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Resenhas


A fisionomia típica da ciência em crise

Por Martin Jayo

O filósofo da ciência Thomas Kuhn introduziu o conceito de "paradigma científico", bem como a idéia da "crise de paradigma" como elemento catalizador da geração de conhecimento.

No esquema kuhniano, a atividade científica intercala fases de "ciência normal", em que o conhecimento avança de forma gradual e lenta, com períodos denominados de "ciência extraordinária", em que o progresso se dá na forma de saltos, ou revoluções científicas. As fases de ciência normal se caracterizam pela existência de um determinado referencial analítico estável, reconhecido e amplamente aceito pela comunidade científica de uma determinada área do saber. Esse referencial é o paradigma. Já a ciência extraordinária se dá nos momentos de ausência ou crise do paradigma dominante, ou, posto de outra forma, quando as teorias existentes resultam incapazes de dar conta de determinados problemas e questionamentos, dando ensejo a novas formulações e novas formas de ver o mundo.

Nessa ótica, para José Marques de Melo, a pesquisa acadêmica em Comunicação "assume a fisionomia típica da ciência em crise" (p.36). A constatação é feita em um dos ensaios que compõem o volume "História do Pensamento Comunicacional" (São Paulo: Paulus, 2003).

Tal constatação se soma a uma série de outras peculiaridades do pensamento comunicacional, para as quais Marques de Melo chama a atenção neste trabalho e em outros anteriores. Sabemos, por exemplo, que a pesquisa no campo da Comunicação muitas vezes carece do rigor conceitual e da exatidão analítica própria de outras disciplinas científicas. O autor nos lembra, igualmente, que a construção de conhecimento no campo comunicacional se dá, muito mais do que em outras áreas, pela articulação de contribuições teóricas, acadêmicas, com contribuições práticas vindas diretamente do exercício midiático profissional. Citando o pesquisador francês Bernard Miège, Marques de Melo fala em uma "co-produção [que] acabará por se acentuar no futuro, mesmo correndo, às vezes, o risco de que não sejam respeitadas as exigências mínimas de qualquer trabalho intelectual que corresponda às indispensáveis regras metodológicas". (p. 37)

Vê-se então que o campo da Comunicação acumula uma coleção de particularidades que, à primeira vista, seriam desalentadoras para o pesquisador interessado em traçar um panorama sistematizado do pensamento na área. Contudo, está longe de ser esse o espírito que domina o volume de Marques de Melo. É claro que o reconhecimento dessas idiossincrasias está presente. No entanto, o foco principal do trabalho recai sobre o extremo oposto, dado o objetivo que o autor se propõe, justamente o de inventariar e articular aquilo que existe de conhecimento efetivamente sistematizado e confiável.

Com isso, Marques de Melo demonstra ser possível fazer um contraponto aos argumentos que valorizam as limitações, por mais reais que estas sejam. Consegue organizar um acervo cognitivo que, embora documentado na literatura, muitas vezes resulta difuso e inarticulado aos olhos de boa parte dos pesquisadores. Devidamente resgatado, este acervo pode ser de grande valia à comunidade acadêmica, para a superação de aparentes deficiências e entraves teóricos.

Além disso, dado que parte muito significativa dessa atividade de resgate se ocupa do acervo cognitivo latino-americano e brasileiro, o trabalho cumpre também o objetivo de "fortalecer a auto-estima daquela corrente que não se sente inferiorizada pelas tradições intelectuais forâneas, irrigando e cultivando as raízes mestiças que sustentam o nosso pensamento comunicacional". Assim, boa parte do volume é dedicado à trajetória e ao estado da arte das construções teóricas nas correntes comunicacionais brasileiras e latino-americanas, bem como à produção intelectual de diversos pensadores locais.

O livro reúne textos de artigos e conferências do professor Marques de Melo, em sua maioria produzidos recentemente, entre 1998 e 2002. Coincidem, portanto, com o início da era do Ciberespaço. A época anuncia uma significativa reorganização do modo pelo qual se dá a comunicação, tanto interpessoal como massiva, e isto suscita reflexões. É certo que, com o advento das cibermídias, os pensadores da comunicação serão crescentemente cobrados - como de fato já começam a ser - a resolver novos problemas e questionamentos práticos, seja com referencial analítico pré-existente, seja com desenvolvimentos teóricos novos. Nesse sentido, nada mais conveniente, neste momento, do que conseguirmos um entendimento organizado e claro sobre o acervo analítico de que dispomos para avançar.

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