Resenhas
A
construção do conhecimento comunicacional
Por
Marcelo Januário*
A
trajetória de José Marques de Melo se confunde
com a consolidação dos estudos avançados
em comunicação no Brasil, seja por sua posição
privilegiada de testemunha ocular da história, já
que viveu a maior parte dos fatos relatados, seja pelo papel
central que assumiu na constituição da comunidade
comunicacional acadêmica nacional e na legitimação
institucional deste campo de trabalho.
Esta
provavelmente é a primeira constatação
que se depreende da leitura da "História do Pensamento
Comunicacional", seu mais recente livro, onde o autor
realiza extenso inventário dos cenários e personagens
(como divide a obra), nos últimos trinta anos de consolidação
dos estudos em comunicação no país. Esse
esforço se estende à tentativa de traçar
um histórico mais amplo, que inclui as sistematizações
do século XIX, passando pela origem da retórica
no período clássico grego e pelas experiências
medievais no século XVII.
Centrado
na comunicação, mas com destaque para o jornalismo
(área de origem do autor alagoano, que também
é professor universitário, pesquisador e consultor
acadêmico), o livro funciona como um guia dos estudos
da área no Brasil e na América Latina, resgatando
a dinâmica que engendrou as instituições
de comunicólogos e seus autores paradigmáticos.
Coletânea de prefácios, comunicações,
perfis, resenhas, conferências, artigos, discursos e
alocuções desenvolvidos através do tempo,
em diversas publicações e países, o livro
transmite o calor da empreitada por reconhecimento, consolidação
e divulgação da criatividade e originalidade
de nosso conhecimento comunicacional, levada a cabo por Marques
de Melo e outros pesquisadores de sua geração.
Este
é, inclusive, o ponto-chave do pensamento do autor
e propósito da obra, que reitera o objetivo de "mapear
a Comunicação enquanto campo de conhecimento"
ao passo que combate a síndrome de "coitadismo
e derrotismo" (complexo do colonizado) de alguns dos
acadêmicos tupiniquins, desde sempre deslumbrados com
as idéias e soluções "forâneas"
mimetizadas em nossa produção intelectual.
Justamente
para fortalecer a auto-estima de nossos pesquisadores e preservar
a nossa identidade cultural, Marques de Melo reconstrói
o desenvolvimento do discurso científico e as transformações
dos meios comunicacionais, procurando trazer à tona
as evidências históricas que permitem vislumbrar
a gênese de nosso singular "olhar mestiço".
No primeiro capítulo da parte I, Marques de Melo retoma
a tese de seu primeiro livro, onde discute o campo da comunicação
(dividido em interpessoal, da antigüidade até
o enciclopedismo, e massivo, a partir dos primeiros jornais
diários alemães no século XVII até
nossos dias), partindo do areópago aristotélico,
fonte codificadora da retórica política, para
chegar à Roma de Cícero e Quintiliano. Esboça
o desenvolvimento do discurso como persuasão e traça
as linhas congêneres que unem política e a retórica
no consenso coletivo.
A
habilidade comunicacional, mais tarde e por muito tempo, silenciaria
no rumor das batalhas da Era Cristã, teatro de forças
que imperavam sobre qualquer argumento. Segundo o autor, somente
na era das revoluções é que a retórica
retornaria ao centro da vida pública, tornando-se preponderante
no início do século XX, quando emerge como técnica
científica ancorada nas novas ciências do comportamento,
como a psicologia. Como marcos deste processo retórico,
embrião dos mass media, o autor destaca a invenção
da imprensa no século XV (potencialização)
e a invenção das rotativas no século
XIX (concretização).
O
autor ressalta o "Paradigma de Lasswell" como emblemático
da retomada, no século XX, da tradição
greco-romana, rompendo, porém, com a centralidade do
discurso, interlocutor e ouvinte aristotélico para
um contexto sócio-político de canais, comunicadores,
conteúdos e efeitos. Neste cenário, a comunicação
política se consagra como a arte da influência
em uma conjuntura de fortalecimento do poder dos EUA (ainda
hoje em vigência) e ocorre o aprofundamento da reflexão
sobre a natureza das novas técnicas de artifícios
psicológicos.
A
Guerra Fria que se segue traz o maior volume de conhecimento
sobre o campo, legitimando de vez estudos comunicacionais
como os de Lasswell, Lerner, Berenson & Janowitz, Katz
e outros, imersos em temáticas como memória
de campo, comunicação bélica, utópica
e utilitária, tendo como foco o suporte dos canais
tecnológicos. Neste contexto, comunicação
e política se tornam "almas gêmeas",
simbiose sombria e explosiva que parece não mais se
desfazer, como pudemos observar desde então.
Como
conclusão, no entanto, a constatação
de que, na era do Ciberespaço, a dinâmica da
mídia sobrepõe-se à esfera política,
gerando uma "crise de identidade" mais próxima
dos pensadores gregos do que dos pensadores da comunicação
política do século XX.
Apesar
de formada por textos temporalmente distantes entre si, a
obra segue uma linha de coesão explicativa. Sempre
através das principais fontes bibliográficas,
após contextualizar seu objeto, Marques de Melo passa
a esmiuçar os conceitos de comunicação,
sua natureza e a relação com tecnologia e cultura.
O capítulo "A natureza do conhecimento midiológico"
localiza a origem da comunicação como novo campo
de saber na confluência de fatores industriais, profissionais
e cívicos, da troca de experiências práticas
e teóricas e da definição como ciência
social aplicada.
Desde
a origem dos estudos e do ensino sobre a imprensa no século
XIX até a irrupção das novas mídias
massivas no decorrer do século XX, os objetos comunicacionais
tiveram que passar pela legitimação empírica
e pela assimilação universitária até
chegarem ao reconhecimento acadêmico.
Nos
anos 70, o campo institucional da comunicação
se estabelece na América Latina e aparecem novos espaços
de pesquisa. O hibridismo teórico e a superposição
metodológica marcaram essas produções
embrionárias do pensamento comunicacional brasileiro.
Marques de Melo divide a Escola Latino-Americana de Comunicação
(ELACOM) em três gerações: os pioneiros
(anos 50/60), os inovadores (anos 70) e os renovadores (anos
80), quando se configura uma verdadeira Comunidade Acadêmica.
Para o futuro, o autor adverte que o maior perigo para a ELACOM
é o "reprodutivismo", vício intelectual
sobre o qual o autor invoca Paulo Freire e sua teoria da "aderência
ao opressor", ademais foco constante na luta pelo monopólio
científico.
Instituições
pioneiras como ALAIC e CIESPAL viriam "corrigir distorções
e melhorar o desempenho das organizações produtoras
de bens simbólicos". Marques de Melo destaca o
enredamento público destes agentes, que "estavam
mais comprometidos com o interesse público e menos
sensibilizados pelos interesses corporativos dos capitães
do sistema produtivo". Devido a estas propostas heterodoxas,
que resgatam o diferencial latino-americano ao apresentarem
propostas de estudos para sanar o "déficit cognoscitivo
e contribuir para melhoria da vida do povo", tais instituições
foram duramente combatidos na academia e fora dela.
Em
"Identidades Brasileiras" (tópico 3 do capítulo
1), Marques de Melo já no título evoca Néstor
García Canclini, outro pesquisador das lógicas
do desenvolvimento latino-americano, ao vislumbrar as "Estratégias
para sair do Gueto Acadêmico". Tal capítulo
delineia a definição (Schramm) da comunicação
como "processo social básico", com amplitude
cognitiva e pluralidade metodológica específica.
Esta definição implica, portanto, em não
considerar a comunicação como "campo exclusivo"
de estudos dos comunicólogos, mas sim de qualquer disciplina
relacionada com a sociedade e o comportamento humano.
Talvez
devido a esta característica de praticidade e interdisciplinaridade,
infere o autor, os primeiros cursos atuassem como instâncias
de formação profissional, só mais tarde
adquirindo a tendência de "experimentalismo"
ou de "pesquisa aplicada". Porém, conclui,
a imposição de currículos e o fosso entre
cursos e profissão acabaram mesmo por reprimir as demandas
locais e regionais.
Esta
vocação para a interdisciplinaridade, o perfil
multifacético e o aparecimento de novas subáreas
(resultantes da fusão entre indústria de serviços
e telemática) pressupõem a articulação
de complexos blocos cognitivos na formação dos
profissionais, como conceitos comunicacionais, processos midiáticos
e conteúdos culturais, preferencialmente sempre em
gravitação no entorno local/regional.
No
capítulo 2, a obra abrange em seu primeiro tópico
a gênese e o desenvolvimento da Escola Latino-Americana
de Comunicação (ELACOM). Com a tarefa de preservação
da memória de seus pensadores, o ganhador do Prêmio
Wayne Danielson de Ciências da Comunicação
de 1997 descreve o panorama histórico dos cinqüenta
anos de pesquisa na América Latina a partir de suas
origens em ambientes tipicamente profissionais, das pesquisas
de sondagem eleitoral feitas pelo IBOPE desde 1942 e do lançamento
em 1946 do primeiro ensaio sistemático sobre imprensa
e jornalismo.
São
estudos voltados para formação da consciência
política do cidadão e incluem núcleos
como o CEREN (Chile), ILET (México), ININCO (Venezuela),
CELADEC (Peru), Centro Gumilla (Venezuela) e CEMEDIM (Cuba),
produzindo trabalhos de perfil civilista com forte influência
da teologia da libertação, dos postulados estruturalistas,
do funcionalismo americano e, principalmente, da teoria crítica
negativista da Escola de Frankfurt.
Após
este período, já nos anos 80, ocorre a desideologização
e progressivo desaparecimento destas instituições,
resultado da crise de paradigmas das esquerdas e do papel
decisivo do mercado. Tais correntes são substituídas,
nos cursos de pós-graduação, pelas emergentes
e importadas teorias pós-modernas, semióticas
e neoliberais. O autor demonstra como as construções
científicas autóctones, entretanto, persistem
em seu hibridismo teórico e metodológico, lutando
contra os modismos e preconceitos teóricos e se expandindo,
a partir da relativização territorial das fronteiras
nacionais.
A
participação brasileira neste processo, como
destaca Marques de Melo, é de fundamental importância.
Para ilustrá-la, o autor inventaria o universo da comunicação
no Brasil, listando escolas, trabalhos, segmentos, número
de estudantes, docentes, revistas, associações
e entidades (em ciência aplicada, fenomenologia e teoria),
que indicam a vitalidade da comunidade brasileira de comunicólogos.
O
autor conclui que os intercâmbios entre universidades,
fundações e institutos de pesquisa diversos
propiciaram tal estágio avançado de nossa comunidade
acadêmica.
No
tópico 2 do segundo capítulo, o autor abrange
a simbiose entre Política e Comunicação
Massiva na América Latina, cuja população,
"amordaçada" desde a colônia, sofre
um bloqueio simbólico e onde os meios comunicacionais
são censurados por seu potencial político revolucionário.
Marques de Melo descreve a infiltração da política
na mídia massiva como uma "síndrome do
espelho", uma situação de dominação
e conquista do poder, que só seria parcial e provisoriamente
atenuada quando do aparecimento dos meios eletrônicos,
considerados inofensivos de início.
Neste
contexto, a dimensão política passa a ocupar
papel central na pesquisa latino-americana, superando análises
sobre outras variáveis como cultura, tecnologia ou
psiquismo. Marques de Melo inventaria tal produção
(novamente dividida em comunicação histórica,
bélica, utópica e utilitária) sobre a
comunicação política, que invariavelmente
utiliza uma retórica apocalíptica para abordar
o papel da comunicação de massas na sociedade
capitalista, gerando desdobramentos temáticos como
luta de classes, resistência comunicacional, conflitos
raciais, genocídio cultural, censura, militarismo,
dominação ideológica e outros.
O
balanço do autor neste tópico esboça
uma perspectiva diacrônica (que nos anos 60 e 70 evidencia-se
por uma atuação coletiva e democratizante e
nos anos 80 por uma atuação inorgância
e instrumentalizadora) e sincrônica (indicada por características
de atomização, defasagem e assimetria dos estudos).
A presença do Brasil no cenário da ELACOM é
aprofundada no capítulo seguinte. No século
XIX, quando as imprensas nacionais se distanciam dos padrões
hegemônicos europeus ocorre o início da produção
autóctone latino-americana, que apenas se consolida
na segunda metade do século XX. O autor localiza na
teoria da dependência e na teologia da libertação
as matrizes ideológicas que definem esta identidade
autônoma.
Como
destacado anteriormente, o processo passa por uma geração
de pioneiros, inovadores e renovadores, esta última
obstruída em sua época pelos regimes autoritários
da região (diáspora intelectual). Nos anos 90,
as três gerações finalmente se encontram
no I Congresso Latino-Americano de Ciências da Comunicação,
promovido pela ALAIC, culminando sua trajetória histórica
como organismo multifacetado e confirmando sua vitalidade
nos "continuadores" que ali emergem.
De
fato, o conhecimento especificamente brasileiro se caracteriza,
de acordo com Marques de Melo, pela diversidade temática
e pela pluralidade genealógica. O autor indica que
a influência brasileira seria ainda maior na ELACOM
não fosse a barreira lingüística que nos
separa dos hispano-americanos. No entanto, o intercâmbio
e a projeção do pensamento comunicacional brasileiro
têm crescido graças à nossa capacidade
de inovação, "hibridizando signos, mesclando
conteúdos, rompendo bloqueios cognitivos".
Como
representantes da maturidade e singularidade de nosso pensamento
comunicacional e como reconhecimento de importância
acadêmica, o CELACOM 2000 escolheu as trajetórias
intelectuais de Décio Pignatari (pioneiros), Muniz
Sodré (inovadores) e Sérgio Caparelli (renovadores)
como autores emblemáticos para resgate crítico.
Na seqüência, Marques de Melo elabora um "Roteiro
para uma História das Ciências da Comunicação
no Brasil", apontando como pano de fundo as "convergências
e tensões entre saberes profissionais, pragmatismo
empresarial, estratégias governamentais e investigação
acadêmica". Inicia definindo como marco fundador
do estudo sistemático dos fenômenos comunicacionais
a tese de doutorado sobre jornalismo de Tobias Peucer, defendida
na Alemanha em 1690, e como ponto culminante o breve século
XX nos EUA, quando os estudos são acolhidos pela universidade
e valorizados pelo sistema empresarial e pelo governo.
A
constituição da comunidade acadêmica mundial
nesse ramo se dá após a II Guerra Mundial, com
a fundação da IAMCR em 1957, num quadro que
gerou uma tensão crescente entre os "saberes profissionais
e a reflexão crítica dos processos midiáticos"
e que se esgotaria agora, com a sociedade global de informação.
No Brasil, ensina Marques de Melo, o campo se iniciou há
mais de 50 anos, com as primeiras escolas de jornalismo, e
se ampliou com um perfil híbrido (acadêmico e
profissional) nos anos 60, com a incorporação
de novos segmentos e o início de atividades regulares
de pesquisa.
O
autor divide a história das ciências da comunicação
no Brasil em cinco fases, das quais faz um resgate detalhado:
Desbravamento (1873-1922), imprensa como objeto de pesquisa
de intelectuais; Pioneirismo (1923-1946), empirismo com argumentação
jornalística; Fortalecimento (1947-1963), primeiros
cursos universitários; Consolidação (1964-1977),
apogeu da indústria cultural; e Institucionalização
(1978-1997), intercâmbio de pesquisadores e formação
da comunidade acadêmica. Ainda mergulhados nesta última
fase, enfrentamos o dilema da busca de fortalecimento de uma
identidade própria e autônoma para nossa incipiente
comunidade de pesquisadores, que ainda assim permanece entre
os líderes da comunicologia mundial, ao menos em termos
quantitativos.
Sobre
a formação da comunidade acadêmica de
Portugal, país pioneiro na assimilação
das inovações tipográficas, mas o último
a criar escolas de jornalismo (o fez apenas em 1979, após
o ciclo autoritário de Salazar), Marques de Melo dedica
o segundo tópico do capítulo 3. Nele, destaca
a explosão e diversificação dos estudos
nas universidades portuguesas, orientados para aspectos teóricos
do campo e para a formação de recursos humanos.
Em 1997, ocorre o rompimento do isolamento desta comunidade,
após o I Encontro Lusófono de Ciências
da Comunicação, onde a delegação
brasileira marcou forte presença e que gerou diversos
outros encontros. Marques de Melo observa que, com comunicações
ainda situadas no terreno do ensaísmo e reduzidas incursões
no terreno empírico, os portugueses demonstram um afã
crescente pelo reconhecimento na sociedade civil, sugerindo
um desejo de "queimar etapas na legitimação
social da nova comunidade acadêmica".
Em
seguida, é analisado o papel da INTERCOM na legitimação
do campo comunicacional. Após 25 edições,
os encontros anuais da INTERCOM representam a inserção
de todas as regiões brasileiras no mapa da comunicação
e assinalam a maturidade quantitativa da comunicação
no Brasil. Além disso, o diálogo com as Américas
e países europeus é potencializado pelo intercâmbio
acadêmico através de colóquios.
Os encontros crescem a cada ano em número de inscritos
e trabalhos apresentados, respaldados por eventos paralelos
de grande importância que atestam a "sedimentação
do campo comunicacional na sociedade brasileira". Na
pauta destes encontros, por exemplo, temos estudos sobre o
ciberespaço, práticas de leitura, o futuro da
mídia impressa e as novas perspectivas abertas pela
informática. Marques de Melo assinala que agora é
necessário transformar "quantidade em qualidade".
O
tópico 4 traz a recente cooperação acadêmica
luso-brasileira. A profissionalização da área
é destacada pelo autor como ponto de partida para as
"atividades universitárias nos campos do ensino
e da pesquisa da comunicação" entre os
dois países. Os contatos diretos evoluíram com
a criação do PORTCOM. A partir daí, o
intercâmbio de cooperação intelectual
se desenvolveu e nos anos 90 diversas iniciativas e encontros
consolidaram a experiência luso-brasileira, podendo-se
prever que a comunidade lusófona conquistará
a liderança global no Campo das Ciências da Comunicação
(já é o segundo produtor de conhecimento midiático
no mundo contemporâneo). (Uma curiosidade neste tópico:
o fato de Marques de Melo ter um texto seu escrito em português
traduzido em Portugal a partir de uma edição
espanhola).
Em
"Conhecimento Midiático Brasileiro. Estudos de
Mídia: Identidades e Fronteiras", Marques de Melo
organiza um projeto temático comparativo para delinear
as fronteiras geoculturais e sócio-científicas
que marcam o sistema midiático brasileiro na conjuntura
histórica da globalização. A meta é
construir uma memória da midiologia brasileira e compreender
as singularidades gnosiológicas da Comunicação.
Para
isso, o autor faz uma extensa revisão da literatura
científica, reconstrói sua trajetória
acadêmica e detalha os objetivos do projeto: "inventariar
criticamente os processos de produção e difusão
do saber midiático construído no Brasil"
(através da análise da memória midiológica
brasileira e da difusão dos paradigmas da ELACOM) e
"estudar fenômenos conjunturais inerentes aos sistemas
midiáticos brasileiros na transição milenar,
procurando compreender como as nossas organizações
produtoras de bens simbólicos massivos articulam identidades
globais/nacionais/regionais" (através da análise
das identidades midiáticas brasileiras e dos processos
midiáticos religiosos).
Finalizando
a primeira parte, o "desafio da renovação"
resgata a gestação, as características
e desafios da INTERCOM como principal entidade no país
a buscar "pluralismo teórico, diversidade metodológica
e liberdade de expressão" nos estudos sobre comunicação.
Com marcas como o internacionalismo acadêmico e a cooperação
profissional, a INTERCOM tem como meta "constituir um
corpus cognitivo vocacionado para respaldar a formação
dos profissionais da mídia nos cursos superiores mantidos
pelas universidades em todo o país". As estratégias
adotadas para tanto foram os encontros anuais (estímulo
à crítica coletiva), canais de difusão
periódica do saber acumulado (fomento aos paradigmas
factíveis de assimilação e reprodução
crítica pelas novas gerações) e espaços
de interlocução acadêmica (mobilização
das emergentes comunidades regionais).
O maior desafio, no entanto, é "a nucleação
dos associados em torno de objetos de pesquisa ou de áreas
de interesse cognitivo". Isto porque a atenção
dos pesquisadores ainda gira em torno dos modismos internacionais
(charco exógeno) e das hegemonias conjunturais. Três
tentativas já foram realizadas (grupos de estudos no
final dos 70, grupos de trabalho em meados dos 80 e núcleos
de pesquisa no final dos 90), e a grande responsabilidade,
assevera Marques de Melo, é "a sistematização
do acervo cognitivo aplicado nas indústrias midiáticas,
ou estocado nas habilitações profissionais legitimadas
pela academia e nas disciplinas conexas das ciências
humanas e das tecnologias, construindo um corpo teórico
capaz de se tornar evidente, fortalecendo o pensamento comunicacional
brasileiro".
Só
assim nossas "vanguardas universitárias"
perderiam seu complexo de vira-lata.
Na
parte II do livro, "Personagens", Marques de Melo
recupera os primeiros indícios de estudos científicos
sobre os fenômenos comunicacionais na América
Latina, o denominado "ciclo precursor", e traça
o perfil intelectual dos cientistas basilares no Brasil, na
América Latina e nos EUA. Para isso, inventaria os
registros pioneiros no século XIX e início do
século XX, na Argentina, Bolívia, Colômbia,
Chile e Brasil. Enumera algumas das primeiras pesquisas brasileiras
sobre a imprensa, editadas na primeira tipografia oficial
brasileira: a Impressão Régia, instalada por
D. João, Regente de Portugal, ainda no início
do século XIX.
Sobre
o cenário brasileiro, o autor adota como referência
para o início da moderna bibliografia comunicacional
a publicação, em 1946, da obra de Carlos Rizzini,
"O livro, o jornal e a tipografia no Brasil", que
é lançada paralelamente à inauguração
das primeiras instituições universitárias
nacionais nessa área, como a Escola de Jornalismo da
Universidade do Brasil (1946), hoje UFRJ. Outras escolas apareceriam
nos anos 60, como a Faculdade de Comunicação
de Massa em Brasília (UnB, 1963), o Instituto de Ciências
da Informação em Recife (Unicap, 1963), a Escola
de Comunicações Culturais em São Paulo
(USP, 1966) e o Centro de Pesquisa da Comunicação
Social, também em São Paulo (Faculdade Cásper
Libero, 1967).
As
primeiras sociedades de pesquisadores surgiriam na década
de 70, como a ABEPEC (1972) e a INTERCOM (1977), e seriam
seguidas nas décadas seguintes por novos organismos
corporativos, como a ABECOM (1984) e a COMPÓS (1991).
A década de 90, aliás, é destacada por
Marques de Melo como o momento de projeção da
produção brasileira, que desperta o interesse
de entidades como a IAMCR e a ALAIC, que aqui realizam encontros
de intercâmbio.
Marques
de Melo reafirma a necessidade da construção
de uma "arqueologia intelectual", através
do desenvolvimento de um banco de dados que delineie a gênese
do núcleo em consolidação e mapeie constantemente
a memória dos seus precursores. Para fomentar a discussão
das principais tendências teóricas e metodológicas
aqui desenvolvidas, Marques de Melo lança a idéia
de um "diagnóstico situacional", que serviria
de ponto de partida para a montagem de um perfil detalhado
de nossa comunidade acadêmica.
O
desafio de construir biografias dos cientistas e personalidades
marcantes é levado a termo junto à Cátedra
Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento
Regional, instalada na Faculdade de Comunicação
e Artes da Universidade Metodista de São Paulo e que
inspirou o projeto-piloto. O autor assim esquematiza a pesquisa:
Grupo Gaúcho (divididos em "desbravadores",
"sedimentadores" e "continuadores"); Grupos
do Centro-Oeste (onde foi implantado o primeiro programa de
pós-graduação do país) e Grupo
de São Bernardo (três gerações
de perfil vanguardista e integracionista que privilegiam o
dialógico, o popular e o alternativo). Vale ressaltar
que, talvez por estar ligado à (e à frente da)
Metodista quando da preparação do livro, Marques
de Melo descreve com minúcias os projetos científicos
desta instituição, como a significativa rede
nacional de pesquisadores voluntários e o Acervo do
Pensamento Comunicacional Latino-Americano.
Nesta
linha de resgate da memória, Marques de Melo passa
então a descrever alguns dos mais significativos pioneiros
dos estudos de comunicação no Brasil e no mundo.
Como precursor da teoria brasileira de comunicação,
destaca Frei Joaquim do Amor Divino, o Frei Caneca (1779-1825),
mítico personagem que incorpora o perfil de herói
mestiço em nossa história republicana, além
do papel desbravador dos padres Anchieta e Vieira. Sobre a
obra retórica e as reflexões político-filosóficas
de Frei Caneca, o autor registra o "pragmatismo utópico"
e o "ideário iluminista", configurados a
partir dos paradigmas aristotélicos reelaborados por
Quintiliano.
Muito
tempo depois, o clamor por um curso específico de jornalismo,
feito em 1918 durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas,
só foi atendido em 1947 com a criação
da Escola de Jornalismo Cásper Líbero, em São
Paulo.
Pouco
antes, houve a primeira Cátedra de Jornalismo do Brasil
na Universidade do Distrito Federal, implantada por nosso
primeiro catedrático, Pedro da Costa Rego Filho (1889-1954),
jornalista, político e intelectual alagoano que, segundo
o autor, está indevidamente esquecido em nossos dias.
Marques de Melo efetua uma análise da conjuntura e
revela o papel crucial deste precursor em pleno Estado Novo.
Outro
pioneiro, porém dos estudos midiáticos, Carlos
Rizzini (1898-1972) recebe de Marques de Melo o tratamento
de um prático que migrou para a academia e lançou
as bases da nova disciplina comunicacional. Carioca por adoção,
mas paulista por nascimento, Rizzini emerge do texto de Marques
de Melo em toda sua importância de jornalista, professor
e pesquisador autodidata, que nos legou o modelo profissionalizante
e prático do ensino do jornalismo desde então
adotado em algumas escolas de nosso país, como a ECA.
Já
Luiz Beltrão de Andrade Lima (1918-1986) se evidencia
no contexto da literatura comunicacional brasileira por ter
criado a Folkcomunicação, comunicação
em nível popular através do folclore. Desde
1997, Beltrão é homenageado com a atribuição
anual do Prêmio Luiz Beltrão de Ciências
da Comunicação, da INTERCOM, que reconhece o
valor do fundador do primeiro centro nacional de pesquisas
acadêmicas sobre comunicação, o ICINFORM,
criado por ele em Recife em 1963.
Além
de criar a primeira revista científica brasileira dedicada
a temas comunicacionais (Comunicações &
Problemas), foi também o primeiro Doutor em Comunicações
diplomado no Brasil. Seus estudos trouxeram para a arena investigativa
o público marginalizado urbano e rural e foram os primeiros
no Brasil (a partir de desdobramentos da hipótese de
Lazarsfeld e Katz) a refutar a idéia de onipotência
midiática. Com a tese mais original das contribuições
brasileiras à teoria da comunicação,
Beltrão foi prejudicado e censurado pela conjuntura
política em sua época, porém na atualidade
seu pensamento se expande por todos os países lusófonos
e América Latina.
Após
estes autores paradigmáticos brasileiros, a obra destaca
alguns pesquisadores internacionais, iniciando por Raymond
Nixon (1903-1997), mestre de Marques de Melo nos EUA e um
dos artífices da comunidade internacional dos midiólogos.
Esteve presente na criação da IAMCR, sociedade
mundial de estudiosos dos fenômenos da comunicação
de massa, e de outras entidades. Pesquisador dos fenômenos
noticiosos e das suas conexões com as estruturas do
poder, Nixon dedicou-se ao estudo da liberdade de imprensa
no mundo contemporâneo. Fascinado pela América
Latina, muito contribuiu para o desenvolvimento do ensino
na região, sendo inclusive que o acervo de jornais
do mundo todo que doara ao Museu da Imprensa acabou destruído
durante a ditadura militar brasileira, por suspeitas de subversão
em seus conteúdos internacionais.
Da
contemporaneidade, emerge outro inovador da escola norte-americana.
Elihu Katz rebateu as teses apocalípticas que "atribuíam
aos meios de comunicação um papel determinante
na formação das consciências individuais
e nas tendências da opinião pública".
Formulou a teoria dos usos e gratificações,
que demonstrava o papel ativo de recodificação
das mensagens pelas audiências massivas. Posteriormente,
pesquisou os fluxos dos espetáculos midiáticos
("a mídia rouba à sociedade o sentido de
ocasião") e escreveu também sobre as potencialidades
da televisão educativa no Brasil. Como o próprio
Marques de Melo, recebeu o Prêmio Wayne Danielson, na
edição de 1996.
Da
Escola Latino-Americana, que corre o risco de ser esquecida
em sua própria região, o autor destaca o boliviano
Luiz Ramiro Beltrán, com estudos reconhecidos mundialmente
(mas patrulhados no próprio continente), que ressaltam
a singularidade do pensamento comunicacional latino-americano
("via mestiça de análise") e contribuem
para a formulação das Políticas Nacionais
de Comunicação.
Quanto
a Jesús Martín-Barbero, Marques de Melo o insere
como o maior inovador da Escola Latino-Americana de Comunicação.
Suas análises da hibridização criativa
entre mídia massiva e cultura popular e sobre as mediações
utópicas são atualmente postulados internacionalmente
reconhecidos. Para quem não conhece tais postulados,
seu conceito de mediação fica patente em escritos
como "De los medios a las culturas", cujo foco é
a análise das transformações da sensibilidade
e dos modos de percepção que surgem nas massas
em função da técnica.
Por
fim, o tomo traz breve perfil intelectual do autor, insuficiente
e incompleto para dar conta de uma existência inteiramente
dedicada à consolidação do conhecimento
em comunicação no Brasil e na América
Latina, exemplo de persistência, coerência e capacidade
intelectual para as novas gerações. Primeiro
Doutor em Jornalismo do país, Marques de Melo se confunde
com a história desta disciplina em nossas terras e
teve a rara satisfação de ser mundialmente reconhecido
em vida, objeto que é de inúmeras homenagens.
Seu fôlego de educador, no entanto, parece não
se esgotar, assim como sua missão de artífice
do conhecimento comunicacional, que ainda nos legará
muitos outros trabalhos, sempre voltados para o fortalecimento
da cidadania e para a independência do pensamento.
Apesar
da disparidade de épocas e contextos em que os textos
foram escritos, o que poderia resultar em uma obra desigual,
e da repetição inevitável da estrutura
temática, pela natureza cíclica dos escritos
reunidos, o livro possui uma fluidez ímpar e abrangente,
que revela ao pesquisador iniciante parte considerável
de tudo o que se pensou em comunicação no Brasil,
restando a ele, leitor, a sensação de felicidade
por compartilhar da contemporaneidade de Marques de Melo e
o estímulo intelectual necessário para contribuir
com uma luta tão genuinamente brasileira e sincera.
Esta
resenha, portanto, não tem o intuito de esgotar com
breves comentários e resumos a amplitude e riqueza
de uma obra construída ao longo de mais de três
décadas de reflexão, mas somente de apresentá-la
aos novos pesquisadores e estimulá-los à sua
leitura indispensável.
Afinal,
como o autor escreve na página 270, "o imperfeito
concretizado é melhor que o impecável arquivado".
*Marcelo
Januário é jornalista e mestrando na ECA/USP.
Voltar