensamento comunicacional, seja na vertente luso-brasileira, seja na confluência latino-americana" (p. 10, grifo nosso).

De outro lado, o autor afirma que procura "oferecer aos estudantes e professores de nossas universidades evidências históricas codificadas, suscetíveis de fazê-los superar os impasses teóricos com que se defrontam, e, dessa maneira, enveredarem por caminhos metodologicamente capazes de conduzir alternativas comunicacionais sincronizadas com as demandas coletivas de nossa sociedade" (p. 10-11).

Ainda que o conjunto de papers que dá forma ao volume aborde de modo inter-relacionado estas preocupações, é possível apontar como cada uma delas justifica determinadas angulações da narrativa.

A formação de um pensamento "mestiço"

A primeira motivação pode ser resumida na tentativa de demonstrar como um campo de conhecimento sobre a comunicação tem sido construído no Brasil e na América Latina, incorporando reflexões de outros espaços e tomando parte no debate internacional, com uma fisionomia própria, "mestiça". É este caráter ao mesmo tempo autônomo, vinculado a problemas específicos de uma região, que aporta uma contribuição própria, mas sem desvincular-se do panorama internacional da investigação, que recebe o elogio do autor. Demonstrar as "raízes" do pensamento local, de onde ele parte, por si só, é uma tarefa que pode estimular os novos pesquisadores e servir como uma prova de auto-afirmação do grupo acadêmico.

Para comprovar a consolidação da nova área, o livro terá com um dos eixos - que atravessa as duas partes em que se divide o volume, "Cenários" e "Personagens" - o inventário das contribuições e a descrição de trabalhos de investigadores e instituições de pesquisa brasileiras (casos de Luiz Beltrão, da INTERCOM e grupos de pesquisa regionais, por exemplo), latino-americanas e do espaço luso-brasileiro e norte-americano (casos de Ramiro Beltrán, Martín Barbero, Raymond Nixon, Elihu Katz, os estudos pioneiros do funcionalismo norte-americano, entre outros).

Este aspecto mostra bem - ao evidenciar os fluxos de idéias, o constante fortalecimento de intercâmbios de mão-dupla (característicos principalmente da fase mais amadurecido do campo), a acumulação de um estoque de conhecimento (ainda que por vezes disperso ou esquecido) - a emergência da comunidade científica autóctone. E mais que isso: como o grupo local de pesquisadores estabelece com o pensamento estrangeiro uma relação de diálogo e mesmo, principalmente no caso da chamada Escola Latino-Americana de Comunicação, construção coletiva. Esta corrente de pensamento teria já conseguido caracterizar-se em termos próprios, possuindo como marca distintiva, de acordo com Marques de Melo, "o hibridismo teórico e a superposição metodológica, plasmando uma singular investigação mestiça, representativa da fisionomia cultural latino-americana" (p. 40).

Não há xenofobia, nem arrogância, frutos de algum mal percebido complexo de inferioridade, na afirmação do autor de que: "Chegou a hora de privilegiar, na América Latina, as idéias latino-americanas". O que existe, como o livro procurar descrever, é um momento de relativa maturidade no espaço brasileiro e latino-americano. Maturidade conquistada no processo de consolidação de uma cultura científica mais autêntica, que se alicerça na construção de espaços institucionais de pesquisa, debate e interlocução, no interior do próprio campo científico e com os grupos que irão servir-se dos conhecimentos por ele produzidos (indústrias midiáticas, espaços de ensino das profissões da área).

A esse respeito, em particular, os artigos "Identidades brasileiras: estratégias para sair do gueto acadêmico", "Gênese e desenvolvimento: passado, presente e futuro da Escola Latino-Americana de Comunicação", "Constituição da comunidade acadêmica brasileira: roteiro para uma história das ciências da comunicação no Brasil", "Maturidade da comunidade acadêmica brasileira: o papel da INTERCOM na legitimação do campo comunicacional" e "Pensamento comunicacional brasileiro: o desafio da renovação" são bastante elucidativos.

Os dois últimos historiam sucintamente o papel fundamental da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - INTERCOM no processo de consolidação da área. Fundada em 1977, a entidade converteu-se logo num espaço de debate, disseminação do conhecimento na área (tanto através de seus encontros, quanto de publicações e estudos), convergência dos saberes comunicacionais, por meio de um saudável pluralismo de perspectiva. Por isso, a entidade adquiriu uma legitimidade acadêmica que colaborou com o fortalecimento do campo. Além disso, estimulou a interlocução no âmbito das regiões (através dos SIPECs) e com a comunidade internacional (Colóquios), de modo a evitar o insulamento dos pesquisadores. Hoje, como nota Marques de Melo, a INTERCOM procura, em parte talvez devido ao próprio crescimento da entidade e das questões que o meio acadêmico da área abarca, estimular os "núcleos de pesquisa" que passaram a se abrigar em sua estrutura.

Já os três primeiros artigos procuram evidenciar a construção do campo acadêmico, correlacionando o processo ao desenvolvimento da indústria e dos serviços midiáticos que passam a demandar profissionais qualificados. Ocorre, pois, um impulso para a estruturação de um sistema de ensino no qual se alocam tanto os profissionais do meio, na época, quanto os estudiosos das ciências sociais interessados nos processos de comunicação.

Este grupo começa a constituir assim um "campo vocacionado para a interdisciplinaridade, na medida em que seus objetos específicos são produtos cujo conteúdo está enraizado no território das demais disciplinas que constituem o universo científico" (p. 60), nota o autor. Marques de Melo ressalta ainda, nesse contexto, a forte penetração dos bens culturais midiáticos na sociedade e o papel que o conhecimento produzido pelo novo campo de estudos teria na "retroalimentação dos processos produtivos no âmbito das indústrias midiáticas" (idem).

É a partir desse entendimento sobre a organicidade entre pesquisa e campo profissional que assume particular interesse o tópico do artigo "Estratégias para sair do gueto acadêmico" em que se discutem estratégias para a formação do profissional do campo. Há nele uma proposta para articulação de três conjuntos de saber: 1. que demarcam a identidade do campo (teorias da comunicação e estrutura dos sistemas midiáticos), 2. estudo dos processos conformadores da produção, difusão e avaliação dos bens culturais e 3. conteúdos que dão sentido ao bens produzidos pelas indústrias midiáticos (saberes das ciências humanas e artes).

A proposta ou modelo é bem defendida e complementada por uma reflexão sobre as mutações provocadas pelas inovações tecnológicas, mudanças econômicas e culturais que poderiam propiciar novos formatos de formação do comunicador, bem como a emergência de novos campos profissionais ligados à área.

A reflexão é instigante, no entanto, seria muito interessante o aprofundamento e a discussão de alguns pontos que ela enseja, como por exemplo: o quão distante está o sistema de ensino em comunicação, de modo geral, do modelo proposto? Quais os resultados obtidos pelas instituições que tem adotado esta perspectiva ou similares? Qual o papel da formação para a pesquisa neste modelo?

Com certeza, o professor Marques de Melo, com sua larga experiência na área do ensino, poderá aprofundar tais aspectos no desenvolvimento de suas reflexões. De certo modo, tais questões encontram um equacionamento indireto na discussão do modelo de pós-graduação assumido pela UMESP, assunto abordado no artigo "O grupo de São Bernardo: atualização histórica como estratégia de sobrevivência".Segundo o autor, neste programa de pós-graduação houve uma tentativa de neutralizar os "embates entre o teórico e o prático, o acadêmico e o profissional, o nacional e o global" (p. 276).

É no artigo "Constituição da comunidade acadêmica brasileira: roteiro para uma história das ciências da comunicação no Brasil", porém, que existe uma importante conexão entre a primeira e a segunda motivação do autor. Isto porque ao propor uma periodização relativa à estruturação do campo de estudos em comunicação, Marques de Melo verifica não somente um passado de conhecimento acumulado, mas também mostra como ele poderá, na medida em que melhor conhecido, sustentar avanços na pesquisa da área.

Um roteiro sobre o conhecimento no campo

Assim, o "roteiro" exposto no artigo citado contempla, em grandes traços, um perfil sociocultural da comunidade científica em comunicação numa cronologia, composta de cinco fases demarcadas da seguinte forma. Haveria um momento de Desbravamento (1873-1922), relativo à fase no qual a imprensa converte-se num pioneiro objeto de estudo; a seguir, uma fase de Pioneirismo (1923-1946), no qual percebe-se na veia ensaística dominante certa direção rumo ao empirismo, nesta fase os conhecimentos midiológicos produzidos para sedimentar rotinas produtivas conjugam-se ao início de um empreendimento pedagógico; a fase de Fortalecimento (1947-1963) é marcada mais ainda pela instância da Universidade, bem como pelos primeiros esforços de constituição de grupos de pesquisa e intercâmbio com o pensamento estrangeiro (ICINFORM e CIESPAL, respectivamente); no momento de Consolidação (1964-1977), ocorre o crescimento das indústrias de mídia no país, crescimento este que estimula a reflexão não só no ambiente acadêmico que começara a sedimentar-se na fase anterior e que avança em termos do aumento dos cursos de graduação e no início da construção de um sistema de pós-graduação, mas também nas próprias empresas de comunicação (algumas delas, como a empresa Jornal do Brasil, chegam a lançar revistas dedicadas ao estudo da comunicação); por fim, o período da Institucionalização (1978-1997) tem como características o surgimento de associações de pesquisadores nacionais (INTERCOM, ABECOM, COMPÓS), forte incremento da produção acadêmico (fruto em parte dos programas de pós-graduação que continuam a crescer no período) e inserção internacional da pesquisa brasileira, tendo como um dos espaços privilegiados a IAMCR - International Association for Media and Communication Research, cujo congresso de 1992, significativamente ocorre no Brasil.

A vantagem do esquema proposto reside, em primeiro lugar, em sua clareza expositiva; com efeito, sugere uma visão de totalidade do desenvolvimento do campo, de longa duração, bastante coerente, por um lado.

Por outro, coloca-se como um ponto de partida para refinamentos e debates, o que é outro mérito da proposta. No campo da necessária discussão, creio que um dos pontos mais importantes para um futuro avanço diz respeito ao fato de que, como afirma Francisco Rüdiger num livro igualmente recém-lançado (Ciência social crítica e pesquisa em comunicação, Ed. Unisinos, 2002), a "expressão comunicação, como designadora de um fenômeno social e cultural novo é, entre nós, bastante recente, não sendo encontrada antes do final dos anos 1960. Trabalhos como os de Rizzini (1946), Rabelo (1957), Vianny (1958), por exemplo, a desconhecem por completo" (p. 64). Ora, isso implica em equacionar aspectos que justificam a incorporação de parte dos trabalhos que Marques de Melo observa como fundadores da área de investigação da comunicação.

O que me parece importante não é simplesmente desconsiderar o que foi feito antes de 1960, mas perceber o que dessa produção marca àquela que lhe sucede, no âmbito dos estudos em comunicação. Em outros termos, os trabalhos das primeiras fases precisão ser mais estudados e mesmo melhor conhecidos.

Reavaliar as obras pioneiras de autores que procuraram construir o campo (ainda que em termos conceituais por vezes algo diferentes da expressão contemporânea), implica, antes de mais nada, que elas estejam disponíveis, seja em novas edições ou em arquivos de fácil acesso aos pesquisadores. Essa preocupação não escapa ao horizonte de Marques de Melo nem de seu livro, que traz indicações importantes, tanto no que diz respeito à necessária sistematização e reflexão, quanto na indicação de caminhos para superar o desconhecimento sobre o trajeto de acumulação de saberes na área.

Daí também a importância do inventário das contribuições já feitas pelos autores latino-americanos, em particular, conforme exposto no livro, de modo a que a expressão "escola" adquire maior concretude e densidade. Uma vez que o movimento de idéias, os paradigmas compartilhados que lhe são subjacentes a certos autores tornam-se mais claros, a história do pensamento comunicacional ganha um sentido mais próprio. Podendo incorporar inclusive o sentido conflitivo que marca o campo científico.

É por isso, pois, que vejo o trabalho de Marques de Melo sobretudo como importante proposta sistematizadora, que prepara uma síntese ligada à reflexão em mais detalhe dos autores e períodos vislumbrados - como, aliás, parece indicar os rumos atuais de investigação do autor, como no caso do tema comunicação em Frei Caneca, por exemplo.

Essa é uma ordem lógica, e mesmo que não o fosse, o autor poderia legitimamente dizer aos que talvez preferissem aguardar a série de estudos monográficos de autores, escolas e tendências que o trabalho de Marques de Melo projeta em sua proposta sistematizadora do campo, que o "imperfeito concretizado é melhor que o impecável arquivado" (p. 270).

É certo, todavia, que a direção, a meu ver principal, do esforço do livro é correta ao indicar um possível avanço coletivo, pois como nota Marques de Melo: "Na medida em que se institucionaliza um novo campo do saber, torna-se imprescindível oferecer às novas gerações um quadro histórico que estimule a acumulação orgânica de experiências, evitando-se a repetição de etapas já percorridas, mas que escampam muitas vezes à percepção dos pesquisadores neófitos" (p. 250).

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