Resenhas
As
lições de um mestre
Por
Hamilton Octavio Souza*
Prefácio
de Padrões de manipulação na grande
imprensa, de Perseu Abramo (posfácio de Aloysio
Biondi), 64 pp., Editora Fundação Perseu
Abramo, São Paulo, 2003; e-mail: editora@fpabramo.org.br
- http://www.fpabramo.org.br
- tel. (11) 5571-4299.
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Perseu
Abramo trabalhou 15 anos como professor do curso de jornalismo
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), de 1981 até sua morte, em 1996. Trouxe
para a PUC-SP a sua experiência acadêmica da Universidade
de Brasília e da Universidade Federal da Bahia, e sua
experiência jornalística das redações
de O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e da
imprensa alternativa (Movimento) e partidária
(Jornal dos Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores
- PT).
Além
da atividade docente intensa em várias disciplinas específicas
- desde Introdução ao Jornalismo, no 1º ano,
até Projetos Experimentais, no 4º ano -, o professor
Perseu Abramo orientou inúmeros projetos de iniciação
científica e a produção de jornais laboratórios.
Desenvolveu, mas não chegou a concluir, por motivos alheios
à sua vontade, uma pesquisa sobre a manipulação
da informação e a distorção da realidade
na imprensa brasileira, que resultou em textos e relatórios
preliminares de excelente conteúdo, irrefutáveis
nos chamados critérios científicos e de profunda
atualidade até hoje.
Essa
pesquisa só não foi concluída porque a
universidade, entre 1991 e 1992, viveu grave crise financeira
e cortou inúmeros projetos em andamento sem verificar
seu mérito. Parte da remuneração do professor
Perseu vinha dessa verba, e ele foi obrigado a deixar o trabalho
"suspenso" para se dedicar exclusivamente às
aulas, após ter deixado a Secretaria de Comunicação
da administração municipal de Luiza Erundina.
Assim
mesmo, os relatórios da pesquisa e os textos derivados
dela deixados por Perseu Abramo, praticamente inéditos,
formam um conjunto de observações, constatações
e análises do comportamento da imprensa comercial-burguesa,
especialmente dos grandes jornais de São Paulo, raramente
desvendados por outros pesquisadores.
Formado
em sociologia, Perseu Abramo conhecia perfeitamente as técnicas
da pesquisa científica, as metodologias e a organização
do material coletado conforme os costumes da academia. Além
disso, sabia perfeitamente o que muito jornalista e professor
de jornalismo não sabe ainda hoje: que a atividade só
pode ser entendida e analisada como categoria política,
como instrumento de propagação ideológica
de grupos, setores e classes sociais.
Tanto
é que o texto mais completo sobre essa pesquisa recebeu
originalmente, entre outros, os títulos de "Imprensa
e política" ou "Significado político
da manipulação na grande imprensa". E nele
são explicitados não apenas os padrões
da manipulação da informação como
também as justificativas políticas da distorção
e a pretensão de algumas empresas jornalísticas
de se organizar e tentar assumir o papel de partido político.
Discurso
oficial
A
comparação que faz entre partido político
e organização empresarial do jornalismo é
antológica. Vale lembrar que o jornalista Perseu Abramo
tinha participado ativamente da greve da categoria, em 1979,
quando era editor da Folha, foi demitido pelo jornal (juntamente
com centenas de profissionais castigados pelo patronato) e acompanhou
- criticamente - o nascimento e a implantação
do Projeto Folha, que transformou o antigo jornal da família
Frias numa espécie de seita dirigida por manuais e "decretos"
de revelação dogmática.
Os
estudos do professor Perseu desmascaram a autoproclamada "objetividade"
da imprensa comercial-burguesa, mostram que se trata de uma
"falsa objetividade" e colocam o jornalismo praticado
pelo mercado como um instrumento de controle político
das elites, contrário aos interesses maiores do povo
brasileiro. No debate sobre a verdadeira motivação
da empresa de comunicação em manipular a informação
e distorcer a realidade, Perseu coloca o campo econômico,
a busca do lucro, num segundo plano, já que esse pode
ser obtido com melhor resultado em outras atividades empresariais.
Para ele, a motivação real está no campo
político, na lógica do poder.
Os
padrões de manipulação observados, identificados
e classificados por Perseu Abramo podem ser aplicados de forma
integral na análise dos veículos atualmente, inclusive
porque as distorções que ele denuncia assumiram
com muito mais desenvoltura o domínio das redações
- após mais de dez anos de adesão da imprensa
brasileira aos valores do neoliberalismo e à participação
da mídia no exercício do poder formal das elites
dominantes.
Nos
governos de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, a imprensa
e os meios de comunicação praticamente substituíram
a representação parlamentar, as organizações
sociais e as entidades de classe na intermediação
com a sociedade. Os veículos foram transformados em reprodutores
e retransmissores do discurso oficial e, inclusive, das manipulações
forjadas nos palácios de Brasília.
Justamente
um dos padrões da manipulação da informação
indicado nos textos de final dos anos 80 e início dos
anos 90 é o oficialismo, que tem sido uma prática
constante na trajetória da imprensa comercial-burguesa
no Brasil e que ganhou hegemonia absoluta na segunda metade
dos anos 90 - quando a reportagem e o trabalho investigativo
foram abandonados e a palavra "positiva" das autoridades
abarcou a maioria das grandes redações.
"Truques"
da notícia
Na
medida em que o oficialismo atinge a grande maioria da atividade
jornalística, em que a diversidade e a pluralidade de
informações e opiniões deixam de ter o
seu espaço na sociedade, ele se transforma em autoritarismo,
afirma Perseu em seus textos, com tremenda percepção
do que aconteceria nos anos seguintes na imprensa brasileira.
O
oficialismo que tomou conta dos meios de comunicação
de 1994 para cá reduziu o jornalismo ao procedimento
declaratório de um número bem comportado de fontes
"oficiais" e previsíveis, todas naturalmente
engajadas no projeto entreguista do governo FHC e na economia
de mercado, de tal forma que a relação com o autoritarismo
não pudesse mais ser ignorada. É claro que o discurso
permanente continuou sendo o da liberdade de expressão,
o da "isenção" da imprensa e o da "objetividade
jornalística", mas sem espaço nem veículos
destoando da lógica do pensamento único.
Com
base em seus textos, utilizados em sala de aula, palestras,
oficinas, seminários, com estudantes de graduação,
ensino médio e com militantes de movimentos sociais interessados
na área da comunicação, tem sido possível
compreender alguns dos mecanismos empregados por jornalistas
e comunicadores em geral nos veículos e programas identificados
e reconhecidos como predominantemente dedicados ao jornalismo.
Essa
é uma questão primordial: a manipulação
não reflete a realidade da sociedade brasileira, está
estruturada no modo de produção do jornalismo
e é exercida por profissionais egressos das universidades,
muitos dos quais com perfeito domínio das técnicas
de comunicação e dos "macetes" adotados
pelos jornalistas tanto para ocultar, fragmentar ou inverter
os fatos.
Nada
mais atual do que a ocultação total, parcial ou
de aspectos da realidade; a fragmentação nas edições;
a inversão da relevância das informações
ou a mais primitiva descontextualização dos acontecimentos
- práticas observadas hoje em cada página do jornal
diário, da revista semanal e nos noticiários das
emissoras de rádio e de TV.
O
estudo desses padrões descritos por Perseu Abramo fornece
ao jornalista e ao cidadão um instrumental precioso para
a leitura correta e precisa do jornalismo praticado pela imprensa
comercial-burguesa. Fornece, principalmente aos professores
de todas as áreas e cursos, elementos valiosos para o
entendimento sobre o papel da mídia numa sociedade capitalista,
de massas, sobre os "truques" contidos em cada notícia
e sobre a necessária atenção que os pesquisadores
devem ter ao utilizar o material jornalístico como fonte
de suas pesquisas.
Novo
jornalismo
Na
parte em que trata da inversão da forma pelo conteúdo,
um dos pontos do padrão da inversão, Perseu Abramo
sintetiza em poucas palavras, numa operação de
sintonia fina, toda a dimensão de um problema praticamente
escamoteado pelo jornalismo de mercado e deliberadamente ignorado
pelas escolas afundadas nas "teorias" que cuidam da
aparência, do visual, da imagem e do signo. Ele afirma:
"O
texto passa a ser mais importante que o fato que ele reproduz;
a palavra, a frase, no lugar da informação;
o tempo e o espaço de cada matéria predominando
sobre a clareza da explicação; o visual harmônico
sobre a veracidade ou a fidelidade; o ficcional espetaculoso
sobre a realidade".
A
riqueza desse pequeno trecho comporta inúmeras análises,
debates e reflexões. É possível debater
desde o papel e a precisão da linguagem na descrição
de um fato até o "jornalismo virtual" praticado
em larga escala atualmente - muito mais criação
ficcional do que informação relativa a algo real
e concreto.
Esse
tipo de inversão, que é uma manipulação
que distorce a realidade, consome os veículos de comunicação
todos os dias, às vezes de maneira sutil, contida, outras
vezes de maneira escancarada, grosseira e agressiva.
Utilizei durante anos a edição do jornal O
Estado de S.Paulo de 30 de junho de 1998 como exemplo radical
desse padrão indicado por Perseu Abramo. Naquele dia,
o tradicional jornal paulista, empenhado que estava na reeleição
de Fernando Henrique Cardoso, apresentou na capa cinco chamadas
(a manchete principal e quatro submanchetes) baseadas em previsões
de futuro, em promessas vagas, do tipo "privatização
das teles criará 2 milhões de empregos",
"governo abrirá financiamento da casa própria",
"balança comercial terá superávit"
e coisas parecidas.
É
claro que as chamadas do jornal jamais se concretizaram na época,
no prazo e nas condições apontadas pelas matérias,
as quais, na verdade, não guardavam qualquer relação
com fatos reais, mas apenas com intenções e declarações
de pessoas do governo devidamente comprometidas com a reeleição
de FHC.
O
que fica patente é que os estudos realizados pelo professor
Perseu Abramo continuam fornecendo um instrumental precioso
para a compreensão do fazer jornalístico predominante
no país, o qual, obviamente, tem a ver com a organização
do sistema de comunicação, com o tipo de propriedade
e exploração desses meios e com a natureza do
sistema capitalista.
A
divulgação desses estudos e o seu debate mais
amplo na sociedade certamente irão contribuir não
apenas para ampliar a visão crítica - necessária
- dos esquemas de manipulação da informação
e de distorção da realidade, mas fundamentalmente
para formar a base da transformação e estimular
a formulação de um novo jornalismo - transparente,
democrático, participativo e comprometido com os destinos
da maioria do povo brasileiro.
(Título original: "A atualidade dos estudos
do jornalista e professor Perseu Abramo"; intertítulos
da redação do OI.)
*Hamilton
Octavio Souza é Jornalista e professor universitário;
foi aluno do professor Perseu Abramo, seu colega de trabalho
e companheiro na organização do PT; ocupou a chefia
do Departamento de Jornalismo da PUC-SP de 1991 a 1995, no período
em que Perseu desenvolveu a pesquisa sobre manipulação
e distorção na imprensa; editor da revista Sem
Terra, diretor de comunicação da Fundação
de Ensino Octávio Bastos (FEOB) e está de novo
na chefia do Departamento de Jornalismo da PUC-SP.
Fonte:
Espaço Acadêmico, revista digital, n. 37, junho
de 2004.
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