Nº 12 - Nov. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



MONOGRAFIAS
 

Limites e possibilidades
Reflexões sobre a práxis comunicacional em rede

Por Xenya de Aguiar Bucchioni*

RESUMO

O presente texto tem por finalidade problematizar as concepções teóricas que valorizam os aspectos técnicos das novas tecnologias de informação e comunicação.

Mesmo reconhecendo as transformações ocasionadas pela adoção de tais ferramentas no âmbito da informação e da comunicação, entendemos que elas são operadas pelo homem o que nos leva a considerá-las como parte integral de um processo de mudança, no qual, autores como Wolton, Matellart e Sodré, dentre outros, nos alertam para a necessidade de se pensar os aspectos sociais e culturais envolvidos na comunicação e no uso da informação na época da Internet.

Reprodução

Assim, o texto enfatiza a importância de se pensar o processo comunicacional na sua dimensão sociocultural como forma de superar as visões mais preocupadas com os aspectos técnicos e como maneira de se proceder na análise e compreensão das novas tecnologias tanto no seu uso como no conteúdo que veiculam e socializam.

PALAVRAS-CHAVE: Práxis Comunicacional / Novas Tecnologias / Sujeito

1. Introdução

É bastante comum, nos estudos que tratam de tecnologias de comunicação e informação, a ênfase nos artefatos digitais. O olhar com foco no artefato impulsiona as pesquisas a se deterem na potencialidade e limites do mesmo, o que permite esboçar um quadro previsivo sobre o objeto de estudo. No entanto, na maioria dos casos se esquece do sujeito por detrás do processo, ou melhor, tende-se a tratá-lo de maneira idealizada, quando na verdade uma mesma tecnologia, em seu processo de adoção e internalização – até integrar-se naquilo que Barbero (2003) chamou de cotidianidade – sofre as variáveis do contexto sócio-cultural de sua implantação.

Ou seja, quando se trata da relação entre tecnologia e sociedade há de se interrogar sobre as formas com as quais determinada tecnologia participa da configuração da cultura e da sociedade em geral, e como estas, por sua vez, constroem um contexto de desenvolvimento tecnológico [1]. Freqüentemente, como aponta Estalella (2007) o desenvolvimento dos artefatos tecnológicos é visto como algo externo e determinante das realidades sociais, o que para o autor seria um ponto de partida superficial, já que o verdadeiro objeto de investigação não deve ser o artefato em si, mas sim os sistemas sociotecnológicos em que os mesmos se inscrevem.

Explicar as transformações sociais e a evolução da sociedade a partir da evolução dos artefatos tecnológicos garante, para Barbero (2003), uma visão meramente instrumental do processo.

Milton Santos (2008), ao avaliar as mudanças no decurso da chamada globalização, aponta para a necessidade de se levar em conta as técnicas e o estado da política nesse processo. Isso porque, para o autor, a globalização é mais do que um novo sistema de técnicas, que permite, sobretudo, o surgimento de um mercado global. Estamos, antes, diante de ações que asseguram a emergência desse mercado, ações de cunho político.

A partir dessas observações Santos (2008) pondera que há uma certa tendência em separar uma coisa da outra, o que caracterizaria um erro na medida em que se explicaria a história humana de maneira separada. “As técnicas são oferecidas como um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos momentos e dos lugares de seu uso” (Cf. SANTOS, 2008:24). Segundo o autor, somente assim é que se faz história, pois nenhuma técnica surge de maneira isolada, pelo contrário, cada sistema técnico é representativo de sua época, as tecnologias são criadas pelo homem de acordo com o contexto histórico no qual estes se inserem.

Assumir tal perspectiva significa (re) contextualizar o papel do sujeito no processo de desenvolvimento tecnológico e, mais do que isso, compreender os limites, conflitos e as diferenças que lhe são intrínsecos. Desta forma, o que se pode dizer a respeito das transformações tecnológicas a partir do século XX é que estão, cada vez mais, ligadas as tecnologias de informação, processamento de dados e comunicação, o que modifica sensivelmente a esfera econômica, política, social e cultural. Castells (1999) pontua, de maneira clara e acessível, a lógica do “informacionalismo” ao caracterizá-lo pela capacidade de transformar todas as informações em um sistema comum de informação, processando-as em velocidade e capacidade crescente a um custo cada vez mais reduzido em uma rede de recuperação e distribuição ubíqua.

No plano econômico, tais mudanças significam uma reestruturação dos fluxos financeiros e a organização da economia baseada em redes eletrônicas, cujo aperfeiçoamento das tecnologias de informação são vitais para sua manutenção. Na esfera da comunicação, a crescente “oferta” de informação coloca em xeque o próprio conceito de comunicação, à medida que a diferenciação entre informação e comunicação tornou-se muito tênue.

Estar conectado, on-line ou em rede parece, num primeiro momento, a garantia de uma liberdade infinita de expressão, ou seja, uma prática libertária de estar em relação com o outro, se comunicando. No entanto, como observa Wolton (2006) a comunicação é sempre um processo mais complexo que a informação, não é somente transmissão, implica a relação emissor-mensagem-receptor num processo de apreensão que envolve riscos e conflitos. Nessa relação comunicação / informação, levando-se em conta a dimensão social e cultural na qual esta ocorre, é que se opera todo um discurso para aliar tecnologia e progresso social.

Para Mattelart (2004), a idéia da tecnologia promotora de igualdade, liberdade e solidariedade, é composta de armadilhas, pois na legitimação da ‘sociedade da informação’, enquanto novo paradigma dominante, estaria mascarada a ausência de um projeto social. “Sob o mito da tecnologia salvadora transparece a materialidade de um esquema operatório de remodelamento da ordem econômica, política e militar em escala planetária” (Cf. MATTELART, 2002:8).

Um mundo conectado não é um mundo integrado, quanto mais as mensagens se globalizam, mais as diferenças culturais se afirmam e, por quê não, a dificuldade em se comunicar? Para Wolton (2006), do ponto de vista técnico há inúmeras facilidades de interação, mas, quando se dá mais desenvolvimento nesse sentido, percebe-se uma dificuldade maior nas esferas social e cultural para que a comunicação se diferencie da informação e preserve seu caráter mais humanista.

Tal apontamento se faz necessário para apreender aquilo situado por detrás do artefato, como os jogos de poder, as negociações, os interesses de grupos econômicos, projetos políticos etc. Assim, como o próprio Mattelart (2004) aponta, o grande avanço atual estaria em pensar o técnico e o social não mais como mundos separados e sim integrados o que implica reconhecer que há um mundo social e representação social embutido no artefato tecnológico.

Há uma multiplicidade de enfoques para analisar as implicações da tecnologia na vida social. No presente artigo descarta-se o debate de viés determinista, que busca atribuir toda mudança social à tecnologia, ou a implantação dos artefatos tecnológicos como porta  de entrada ao progresso social. Por outro lado, essa opção não significa assumir um ponto de vista catastrófico.

Antes de nos apressarmos em dizer que estamos diante de uma sociedade totalmente nova somente por conta dos avanços tecnológicos, devemos nos questionar sobre os usos e relações que os homens fazem das tecnologias de comunicação e informação em seu cotidiano. Talvez, dessa forma, possamos entender como o homem transforma a tecnologia e, ao mesmo tempo, esta lhe transforma.

A seguir, o presente artigo procura questionar, justamente, essa ideia de uma nova sociedade, voltando-se ao lugar ocupado pelos sujeitos nesse processo de avanço tecnológico e suas relações com as possibilidades abertas pela virtualização.

2. Internet e novas sociabilidades

A Internet, hoje, é mais do que tecnologia. Além de meio de comunicação, a rede é, também, um meio de interação e organização social. O universo virtual possibilitado pela internet permitiu aos indivíduos a criação de comunidades virtuais, a troca, compra e venda de mercadorias, o conhecimento de outras culturas, línguas e países.

Para Castells (1999) a sociabilidade está em plena transformação devido a essas interações eletrônicas – não físicas –, o que não significa que estejamos diante de uma sociedade totalmente nova. Para o autor, o que vemos é a apropriação da internet por redes sociais, empresas, grupos minoritários etc. Ou seja, Castells (1999) não compartilha da idéia da virtualidade enquanto substituta da realidade e a tecnologia como dominadora do homem.

Pelo contrário, as pessoas moldam e adaptam a tecnologia de acordo com suas necessidades, conclui o autor. Para Sodré (2002) estaríamos diante de uma mutação tecnológica – muito mais do que uma verdadeira revolução –, a qual tem por característica a hibridização dos recursos técnicos já existentes em novas formas e, ao mesmo tempo, a hibridização, também, das velhas formas discursivas (texto, som e imagem), sendo as últimas, responsáveis pelo surgimento do que chamamos de hipertexto ou hipermídia.

O que há de novo, ainda segundo o autor é a possibilidade da criação de outros mundos possíveis: simultaneidade, instantaneidade e a criação de ambientes virtuais ou espaços simulativos onde se configuram e se movimentam novos sujeitos sociais. A atenção aos sujeitos serve como elemento questionador dessa noção de novidade, pois ao observar a evolução das técnicas somos tentados a legitimar a tal “Revolução Informacional”, mas, como adverte Sodré (2002), o quanto as transformações tecnológicas mostram-se, em verdade, conservadoras das velhas estruturas de poder?

Em seus estudos Hine (1998) se concentra em entender não apenas como as pessoas usam a internet, mas também as práticas que conferem significado a esse uso em contextos locais. Quando se trata da internet é preciso aprender além dos manuais técnicos e interpretar aquilo que se lê na tela gélida do computador e também saber como utilizar o teclado de modo que aquilo que se escreve possa ser apreciado por alguém.

Para Hine (1998) precisamos entender as relações sociais que transformam a internet em algo significativo para as pessoas. Nesse sentido, um caminho possível é aquele que retoma a importância do sujeito virtual no processo de construção desse espaço sintético proporcionado pela internet, comumente chamado de ciberespaço. Mayans i Planells (2006), em sua pesquisa com comunidades virtuais, afirma que há de se trabalhar esse espaço enquanto espaço social praticado e aponta para sua aparente banalidade, composta por conversações efêmeras, frágeis e fragmentadas, fato que, por vez, aponta o ciberespaço como um lugar ‘pouco sério’.

O interessante nos trabalhos desse autor é que, ao longo de sua pesquisa em chats,  Mayans i Planells (2006) foi percebendo que, justamente, esse banal possuía extrema relevância:

En la sucesión de chistes, burlas, juegos y comentarios banales sobre la actualidad o sobre el medio, se estaba produciendo, en realidad, un proceso constante de aseveración del vínculo y la significatividad social del propio espacio y del propio grupo social, por inestable y cambiante que éste fuera. En cada una de las palabras tecleadas rápidamente, con abreviatura y faltas de ortografia, que corrían por la pantalla condenadas a desaparecer al cabo de un par de minutos, se encontraban las auténticas partículas atómicas de la sociabilidad. (MAYANS I PLANELLS, 2006).

A essa virtualização das relações humanas, Sodré (2002) emprega o conceito de midiatização, o que caracteriza a criação de um novo bios (agora midiático), ou seja, um âmbito onde se desenrola a existência humana. Essa nova condição implica numa transformação das formas tradicionais de sociabilização e, mais significativamente, de um novo tipo de relacionamento do indivíduo com referências concretas. A midiatização confere à sociedade novas formas de perceber, pensar e contabilizar o real. Para o autor, as tecnointerações possibilitadas pela mídia tornam o próprio sujeito suscetível a converter-se em realidade midiática.

A existência humana encontra-se materializada no bios midiático, onde a produção performática confere uma interpretação distorcida da realidade. Cabe salientar que o termo midiatização difere do conceito de mediatização, pois trata a comunicação enquanto processo informacional, ou seja, vinculada à técnica e industrialmente redefinida pela informação.

Pensar a comunicação desta forma requer considerar sua dimensão societal comprometida com uma forma específica de hegemonia do capitalismo (agora informacional) a serviço do mercado, como Sodré (2002) observa. Isso não significa, no entanto, reduzir os sujeitos apenas à condição de alienados. O que parece ser a faceta mais significativa do processo atual do desenvolvimento tecnológico e seu atrelamento à comunicação, é refletir sobre as alterações do self, de maneira a questionar os sujeitos envolvidos nesse esquema operatório, e também, repensar os limites das interações em rede no estabelecimento de uma práxis comunicacional.

Como pudemos observar nas linhas anteriores existe uma transformação ocasionada pelo homem inserido no contexto social mediado pela Internet. No entanto, isso não significa que devamos pensar que a sociedade e, mais concretamente, o ser social que vive em tal instituição (o homem) não deva ser levado em consideração como elemento vital na materialização dessas novas configurações. Esse será o ponto que trataremos a seguir.

3. O sujeito por detrás das novas tecnologias de comunicação

Dominique Wolton (2002), ao discorrer sobre os argumentos para a integração da Europa em rede – com a interconexão de universidades e centros de investigação – questiona os apelos à construção de um “saber europeu”. Para o autor, a facilidade de acesso a dados e informações está distante do quadro real, onde estão as verdadeiras dificuldades para se estabelecer uma integração cultural. “A noção de integração possui outros fundamentos.

Ela requer a presença de relações sociais e não apenas a materialidade da técnica” (ORTIZ, 2006). Para o autor, ainda que a comunicação seja um dos pilares da interação social, há de se levar em conta o papel das instituições, dos processos socializadores, além das diferenças de padrões culturais entre os indivíduos. Como bem aponta Ortiz (2006), em alguns casos, a conexão técnica segrega, ainda mais, determinados grupos de indivíduos, por exemplo, identidades religiosas que reforçam sua memória coletiva no ciberespaço.

Para Wolton (2006), essa contradição existente entre a ascendência das possibilidades de conexão e o reforço/preservação da identidade corresponde a um duplo desafio inerente à comunicação: a relação entre eu e o outro.

Comunicar é ser, isto é, buscar sua identidade e sua autonomia. É também fazer, ou seja, reconhecer a importância do outro, ir ao encontro dele. Comunicar é também agir. Mas é igualmente admitir a importância do outro, portanto, aceitar nossa dependência em relação a ele e a incerteza de ser compreendido por ele. (Cf. WOLTON, D. 2006:15).

As facilidades na troca de mensagem e acesso aos receptores tornam mais visíveis as diferenças culturais e sociais dos processos de comunicação, revelando, por vezes, que a intercompreensão entre os indivíduos não é proporcional à eficácia das técnicas, como pontua Wolton (2006). Nesse sentido, a conexão em rede não garante, efetivamente, a práxis comunicacional, ou um comportamento mais cidadão, democrático, como alguns discursos querem fazer crer.

A visibilidade do mundo, como adverte Wolton (2006) não basta para torná-lo mais compreensível e isto se deve, entre outras coisas, ao fato de que visibilidade não é comunicação. Ora, se a identidade se constrói por oposição (“eu” e o “outro”), estar conectado ao mundo pode produzir o sentimento de ameaça, uma vez que expostos facilmente à diversidade cultural, devido ao avanço técnico, não compactuamos de maneira homogênea de um mesmo modelo cultural e social para que a comunicação se efetive.

Repensar o papel da comunicação nessa relação entre “eu” e o “outro” torna-se fundamental, bem como questionar a idéia disseminada da interatividade como forma de construção de “um mundo sem fronteiras” e admitir os conflitos existentes no processo comunicacional, para além da transmissão de informação, o que implica em assumir certas fragilidades inerentes à comunicação.

Isso não significa estar alheio as mudanças que o “estar-conectado” proporciona, mas sim, como afirma Sodré (2006), retomar as relações entre mídia, sociedade e cultura e suas imbricações com o sujeito, entendendo as novas formas de vinculação propiciadas pela internet em seu paradoxo: como radicalidade da diferenciação e aproximação entre sujeitos. Ainda caberiam aqui outros questionamentos: Como os conflitos da esfera real atuam nessa comunicação em rede? Até que ponto o ciberespaço não reproduz determinados comportamentos presentes na sociedade?

De que maneira as relações de poder o permeiam?

Há de se salientar que a comunicação é um dos aspectos da cultura, um ponto importante para os indivíduos interagirem socialmente. Seguindo o pensamento de Wolton (2002), todos nós estamos atados a padrões culturais específicos. Por isso os constantes chamados de atenção, por parte desse autor, às outras duas dimensões da comunicação (além do aspecto técnico), que são:

1) o modelo cultural; e

2) a organização social.

Mayans y Planells (2006), durante a pesquisa etnográfica em chats pondera que o ciberespaço foi muito vislumbrado e celebrado como uma possível ágora eletrônica, no entanto o autor percebe essa visão como equivocada e reclama atenção para a predominância da dimensão social, em detrimento da política, afirmando que as conversações efêmeras e banais podem, chegado um determinado momento, se tornar comportamentos de grupos sociais.

Não são meramente uma questão de mais informação entre uns e outros, mas sim a falta de um quadro comum de interpretação da realidade. Segundo o autor, o compartilhamento em rede na Europa, depois da integração via União Européia, obteve muito mais sucesso no plano econômico, pois os diferentes padrões culturais tornam o compartilhamento muito mais difícil. Geertz (1989), em sua discussão sobre o ser-humano e sua relação com a cultura, a coloca em questão sobre outro foco: os mecanismos de controle.

Estes, segundo o autor, se oporiam a dimensão de costumes, usos, tradições, pois tem muito mais a ver com a idéia de planos, receitas, instruções para governar o comportamento humano. Assumir essa última perspectiva significa encarar a cultura enquanto pré-condição para a evolução humana e, mais do que isso, enxergá-la enquanto construção permanente e não como algo finalizado. Para Geertz (1989) o pensar consistiria num tráfego entre aquilo que foi chamado de símbolos significantes (palavras, gestos, música, desenhos etc.).

Estes, por sua vez, são utilizados para dar significado à existência humana. Nesse sentido os padrões culturais seriam “amontoados” ordenados de símbolos significantes criados historicamente pelo homem para encontrar sentido nos acontecimentos vividos. É importante salientar que o caráter público do pensamento, atribuído por Geertz (1989), relaciona-se ao fato dos símbolos já estarem presentes na sociedade desde o nascimento do indivíduo e, após a sua morte, continuarem a existir.

É por meio desse jogo de construção que a cultura se constitui num dos aspectos da evolução humana e adquire um caráter para além da concepção instrumental, sempre numa relação de via dupla com os homens, isto é, moldando-os e sendo moldada. Perceber esse mecanismo de interação nos possibilita repensar como o homem acumula, em sua formação, tais padrões culturais, ou seja, refletir sobre a construção da realidade humana e, sobretudo, entender o papel da informação nesse processo.

Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa cultura. (Cf. GEERTZ, 1989:36).

Num cenário onde as novas tecnologias de comunicação estão, cada vez mais, avançadas, no sentido de transmissão de dados, assistimos não só a uma intensa circulação de informação, mas também à mundialização dos símbolos, sem que isso signifique, no entanto, uma melhoria na intercompreensão entre os indivíduos, afinal o progresso das novas tecnologias de comunicação e informação mostram-se claramente relacionados a intensificação do modelo Ocidental de racionalidade, em detrimento a outras culturas e outros sistemas de valores. 

As reflexões de Thomspon (1998) sobre o self e a experiência guardam certa semelhança com o pensamento de Geertz (1989), no que diz respeito aos materiais simbólicos no processo de formação do self. O que, de fato, é importante observar em Thompson (1998), é a problemática gerada para os indivíduos a partir do deslocamento simbólico:

(...) num mundo onde a capacidade de experimentar não está mais ligada à atividade do encontro, como podem relacionar experiências mediadas aos contextos práticos da vida cotidiana? Como se podem relacionar com eventos que acontecem em locais distantes dos contextos em que vivem, e como podem assimilar a experiência de acontecimentos distantes numa trajetória coerente de vida que devem construir para si mesmos?” (Cf. THOMSPON, 1998:182).

Para muitos autores pós-modernos, como pontua Thompson (1998), nessas condições o self poderia:

1) ser absorvido por conta dessa exibição desarticulada de símbolos;

2) ser descentrado; ou

3) assumir múltiplas e mutáveis possibilidades.

Para o autor, no entanto, as caracterizações anteriores são falhas, o que ocorre é uma transformação na formação e nas condições de formação do self, que estaria, hoje, muito mais dependente dos sistemas que fornecem materiais simbólicos para a sua formação. A partir disso, alguns questionamentos fazem-se pertinentes: Em que medida os materiais simbólicos podem tornar-se fim em si mesmos nos processos de individuação? 

É correto creditarmos a velocidade dos processos tecnológicos à temporalidade que atravessa a formação do self? Se a formação do self é um projeto simbólico que o individuo constrói ativamente, isto é, constitui-se de uma narrativa tecida ao longo da vida, a eficácia na conexão, transmissão e circulação dos materiais simbólicos nos coloca diante de uma multiplicidade de opções para a sua formação? 

Ao pensar na produção dos materiais simbólicos, nos colocamos diante de um quadro desigual de produção e disseminação dos mesmos. Outro ponto a destacar é a intensa valorização do presente em oposição ao passado, bem como do “novo” em oposição ao “velho”. Informação instantânea e em tempo real conferem nova significação à realidade e também outra condição de percepção da mesma.

Apreende-se o mundo em parcelas fragmentadas e descontextualizadas, onde o não atual perde a importância em detrimento da “realidade”, como se tudo o que não é “aqui e agora” fosse irreal. Relembrando o conceito de bios midiático proposto por Sodré (2002), temos que “numa ordem social organicamente constituída por informação (mídia em tempo real, computadores, satélites, ambientes virtuais etc.), o espaço é a própria informação, portanto um novo “solo” para um novo bios” (Cf. SODRÉ, 2002:195).

E é exatamente esse bios que requer um olhar apurado, que dê conta de investigar quem são os habitantes desse novo espaço, quem são os usuários desse novo meio e que uso fazem dele. As técnicas mundo a fora podem até assemelhar-se, isso não garante, no entanto, que os modelos culturais da comunicação e sua organização social sejam idênticos.

E quem são os atores do tempo real? Somos todos nós?, questiona Santos (2008), para logo completar que tais perguntas são um imperativo para compreendermos melhor nossa época. O que se chama de unicidade do tempo ou convergência de momentos, ou ainda aldeia global, não é, ainda, patrimônio coletivo da humanidade.

Ainda segundo Santos (2008), os homens não são igualmente atores desse tempo real, que existe em potencial, mas no entanto é socialmente excludente. Quem de fato utiliza em seu favor esse tempo real? Tais questionamentos são ricos para as pesquisas que envolvem as novas tecnologias de informação, processos interativos, blogs ou comunidades virtuais, pois as técnicas têm algo de misterioso em seu funcionamento e há certo consenso de que não poderíamos viver sem elas, sendo assim, pode-se tomar o tempo despótico das mesmas, o just-in-time das tecnologias de informação, e estendê-lo ao funcionamento da vida cotidiana, desconsiderando o papel dos sujeitos nesse cenário.

A urgência em se apontar uma sociedade nova, com o surgimento de novos atores, ora pós-modernos, ora pós-humanos, talvez, acabe por retirar o homem de seu papel central no curso da História.

4. Limites e possibilidades

Tornar-se humano é tornar-se individual. Ao discorrer sobre tal argumento, Geertz, rompe com categorizações e assume a variedade de sujeitos numa mesma cultura. Para o autor, debruçar-se sobre o conceito de cultura não é procurar uma conduta padronizada, comparando os sujeitos até chegar a um universal categórico, tão pouco creditar seu significado a um estado da mente.

O que parece essencial a Geertz (1989) é refletir sobre sua importância, encarando-a como um contexto dentro do qual podemos descrever os acontecimentos sociais, as instituições, os homens de forma inteligível. Vista enquanto um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do comportamento humano, a cultura fornece o vínculo entre aquilo que os homens são capazes de vir a ser e aquilo que, realmente, se tornam, individualmente.

Ao se pensar, por exemplo, na cultura digital devemos encará-la antes como um contexto e não um condicionante para as transformações dos modos de vida e relações humanas, pois cultura e homem existem numa relação de reciprocidade. Atentar para o pensamento de Geertz (1989) nos priva de certos determinismos. O raciocínio do autor nos leva a três proposições interessantes:

1) Entender que o homem é tão variado em sua essência quanto em sua expressão;

2) A construção do sujeito se dá numa espécie de narrativa, a qual o autor chama de carreira do homem, ou seja, sua definição não se encontra nem nas habilidades inatas, tão pouco em seu comportamento real, mas sim no fluxo, no movimento transitório entre um e outro, (sendo a cultura um dos aspectos dessa narrativa);

3) Assumir que os homens diferem, embora isso, por si só, não signifique ser tolerante, pois nem todos os modos de tornar-se homem são vistos igualmente como admiráveis.

Ora, se a cultura é o vinculo que faz com que os homens tornem-se o que são, isto é, os preenche de identidade, valendo-se de símbolos significantes, temos que a comunicação é uma de suas esferas, um dos fundos simbólicos do qual o ser-humano é dependente e que cumpre papel importante na relação entre o “eu” e o “outro”, participando de maneira ativa na dinâmica identitária.

Em uma sociedade intensamente midiatizada, cada vez mais, as tecnologias de comunicação e informação participam do relacionamento entre sujeito e realidade e, mais do que isso, interferem diretamente sob os processos de individuação das consciências, alterando as formas de relação entre o sujeito e o real concreto.

Ainda que essas tecnologias ampliem a visibilidade de outras culturas e, conseqüentemente, de outros modos de tornar-se homem, os objetivos de tal empreitada têm muito mais a ver com as dimensões econômicas que almeja o sistema capitalista, haja visto as constantes parcerias entre empresas de telefonia móvel e os grandes nomes de produção de software.

Recentemente, Adobe e Nokia anunciaram um fundo de inovação tecnológica para auxiliar o desenvolvimento de aplicativos para dispositivos móveis usando o Adobe Flash, com foco em entretenimento, negócios, redes sociais, produtividade, games, viagens, multimídia, saúde, financeiro, tempo, esportes, notícias, educação. Cabe ressaltar que os acordos são feitos livremente, uma vez que as regulamentações financeiras para esse setor são ainda bem nebulosas.

O que parece ser o dilema principal nesse cenário contemporâneo é assegurar um desenvolvimento tecnológico comprometido com os sujeitos, com o patrimônio cultural que os singulariza, sua memória histórica e, como aponta Sodré (2002), com a comunicação de fato, entendida aqui não enquanto transmissão de dados, mas sim em sua não-linearidade, em sua relação com o outro.

Quando Wolton (2006) discorre sobre a necessidade da incomunicação, como única saída possível para a coabitação, ele argumenta sobre a necessidade de respeitarmos o outro, com suas diferenças e identidades. Se entendermos a comunicação enquanto um livre direito, a incomunicação deve ser vista como seu duplo, o outro lado da moeda, a maneira de (re)pensar a comunicação enquanto algo descontínuo, atribuindo importância a sua dimensão cultural. Por que temos de estar conectados 24 horas por dia? Os discursos do “conecte-se”, para o autor, soam mais como uma camisa de força, um imperativo.

Para Sodré (2002), é justamente nessa relação conflituosa entre o “eu” e o “outro” e nas maneiras de vincular-se ao mundo, de modo a torná-lo mais compreensível, que reside o núcleo teórico da comunicação. Sua capacidade de gerar vinculação, a torna parte essencial do processo constitutivo do comum na comunidade, uma vez que a comunicação permite ao indivíduo exteriorizar um discurso inteligível sobre os acontecimentos ao seu redor, isto é, enquanto uma das esferas da cultura, a comunicação possibilita a construção de uma identidade narrativa capaz de gerar um comum no plano simbólico-discursivo.

Seus argumentos guardam certas semelhanças ao de Wolton (2006), ao basear-se na relação conflituosa entre o “eu” e o “outro”, na radicalidade da diferenciação e aproximação entre os seres-humanos, dentro da difícil dinâmica “identidade / alteridade”. Embora as novas tecnologias de comunicação e informação permitam a visibilidade de outras culturas e sujeitos, ampliando a capacidade de interação, atuam no plano relacional, mas não no vinculativo proposto por Sodré (2002), uma vez que este perpassa a inserção social do sujeito desde seu imaginário.

O que, efetivamente, o avanço tecnológico revela é a ausência de um projeto social, com a sobreposição de um projeto econômico com facilidade de globalizar-se, afinal não estamos diante de uma variedade de modelos econômicos e o capitalismo, mais avançado em alguns países, noutros menos, soube utilizar bem o discurso da modernização via tecnologia para se expandir.

Pensar a comunicação a partir de uma visão não heróica, ou seja, despida da necessidade ou função de integrar o mundo, talvez, seja um bom começo para refletir as possibilidades que estar conectado nos abre. Relembrando Geertz (1989), nem todas as formas de tornar-se humano são igualmente admiráveis, portanto a visibilidade que os novos meios proporcionam também não se constitui como saída a intercompreensão e, talvez, esta seja mais um sonho romântico que o discurso tecnológico nos apresenta.

Na ânsia em pensar o global acabamos por esquecer o local e, quem sabe, a vinculação seja mais alcançável nesse plano? Se o núcleo teórico da comunicação compreende em entendê-la em sua capacidade de gerar vinculação, de modo que os indivíduos possam tornar o mundo inteligível de maneira afim cabe aos pesquisadores da área buscar na rede não as formas de interação, mas sim os sujeitos e os usos que estão sendo feitos da tecnologia, ou seja, aquilo que leva alguém a estabelecer uma prática comunicativa em rede e a maneira como tal atividade se relaciona aos processos de formação do próprio sujeito e de sua atividade cotidiana.

Tal postura contribui para diminuir rotulações tanto em relação ao atual momento, como ao sujeito contemporâneo, além de distanciar-se do aspecto técnico-interacional.

Por último, faz-se pertinente relembrar o conceito de práxis proposto pela dialética de Marx. Konder (2003), em um breve artigo intitulado “A dialética e o marxismo”, esclarece práxis enquanto atividade do sujeito perante o mundo, transformando-o e transformando-se a si próprio. A práxis diz respeito à ordem existencial e sua existência só é lógica se alia teoria a prática, daí que sua noção enceta problematizações do próprio saber comunicacional.

A noção de uma práxis comunicativa deve rever o próprio conceito de comunicação, garantindo um olhar apurado sobre sua capacidade de gerar vinculação, afinal é nesta dimensão que reside a potencialidade de ação dos sujeitos, sobretudo no plano identitário (a instituição do comum na comunidade) e narrativo (aquilo que  os homens podem ser e aquilo que, realmente se tornam).

NOTA

[1] A isto, Muniz Sodré chama de midiatização. Por midiatização, entenda-se o funcionamento articulado das tradicionais instituições sociais com a mídia. A midiatização não nos diz o que é a comunicação e, no entanto, ela é objeto por excelência de um pensamento da comunicação social na contemporaneidade, precisamente por sustentar a hipótese de uma mutação sócio-cultural centrada no funcionamento atual das tecnologias da comunicação (SODRÉ, M. “Sobre a episteme comunicacional”. Revista Matrizes, nº 1, out. 2007, p. 15-26).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

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KONDER, L. “A dialética e o marxismo”. S/r, Rio de Janeiro, mar. 2003. Disponível em: http://www.uff.br/trabalhonecessario/Konder%20TN1.htm. Acesso em: 10 fev. 2009.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001.

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*Xenya de Aguiar Bucchioni é jornalista graduada pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática (UNESP).

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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]