Resenhas
Jornalismo
como tessitura do cotidiano
Por
Maria do Socorro F. Veloso*
A
arte de tecer o presente - Narrativa e Cotidiano
de Cremilda Medina
São Paulo: Summus, 2003
ISBN 853230848 - 1
Edição 1 / 2003
156 pág., 14.0 x 21.0 cm
Peso 0.20 g
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O
ensino de Jornalismo no Brasil parece enredado, desde suas origens,
em uma crise paradigmática longe de uma solução.
Esse mal-estar afeta a maioria dos cursos de graduação
por diferentes razões: a condição esquizofrênica
de habilitação, as grades curriculares no geral
confusas e repetitivas, a relação de amor-e-ódio
com o mercado de trabalho, o aprisionamento do conjunto das
técnicas profissionais a modelos cuja superação
já se mostrou mais do que necessária.
A
reflexão em torno dessas preocupações encontra
um vigoroso eco na reedição do livro A arte de
tecer o presente: narrativa e cotidiano (São Paulo: Summus,
2003), de Cremilda Medina. Ex-aluna de pós-graduação
e professora da Escola de Comunicações e Artes
da USP, profissional de imprensa com mais de 30 anos de experiência,
Cremilda chama atenção para o fato de que, no
jornalismo, a construção social dos sentidos se
faz no cotidiano, na rua, na percepção dos gestos
coletivos. "Se a comunicação social se propõe
à ação solidária, a construir redes
de significação contemporânea, terá
de pesquisar, sensibilizar-se e praticar a dialogia". (p.
74).
A
arte de tecer o presente foi publicado pela primeira vez em
1973. "Paulo Roberto Leandro e eu assinamos esse livro
artesanal em tempos de contracultura, uma publicação
que se esgotou em seis meses. Desde então pensávamos
na reedição, que foi sendo adiada por três
décadas", explica Cremilda (p.144). Paulo Roberto
assina o posfácio da reedição, que traz
relatos da primeira experiência, associados - nas palavras
da autora - a outras "peripécias do fazer e do pensar".
Especificamente
no curso de Jornalismo da USP, essas "peripécias"
se referem a um esforço sistemático de recuperação
do "tônus criativo da resistência cultural"
na imprensa, quebrado, afirma a professora, em meados da década
de 80, quando os jornais decidiram investir na informatização:
As
empresas, então voltadas para a modernização
tecnológica (...), passam a tolher o que de forma quase
orquestrada consideravam ímpetos esquerdistas extemporâneos.
Perdem-se ou se atrofiam as grandes narrativas e se valorizam
os projetos técnico-formais como, por exemplo, os recursos
de computação gráfica, a fórmula
da notícia curta, descarnada, os gráficos de quantificação
sobre os comportamentos humanos. Histórias de vida que
dão sentido aos contextos sociais ficam à deriva
perante a pirotecnia visual e gráfica. (p.32)
Essa
busca pelo "tônus criativo" perdido se deu na
forma de projetos como o São Paulo de Perfil, uma série
de grandes reportagens produzidas por alunos da ECA a partir
de 1987, cujo objetivo é reconstituir o rosto multifacetado
no Brasil que se reflete em cada esquina paulistana. Chamadas
por Cremilda de "narrativas da contemporaneidade"
(nome de uma disciplina criada pela professora em 1998), essas
grandes reportagens foram publicadas em livros, resultando,
até 2003, em 25 edições.
O
projeto está assentado no tripé ensino, pesquisa
e extensão, tem caráter multidisciplinar e está
aberto a diferentes gerações; há, por exemplo,
contribuições significativas do Programa da Terceira
Idade da USP, e de mestrandos e doutorandos. Quem deseja conhecer
melhor a proposta pode fazer isso pelas páginas de A
arte de tecer o presente.
Nesses
espaços de experimentação, problemas como
a descrição esquemática, os preconceitos
ideológicos, os conceitos dogmáticos e o reducionismo
(p. 50) são combatidos a partir da constatação
de que é possível dar novos sentidos às
narrativas jornalísticas. "A dialogia social (...)
seduz os mediadores para se deslocarem da passividade das técnicas
adquiridas para a ação complexa, solidária
e inovadora no ato de relação com o outro e com
o mundo. Em lugar de produzirem significados óbvios e
conservadores, produzem novos sentidos". (p. 51)
Para
Cremilda, o repórter é um mediador social dos
discursos da realidade. Por conta disso, critica os esquematismos
profissionais que desprezam a intuição criativa.
"(...) O fechamento numa razão reducionista impede
a emoção solidária que capta os movimentos
do outro, da mesma maneira que a atrofia dos sentidos da relação
não favorece a ação complexa". (p.50)
Defensora
de um tipo de jornalismo cuja pedagogia recupere o prazer de
descobrir pessoas e coisas, a professora lembra que "em
ambientes pedagógicos - mais favoráveis na universidade
pública, mas também em algumas instituições
privadas - é possível desenvolver essas aptidões
conjuntamente, observando e motivando os estudiosos numa oficina
permanente". (p. 35). Essa "travessia pedagógica",
contudo, não é tranqüila. Dá-se em
meio a uma "fogueira" em que ardem certezas, rotinas
e o ritmo mecânico do jornalismo.
Os
estudantes de jornalismo da ECA, ao se confrontarem com um plano
de curso desafiador, porque foge da dicotomia teoria-técnica,
transitam, em pouco tempo, da rejeição à
adesão. O embate se trava no momento em que é
preciso abandonar o conforto das fórmulas engessadas
nos manuais jornalísticos e ir ao mundo para viver o
presente, as situações sociais e o protagonismo
humano. (P.40)
A arte de tecer o presente não é um livro convencional
sobre os estudos de comunicação e jornalismo.
Além de abordar questões relacionadas à
prática profissional, traz relatos de experiências
pessoais de Cremilda, depoimentos de estudantes de graduação
e pós, fragmentos de textos e poesias de outros autores
com os quais a professora mantém ou manteve contatos.
Tem o tom de uma conversa entre comuns que partilham o desejo
do novo, do inquieto, do diferente.
No
curso ora ministrado na ECA/USP para alunos de pós-graduação,
Cremilda aprofunda os problemas discutidos no livro . Faz isso,
por exemplo, ao criticar o temor que os relatos científicos
e jornalísticos nutrem em relação à
metáfora, à polifonia, à polissemia. "O
discurso jornalístico e o discurso científico
vivem a mesma crise, porque correm ao largo do cotidiano vivo
das pessoas. O cotidiano não é a temática
central desses discursos; está ausente", diz a professora.
Cremilda
Medina põe o dedo na ferida com a sabedoria característica
daqueles que passaram a vida tecendo os fios da ação
prática e da reflexão teórica. Pesquisadora
de jornalismo há mais de 30 anos, ela atuou na linha
de frente da imprensa diária brasileira - por uma década
foi editora do Estado de S. Paulo. Quando denuncia que "relatos
tecnicamente bem montados, com o apoio de informações
numéricas, estatísticas traduzidas em gráficos
atraentes, análises generalizantes, passam ao largo da
imprevisibilidade da ação humana no dia-a-dia
do caos da história" (p.141), a professora sabe
muito bem do que está falando.
*Maria
do Socorro F. Veloso é Doutoranda na ECA/USP.
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