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Monografias

Jornalismo e a reconstrução
tecnológica da realidade

Por William Pereira de Araújo*

Resumo

A partir da análise de comentários feitos por especialistas em torno do fenômeno Newsblaster -programa oriundo da Inteligência Artificial (AI) que forja notícias a partir de dados coletados e reelaborados para publicação-, o autor extrapola tal paradigma para a idéia de que esta possibilidade estabelece razoavelmente o divisor de águas entre a objetividade típica das máquinas e a interpretatividade dos homens, traduzindo daí a necessidade de os profissionais do jornalismo se especializarem na leitura das causas e consequências dos fatos. Esta abordagem, além de colocar em destaque um discurso predominante de caráter tecnológico -previsível por estar balizado por parâmetros científicos-, de consumo superficializado, também recoloca o ser dentro de seu devido parâmetro da subjetividade, sendo esta balizada pela amplitude de conhecimento contextual, contemporâneo e visionário, haja vista as necessidades futuras.

Reprodução

Palavras-chave:

Jornalismo tecnológico; discurso das máquinas; reconstrução do real; superdestinatário.

Introdução

A proposta desta pesquisa é a de analisar a repercussão do advento da máquina na condição de reconstrutor de uma realidade, traduzindo um paradigma tecnológico, cujo impacto tem gerado variadas interpretações, algumas mais imediatas -como a relacionada à substituição dos seres pelas máquinas-, e outras ainda pouco abordadas como a relacionada à tessitura de uma realidade com alto teor de objetividade.

Esta característica leva a outras igualmente significativas, como por exemplo a predominância de um discurso tecnológico aceito consensualmente pelo mercado de consumo, na medida em que reproduz os fenômenos sociais balizados nos parâmetros estabelecidos na pragmática jornalística como perguntas básicas a serem feitas a um dado fenômeno, ou seja: o Que, Quem, Quando, Como, Onde e Porque. Estes parâmetros estão em todo e qualquer fato e determinam o nível de exatidão de um dado evento [1].

Outra característica que se desdobra deste cenário que vem sendo forjado é o do refinamento dos analistas dos fenômenos sociais que, diferentemente das máquinas, estabelecem ilações variadas, perpassadas por uma objetividade que pode ser caracterizada como esclarecedora e que considera o nível de exatidão na interpretatividade dos fenômenos, suas relações com o passado, com o presente e com o futuro, aqui entendidas como parâmetro de subjetividade.

Atualmente, na mídia, está tarefa esta sob responsabilidade de jornalistas especializados e especialistas convidados -não necessariamente jornalistas-, que geralmente são convidados a opinar sobre certos assuntos.

Como se pode ver, no âmbito da mídia o trânsito de profissionais dentro do núcleo gerador de opinião é histórica, acentuada -ou especializada- a partir da industrialização e da transformação da imprensa em empresa [2]. No Brasil esta evidência é perceptível após a década de 30.

Este item e outros que aqui não serão tratados, demonstram a parcela preocupada com a perda da colocação no mercado e não o aspecto que aqui será abordado, ou seja, a adaptabilidade necessária para os profissionais que atuam neste segmento que cada vez mais indica não ser jornalístico, mas sim informacional.

Apesar dos esforços de Norbert Wiener [3] de analogizar as funções do organismo humano e suas ações em relação ao das máquinas, somente na atualidade isso passa a ser encarado como condição inquestionável, haja vista o predomínio do perpassamento do viés tecnológico, configurando a denominação sociedade da informação [4].

Contexto desestruturado

A partir do que foi dito acima, é possível visualizar um futuro em que as máquinas, devidamente autorizadas pelos homens -aqui entendidos como o mercado, seus interesses macro-estruturais- e por uma variedade de protocolos poderão manter a sociedade de um modo geral informada por meio do registro de variados fatos -locais, regionais e mundial-, notadamente a partir de um estreitamento entre os mecanismos de sondagem do cotidiano, bem como pela inserção de dados deste cotidiano nestes sistemas, que hoje é feito pelos jornalistas e que poderiam ser feitas por outras pessoas, haja vista os parâmetros já expostos e que reconfiguram uma dada realidade.

Este fenômeno reforça ou evidencia o parecer de Peter Drucker [5] sobre a inovação intencional, qualificada por ele como "a maior mudança dos últimos quarenta anos (..) tanto técnica como social", tornando-se uma disciplina organizada e aprendida. Corrobora para isso o fato de que "a organização moderna é desestabilizadora, na medida em que precisa ser organizada para a inovação, e a inovação, como disse o (...) economista Joseph Schumpeter, é 'destruição criativa'" (citado em Drucker, 1999: 58).

O que ainda não foi entendido na atualidade é a questão destrutiva gerada pelas mudanças que, em seu cerne exige compreensão do conhecimento atualizado, que por caracterizar um processo, exige constantes inovações cientificizadas.

O problema da modernidade talvez esteja na fragmentação do conhecimento caracterizadas pela densidade especializadora, aspecto que tem distanciado as áreas em vez de aproximá-las. Esta variável é justamente a que é exigida do jornalista do futuro, ou seja, sua penetração nas especificidades para decifrar as implicações, as fusões e compartilhamentos de conhecimentos, bem como o avanço dos mesmos de modo a corrigir distorções como a de que as máquinas ameaçam o emprego dos homens.

Curiosamente, a proposição desenvolvida nesta comunicação traz em si um paradoxo, ou seja, o da desarticulação do fazer jornalístico em confronto proporcional à necessidade de uma especificidade, que não a de isolamento dos conhecimentos contemporâneos, mas sim no sentido de dar-lhes significado.

Este raciocínio vai ao encontro da idéia de Anthony Giddens, ou seja, a de que estamos em um período de "modernização reflexiva" [6], oriundo do contexto contemporâneo que descola as relações sociais de seus contextos, reestruturando-as em extensões indefinidas de espaço tempo.

Deste cenário vertem duas características exploradas por Luiz Felipe Miguel em "O jornalismo como sistema perito": a primeira, forjando o expert systems, que se refere a "sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje" [7]; a segunda é a de que estes sistemas peritos "implicam, da parte dos clientes ou consumidores, uma crença em sua competência especializada" [8].

Por outro lado, evidencia uma crise na qual o Jornalismo está mergulhado há algum tempo, tanto em seus aspectos conceituais quanto em seus procedimentos pragmáticos, assunto tratado por vários autores, dentre eles José Arbex Jr. [9], Leão Serva, [10] mas também no que diz respeito às mudanças radicais que vem ocorrendo nesta área a ponto de gerar uma crise de identidade [11], exteriorizada abertamente por autores como Juremir Machado da Silva [12], bem como Jose Luiz Martinez Albertos [13], William Hachten, entre outros.

Ao se apontar este cenário, torna-se mais compreensível -poder-se-ia dizer- o fato de as notícias (re)estruturadas e veiculadas no meio virtual [14] ser um dos aspectos desta crise, expondo claramente a importância da tecnologia como contribuição que não pode ser considerada.

Para efeito de estudo e pelo fato destas notícias serem e estarem em uma sociedade e o fato destas serem constituídas por esferas de atividade -por mais descoladas que sejam-, trazem em si mensagens destinadas a seres humanos que recorrem à língua e seus respectivos enunciados (orais ou escritos) para se comunicarem, aspectos estes oriundos dos estudos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin.

Este autor reconhece a dificuldade existente tanto na definição quanto no estudo dos gêneros de discurso, justamente pelas possibilidades destes no tocante à heterogeneidade, motivo pelo qual define gêneros do discurso como "tipos relativamente estáveis de enunciados" [15]. Bakhtin estabelece dois tipos de enunciados -o primário e o secundário- sendo o segundo mais complexo em sua constituição, geralmente assimilando os mais simples.

A importância dos gêneros neste trabalho é justamente para entendê-los como algo integrantes do cotidiano. Neste sentido, Bakhtin assevera que "ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida" [16].

Diz isso, porque para o autor "a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua". [17]

Leitura de dados

Considerando o que foi dito até o momento, a proposta é a de se observar a repercussão destes enunciados elaborados por meio do Newsblaster, ou seja, os comentários de especialistas, entendendo que os mesmos representam aqui os experts autorizados a refletir sobre este assunto, em variadas nuances, bem como entendendo que os mesmos devem ser caracterizados como provisórios, haja vista o nível de impacto aqui sinalizados: o de que os enunciados forjados pelas máquinas teceriam uma realidade superficial, que neste caso pode ser balizada pelo nível de análise (observação, crítica, adesão, entre outras) por aqueles que estão em relação direta com esta atividade humana intermediada pelos softwares.

Em outras palavras, procurar-se-á averiguar a impressão destes no tocante à
recepção da idéia, a análise que fazem disso, o impacto previsível e mesmo a sinalização de perspectivas quanto a este advento.

Os textos selecionados foram coletados da relação existente no site Newsblaster, que remete aos textos originais. Em virtude da indisponibilidade técnica gerada na rede mundial de computadores, optou-se pela análise daqueles cujo acesso foi permitido e que são apontados após a lista geral, de modo mais detalhado, com o nome de seus autores e seus respectivos veículos:

Lista geral dos veículos

  • EPN World Reporter
  • La Stampa (in Italian) (04/09/2002)
  • BBC News (04/09/2002)
  • Telecom Italia (04/03/2002)
  • Wired News (03/30/2002)
  • New York Times (3/28/2002)
  • Slashdot (03/15/2002)
  • www.uzine.net (French) (03/06/2002)
  • Search Engine Watch Search Day Newsletter (03/06/2002)
  • Christian Science Monitor (02/28/2002)
  • Le Monde (in French) (02/27/2002)
  • USA Today (02/08/2002)
  • NewsBytes.com (02/07/2002)
  • Online Journalism Review (02/05/2002)

Autores e textos captados

Newsblaster aggregates thousands of news stories
By Jane Wakefield, BBC News Online technology staff,
In: http://news.bbc.co.uk/1/hi/sci/tech/1913348.stm

Will Newsblaster produce tomorrow's leads?
By John Pavlik, OJR Contributing Editor (posted: 2002-02-05 o modified: 2002-04-05)
In: http://www.ojr.org/ojr/technology/1015015422.php

The Push for News Returns
By Kendra Mayfield/news/feedback/mail/1,2330,78,00.html | Also by this
reporter
In: http://wired.com/news/business/0,1367,51112,00.html

Computer summarize the news
Posted by michael on Fri Mar 15, '02 11:43 AM
from the replaced-by-a-very-small-shell-script dept.
In: http://slashdot.org/article.pl?sid=02/03/15/1555242

SearchDay - Newsblaster: An Automatic Weblogger - 6 March 2002
By Chris Sherman, Associate Editor -March 6, 2002
In: http://www.searchenginewatch.com/searchday/article.php/2159401

'Newsblaster' software scans, summarizes news
By Kim Campbell - from the February 28, 2002 edition
In: http://www.csmonitor.com/2002/0228/p12s02-stct.html

Newsblaster é o produto online desenvolvido por um time de pesquisadores do
Departamento de Ciências dentro da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade de Columbia, projeto encabeçado pela profa. PhD. Kathy McKeown e liderada pela estudante Regina Barzilay.

Este programa faz buscas frequentes em trinta fontes, dentre elas Yahoo, ABCNews, CNN, Reuters, Los Angeles Times, CBS News, Canadian Broadcasting Corporation, Virtual New York, Washington Post, Wired, and USA Today, e procura adaptá-los priorizando a exatidão dos fatos obtidos.

Antes que se proceda à análise é interessante observar que o Newsblaster retrabalha produções geradas por pessoas e, neste sentido, cabe a definição de que tal produção passa a ser um outro texto, aqui entendido como metatexto de caráter virtual daquilo que foi observado por vários repórteres, realizando uma espécie de sumarização deste apanhado e da confrontação da amostragem captada.

Sua (re)construção, portanto, serve como uma aproximação mediada e mensurada da realidade virtual possível, uma espécie de fusão de várias visões.

O processo parece mexer com as definições oferecidas por Mikhail Bakhtin, em pelo menos dois aspectos: em primeiro lugar, que o texto original, tendo sido elaborado por especialistas -jornalistas- certamente exigiu refinamentos ligados ao fazer jornalístico que o colocam no nível de um discurso do gênero secundário, portanto mais complexo.

Considerando o fato de que o Newsblaster reúne, seleciona, filtra, compara e rearticula uma dada amostragem de textos, é possível entender aí um nível de complexidade que, por suas características previstas no software e pela pragmática adotada forjam um outro produtor, que poderia ser entendido como sintetizador, equalizador ou mesmo (re)produtor de discursos reorganizados.

Trata-se da pragmática de uma máquina pensada também por muitos outros produtores para agir de modo simplificado, portanto para filtrar possível dissonâncias nas mensagens e tentativas comunicacionais destas na relação autor-receptor. Curiosamente, todo este esforço, em nome da segurança, da exatidão e da respeitabilidade ao evento -e não aos autores em si- gera textos mais simples, na forma de lides (lead), caracterizando assim seu aspecto superficial.

Outra tarefa realizada pelo Newsblaster, a de sumarização dos textos localizados na busca e mesmo sua reorganização serve para reforçar a prevalência do primeiro nível de texto -o superficial-, diferente do caracterizado como mais complexo, sendo este a que efetivamente remete ou devolve parcela de direitos -se assim se pode dizer- a seus respectivos autores.

Como se pode observar, o programa Newsblaster parece praticar dois níveis de linguagem semelhantes às da mídia comum, sendo a primeira mais simples e a segunda mais complexa. Este processo evidencia, no entanto, que por mais que um enunciado seja simples, seu processo pode ser extremamente complexo, na medida em que rearticula elementos variados para concretizá-lo.

No ser humano, isto está em sua memória e em sua trajetória história, ao passo que no Newsblaster seu enunciado simples reside nas complexidades alheias a seu processo, depuradas em seu mecanismo programado para eliminar complexidades, tornando básico o entendimento de determinados fatos.

Diante desta reflexão é possível notar um caminho inverso, ou seja, o de simplificação do cotidiano por meio das notícias tornadas básicas ou mais evidentes da sociedade, aspecto que coloca em evidência a hierarquização dos assuntos selecionados por este sistema, traduzindo na realidade um adensamento, uma sobreposição -para não dizer supervalorização- de assuntos já previamente hierarquizados pelos especialistas das mídias.

Esta colocação parece ser aqui definitiva, na medida em que a condição existencial do Newsblaster -apesar de seu caráter experimental- é inexorável, na medida em que o paradigma tecnológico acercou-se do universo informacional. Prova disso são os refinamentos que vem sendo realizados desde 2002 pela equipe de pesquisadores, tal como expõe Kendra Mayfield em seu artigo The Push for News Returns18.

Além disso, o cenário de competitividade parece estar instalado realmente no âmbito dos departamentos de pesquisas acadêmicas, haja vista o surgimento do News in Essence (http://www.newsinessence.com), desenvolvido pela Universidade de Michigan.

Este processo pode vir a ser -se já não o é- a prevalência do código linguístico das máquinas agindo indiretamente sobre a sociedade, apropriando-se e reintrojetando nela elementos implícitos a seu desenvolvimento, ou seja, a necessidade de evoluir e a instrumentalização disso, representada aqui pelas possibilidades tecnológicas.

Talvez por isso o professor e pesquisador da Universidade de Harvard, Lawrence Lessig trace, na obra "Code and Other Laws of Ciberspace", um futuro sombrio para para a Internet, reconhecendo neste ambiente a prevalência comercial.

A seu ver a "nova arquitetura da Internet já está sendo forjada por empresas norte-americanas com a ajuda silenciosa e protecionista do governo dos Estados Unidos, em prejuízo do usuário comum e de outros países, como o Brasil" [19].

De acordo com Lessig, o que regula a vida no ciberespaço são os códigos (softwares), residentes na arquitetura (conjunto de códigos) montada para a rede, ambiente que com as configurações atuais, evidenciam a diferença entre o mundo real e o virtual, servindo este como armazenagem do primeiro tanto em termos de história quanto de valores.

Com este entendimento, afirma que "quem controlar o código terá maior poder sobre a internet". Não se pretende com esta exposição catastrofista criar uma panacéia do domínio mundial, apesar de ser evidente mesmo no mundo físico a importância do aspecto financeiro e o nível de dependência dos seres e das nações.

A questão aqui é outros e diz respeito à do surgimento de um enunciado que, em virtude de sua aceitação e pragmática, pode ser transformado em um discurso predominante, haja vista suas potencialidades implícitas. Notadamente há por trás deste advento a questão do texto, reconhecido por Bakhtin como um problema, pois o mesmo está na base das relações humanas, tendo em si um pensamento expresso, demonstrando nisso efetivamente a diferença entre as ciências sociais e as naturais. Por conta disso, afirma: "Onde não há texto, também não há objeto de estudo e de pensamento".

A importância de se entender o texto (re)produzido pelo Newsblaster torna-se significativo justamente pelo fato de seus programadores adotarem uma metodologia denominada NLP (Natural Language Processing), apontando para possibilidades futuras as mais variadas possíveis, por exemplo a customerização de fontes, datas, entre outros serviços que podem ser utilizados como ferramentas por parte de jornalistas, editores e redatores.

A questão no entanto parece ultrapassar estas fronteiras de uso exclusivamente da área comunicacional e a que se refere à praticidade na exposição dos fenômenos sociais na forma de texto em um ambiente virtual cada vez mais acelerado e refinado. Para o entendimento disso é preciso recorrer a Bakhtin, quando o mesmo diz haver dois fatores para a determinação de um texto: "seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto." [20]

Mais que isso, observa que a inter-relação dinâmica destes fatores, "a luta entre eles" é o que efetivamente imprime o caráter no texto. [21]

A problematicidade do texto, sobretudo a partir dos fatores determinantes para sua existência trazem em si a questão da língua que, enquanto um sistema de signos, permite decifrá-los, o que leva este autor a propor a existência de uma "língua das línguas", haja vista este potencial de tradução de um signo para outro. Mas o mesmo não ocorre com o texto, pois não existe um texto dos textos com potencial único. [22]

Considerando o fato de o texto ganhar amplitude significativa, de que cada texto tem sua individualidade [23] -portanto irreprodutível-, de que tudo o que é reprodutível "é da ordem do meio, do material" [24], bem como de que é impossível eliminar ou neutralizar a consciência de quem toma conhecimento dele [25], a questão ligada ao Newsblaster e sua tarefa virtual parece apontar para uma espécie de destinatário que, no dizer de Bakhtin é interpretado como um superdestinatário -pressuposto pelo autor de qualquer enunciado-, aquele "cuja compreensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado", que na explicação oferecida por este autor, na forma de um destinatário de emergência, "em diferentes épocas, graças a uma percepção variada do mundo, este superdestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc)". [26]

Igualar o Newsblaster neste momento a algo superior seria imprudência. Mas sua existência parece pressupor a materialização moderna de "alguém" que pode assumir este papel e, somente por isso, em nome da necessidade humana de uma resposta [27], coloca-se como habilitada a suprimir ou nivelar a criatividade, balizar o nível dos múltiplos enunciados e oferecer o que for mais adequado, exato e justo para todos.

Outro paradoxo que pode passar despercebido em meio a este emaranhado de
embricações relacionadas ao enunciado, ao texto e à língua, é o de que, sendo um programa de inteligência artificial e tendo sido programado previamente, certamente o nível de responsividade do Newsblsater passa a residir no parâmetro da reelaboração, disponibilização em seu site, mas igualmente na multiplicidade de envios a outros interlocutores, sem que haja definidamente a necessidade de uma resposta, haja vista seu mecanismo interno de autosobrevivência, construindo uma tessitura sem a necessidade de ser questionada, pelo menos pelos especialistas.

Aliás, o apagamento dos personagens autores -lembrado apenas por Chris Sherman, do searchenginewatch.com-, além de ampliar o aspecto da superficialidade do registro dos fatos, enfraquece o dialogismo esperado por parte dos autores dos textos originais, na medida em que prevalece a equalização na linguagem utilizada.

Se de um lado há o esvasiamento dos produtores, por outro há o robustecimento em termos de eficácia da máquina -mais especificamente de softwares deste porte- na medida em que atende à demanda social mantendo-a informada.

Visão especializada

Nos textos dos especialistas, os enunciados de um modo geral apresentam o Newsblaster a partir do que efetivamente ele faz, apontando posteriormente seus criadores, oferecendo exemplos desta maquinaria, deixando implícito ou explícito sua importância.

Em termos de análise do discurso, na medida em que se diz algo, a ela se está atribuindo importância. Tal assertiva é semelhante ao que trata a teoria agenda setting, na medida em que sugere temáticas para serem assimiladas e ventiladas no dia-a-dia.

Os textos caracterizam espécies de pareceres sobre o advento Newsblaster, motivo pelo qual todos, além do registro deste fenômeno tecnológico, ampliam a discussão em torno de suas capacidades -razoavelmente equalizadas no que diz respeito à busca de dados-, mas também abordam suas falhas, centrando análise em dois pontos: o primeiro relacionada às ilações dos mesmos com outros assuntos que ampliam no tempo e no espaço determinados eventos; o segundo no que diz respeito ao trabalho de edição, que jornalisticamente é perpassado pelo nível de subjetividade e interesses.

Neste sentido, de um modo geral, a maioria destes autores que falaram deste programa dissipam a idéia de que o mesmo dispensará editores.

Dos autores cujos textos foram analisados, percebe-se uma certa adesão antecipada por parte de alguns -caracterizados por elogios velados ou explícitos-, porém de um modo ou de outro todos eles levantam questionamentos pertinentes.

Chris Sherman (searchenginewatch.com), aborda a questão do direito autoral, John Pavlik (OJR), por meio de algumas perguntas, coloca em destaque a importância do indivíduo, sem depreciar o potencial da máquina.

Jane WakefBield (BBCNews) trata a não infalibilidade do programa, apontando que o mesmo não substituirá o ser humano, enquanto Kenda Mayfield (Wired.com) contextualiza este invento, relacionando-o a vários aspectos históricos e pragmáticos, bem como os ligados à customerização. Kim Campbel (csmonitor.com), por sua vez, destaca o modo de trabalho deste advento, permitindo uma reflexão dos jornalistas e escritores.

Considerações finais

O surgimento de programas como o Newsblaster, dentro deste cenárioextremamente acelerado de desenvolvimento, colocando a tecnologia como ferramenta paradigmática era uma questão de tempo. Neste sentido, o emprego dos mesmos traz em si duas vertentes às vezes paradoxais: uma, que atende à ciência em seu avanço rumo ao futuro; outra, visando amparar o acentuado consumo e a necessidade de volumes cada vez maiores de dados. Nesta esteira, considerando a densidade das inúmeras variáveis, tal advento leva em um primeiro momento os especialistas da mídia a uma reflexão sobre as implicações disso, seja pelo impacto, seja pelas possibilidades.

Tanto em uma como em outra reside a questão da produção na forma de texto que, tendo sido elaborado e colocado no ambiente virtual, tende a ser equalizado. Enquanto prevalecem os protocolos e códigos neste universo -habilitando e desabilitando- vários mecanismos, programas e modos de comunicação, tal paradigma afeta -se assim se pode dizer- basicamente o que aqui é entendido como especialista, sendo estes os que usam determinado ambiente.

A extrapolação disso fica por conta da resolução que estes podem adotar quanto às possibilidades de mecanismos como este efetivamente passarem a reelaborar todos os enunciados factíveis -ou de interesse especializado- para este ambiente, alterando notadamente com o tempo a pragmática de captação e registro dos fatos sociais, haja vista a superficialização promovida pela cientificidade dos textos reconstruídos e que passarão a informar a sociedade.

De outro modo, coloca o ser humano em outro patamar de especificação -ou a necessidade de que isso ocorra- no caso a de exercitar e preparar-se para a análise conjuntural dos fatos e suas implicações com a história, com as pessoas e seus interesses, bem como com o futuro e sua (im)previsibilidades.

Como decorrência, coloca em pauta alguns itens que perpassam o tempo e este espaço e que aqui são parametrizados como:

1. Constatatória

1.1. A de que é inexorável a ampliação do uso de programas como o Newsblaster;

1.2. A de que isso leva a mudanças no contexto intelectual, perceptivo e projetivo dos participantes efetivos e dos que recorrerem ao produto gerado por este programa ou semelhantes, compreensíveis somente se contextualizados em suas devidas ocorrências;

2. Reflexiva

2.1. De que torna-se necessário compreender e preparar-se para este advento e suas inovações, subsídio que acionará tomadas de decisões;

2.2. De que certamente o indivíduo precisará ampliar sua especialização para
conteúdos estratégicos de análise conjuntural;

2.3. De que nesta mudança podem estar perspectivas paradigmáticas para uma nova fase da profissão jornalística como estrategista e não apenas como reprodutor dos fatos sociais;

3. Emergencial

3.1. Ter a visão no nível e da proporção deste impacto em sua relação com a
sociedade, seu posicionamento como produtor consciente de textos / enunciados / discursos;

3.2. Que sua inserção neste novo contexto acentuará a padronização da tessitura social exposta como texto para muitos;

3.3. Que sua inserção neste cenário cria um novo parâmetro dialogal em sua relação entre o real e o virtual.

Referências bibliográficas

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http://www.searchenginewatch.com

http://www.csmonitor.com

http://wired.com

http://news.bbc.co.uk

http://www.cs.columbia.edu/nlp/newsblaster/

Notas

[1] Estes parâmetros remontam o paradigma de Harold D. Lasswell: quem diz o quê, em um canal, para alguém, produzindo um efeito. Ver A estrutura e a função da comunicação na sociedade, in: Comunicação e indústria cultural, de Gabriel Cohn (org.), São Paulo: Editora Nacional, 1977.

[2] Ver Juarez Bahia, Jornalismo História e Técnica, bem como A opinião no jornalismo brasileiro, de José Marques de Melo.

[3] Ver Norbert Wiener, O uso humano de seres humanos, São Paulo: Cultrix, 1984.

[4] Ver CASTELLS, Manuel, A sociedade em rede, 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[5] Ver Peter Ferdinand Drucker, Administrando em tempos de grandes mudanças, São Paulo: Pioneira/Publifolha, 1999.

[6] Ver As consequências da modernidade, São Paulo: Unesp, 1991.

[7] Giddens, obra citada, p. 35.

[8] Ver Luis Felipe Miguel , obra citada, p. 198, In: Revista Tempo Social, São Paulo: USP/FFLHC, vol. II, nº 1, maio, 1999.

[9] Ver Showrnalismo: a notícia como espetáculo, São Paulo: Casa Amarela, 2001.

[10] Ver Jornalismo e desinformação, de Leão Serva, São Paulo: Senac, 2001.

[11] Ver Crise de identidade, de José Marques de Melo, In: Jornalismo brasileiro, Porto Alegre: Sulina, 2003.

[12] A miséria do Jornalismo: as incerteza da mídia, 2ª ed., Petrópolis (RJ): 2000.

[13] Ver El ocaso del periodismo, New Jersey; Lawrwecw Associate Publishers, 1998.

[14] Ver site Newsblaster http://www.cs.columbia.edu/nlp/newsblaster.

[15] Ver Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[16] Estética da criação verbal, obra citada, p. 282.

[17] Idem Ibidem.

18 Ver The Push for News Returns, in:
http://wired.com/news/business/0,1367,51112,00.html.

[19] Ver Códigos livres, de MAISONNAVE, F, e LOUZANO, P., In: Caderno Mais, Folha de S.Paulo, 5 de março de 2000.

[20] Note-se que este texto não avança no aspecto ideológico existente por trás destes experimentos, pois isso exigiria desdobramentos que fugiriam ao objetivo específico desta comunicação. Mas é importante expor, por exemplo, que o Newsblaster vem sendo desenvolvido nas últimas duas décadas, estando fundamentada largamente no DARPA TIDES, ou seja Defense Advanced Research Projects Agency Translingual Information Detection, Extraction and Summarization. Além disso, o Departamento de Estado os Estados Unidos tem demonstrado interesse na aplicação do NLP para entender a linguagem adotada pela mídia sobre ataques terroristas.

[21] Bakhtin, obra citada, p. 330.

[22] Bakhtin, obra citada, p. 333.

[23] Bakhtin, obra citada, p. 331.

[24] Bakhtin, obra citada, p. 332.

[25] Bakhtin, obra citada, p. 333.

[26] Bakhtin, obra citada, p. 356.

[27] Bakhtin diz que "para a palavra (e, porconseguinte para o homem) nada é mais terrível do que a irresponsividade (a falta de resposta). Id. id. p. 356.


*William Pereira de Araújo é doutorando na Umesp, e docente na habilitação Jornalismo, nas universidades UNICSUL e de Mogi das Cruzes. E-mail: apw@uol.com.br.

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