Entrevistas
Para
decifrar a mídia
Depoimento
de José
Marques de Melo a
Paulo Lima*
A
esfinge midiática, de
José Marques de Melo, 336 pp., Paulus Editora, São
Paulo, 2004; R$ 30.
A
compreensão dos fenômenos midiáticos tem
se constituído num esforço que envolve estudiosos
dos mais diversos quadrantes e tendências ideológicas.
Essa produção crítica tem revelado os diversos
pecados da mídia e a necessidade de transformá-la
num mundo fustigado por mudanças tecnológicas
velozes.
Ocorre
que essa mídia, quando atinge os seus mais baixos instintos,
é demonizada a priori. Atira-se a primeira pedra, sem
que antes se mergulhe na análise dos porquês do
apelo de programas como Big Brother, Ratinho e similares, no
caso brasileiro, e sua relação com a sociedade.
Esse
esforço de compreensão vem sendo realizado pelo
professor José Marques de Melo há mais de 30 anos,
em extensa produção acadêmica. Seu novo
livro, A esfinge midiática, mostra que é preciso
um novo enfoque pautado em novos paradigmas comunicacionais,
e não somente nos velhos conceitos eurocentristas, fundados
em outras realidades.
"Nossas
pesquisas empíricas são escassas e insuficientes,
e permanecemos importando teorias exógenas", diz.
O receituário para decifrar a esfinge da mídia
é sugerido por esse decano da comunicação:
"Observar, registrar e interpretar os fenômenos peculiares
ao funcionamento das indústrias midiáticas em
nossa sociedade para compreendê-los e regulá-los
de acordo com o interesse público".
José
Marques de Melo escreveu, entre outros livros: História
social da imprensa (Edipucrs), Jornalismo opinativo (Mantiqueira),
Comunicação (Vozes), As telenovelas da Globo (Summus),
Comunicação e transição democrática
(Mercado Aberto) e História do pensamento comunicacional
(Paulus). Foi docente-fundador e diretor da Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Na entrevista
que se segue, concedida por e-mail, Marques de Melo fala do
novo livro e de outros tópicos relacionados à
mídia.
Paulo
Lima - O
que esse novo livro acrescenta à sua já vasta
produção acadêmica?
José
Marques de Melo Meu novo livro dá continuidade
às reflexões que, há mais de trinta anos,
venho fazendo sobre os fenômenos comunicacionais. Ele
na verdade atualiza para a conjuntura do século XXI minhas
preocupações cognitivas.
P.L.
- Por que comparar a mídia a uma esfinge?
J.M.M.
Da mesma forma que, na mitologia grega, a esfinge de
Tebas propunha enigmas aos viajantes, defrontamo-nos hoje com
situação idêntica no cotidiano das vanguardas
intelectuais, que se defrontam com a esfinge midiática,
desdenhando-a, sem elucidá-la cognitivamente, enquanto
ela "devora" culturalmente a nossa sociedade.
P.L.
- Quais são os pressupostos básicos para decifrar
essa esfinge?
J.M.M.
Os pressupostos e as ferramentas que proponho são
aqueles típicos da atividade científica na universidade:
observar, registrar e interpretar os fenômenos peculiares
ao funcionamento das indústrias midiáticas em
nossa sociedade para compreendê-los e regulá-los
de acordo com o interesse público.
P.L.
- Em seu livro, o senhor faz uma análise dos paradigmas
norte-americano e latino-americano sobre a mídia. Quais
as diferenças fundamentais entre um e outro?
J.M.M.
O paradigma histórico vigente na sociedade norte-americana
é o da inclusão cultural, alicerçado na
escola e continuado através da mídia. No caso
latino-americano, vigora a tradição da exclusão
cultural, tendo em vista a expulsão precoce das novas
gerações das instituições educacionais,
o que transforma a mídia em "escola paralela",
balizada por rudimentares estímulos intelectivos.
P.L.
- Haveria superioridade de um paradigma sobre o outro?
J.M.M.
Não se trata de superioridade ou de inferioridade.
Trata-se de um descompasso histórico. Quando a mídia
se desenvolve, tanto na Europa quanto na América do Norte,
suas populações haviam usufruído os benefícios
da universalização educativa. Aqui, ao sul do
Rio Grande, nossas sociedades permanecem iletradas ou culturalmente
degradadas. Logo, as indústrias midiáticas são
limitadas pela ausência ou carência de requisitos
cognitivos capazes de justificar a elevação dos
respectivos conteúdos.
P.L.
- As teorias de comunicação existentes ainda explicam
a mídia? Explicariam fenômenos midiáticos
como os reality shows?
J.M.M.
As teorias da comunicação que circulam
em nossas universidades foram produzidas em realidades distintas
da nossa. Elas foram importadas da Inglaterra, França,
Canadá ou Estados Unidos. Portanto, não podem
ser transplantadas automaticamente para o nosso meio ambiente.
Elas
precisariam ser testadas empiricamente, verificando se aqui
assumem o mesmo comportamento. Como as nossas pesquisas empíricas
são escassas e insuficientes, permanecemos importando
teorias exógenas. O conhecimento até agora disponível
sobre fenômenos como os "reality shows" tem
caráter exclusivamente mercadológico, no sentido
de orientar as empresas midiáticas a adaptar ao "gosto
nacional" formatos transplantados.
O
que se espera dos pesquisadores da área de comunicação
é partir dos dados estocados pelas redes televisivas
e dar passos adiantes, no sentido de mensurar e interpretar
os impactos sócio-culturais de tais programas.
P.L.
- Como se explica o fascínio das telenovelas sobre o
imaginário da sociedade brasileira?
J.M.M.
O fascínio pelas telenovelas advém do hábito
cultural que aqui foi disseminado no século 19, quando
importamos os primeiros folhetins produzidos na Europa. Em meados
do século 20, esse gênero melodramático
ganhou maior impacto, através das radionovelas, incorporando
os contingentes analfabetos ao universo dos seus usuários.
Presentemente,
ele se reproduz na telinha, mobilizando o conjunto da população
nacional, justamente porque substituiu, gradativamente, os conteúdos
importados pelos signos sedutores da nossa cultura popular.
Em meu novo livro em dedico um capítulo inteiro a essa
problemática, tentando elucidar como se deu a legitimação
social das telenovelas pelos formadores de opinião pública
no Brasil.
P.L.
- Como o senhor observa a invasão dessas telenovelas
também em outras sociedades, como a cubana, a russa,
a portuguesa etc.?
J.M.M.
As telenovelas focalizam temas e problemas em certo sentido
universais. Elas variam os cenários e os personagens,
refletindo os contextos em que foram produzidos, apesar do enorme
esforço para globalizá-las. Elas substituem os
produtos da literatura popular nos tempos da revolução
burguesa, ganhando em intensidade porque se adaptaram ao ritmo
trepidante das sociedades aceleradas pela informática.
P.L.
- Outro tópico abordado no livro é a participação
crescente da mulher nos ambientes da comunicação
e da academia. Que contribuição específica
esse novo perfil tem oferecido para o desenvolvimento da mídia?
J.M.M.
Ainda não se pode avaliar completamente o impacto
da participação feminina no mercado midiático.
As mulheres são hoje maioria no contingente profissional,
embora não tenham conquistado espaço suficiente
nas instâncias decisórias. Os dados até
agora disponíveis sobre esse fenômeno são
ainda descritivos e quantitativos. Falta, ainda, pesquisar melhor
a influência feminina nos conteúdos e tendências
dos produtos midiáticos.
P.L.
- Um estudo recente divulgado nos Estados Unidos indica um crescimento
nas mídias alternativas naquele país. Isso estaria
também sendo observado no Brasil?
J.M.M.
A mídia alternativa constitui rotina nas sociedades
democráticas, que permitem e estimulam a produção
simbólica das minorias ou das maiorias que se marginalizam
em relação às correntes culturais hegemônicas.
No regime de mercado, é natural que tais soluções
alternativas sejam gradativamente incorporadas aos sistemas
predominantes, sempre e quando correspondam às aspirações
de vastos contingentes de consumidores que garantam sua rentabilidade.
P.L.
- Outro ponto destacado no estudo é que a internet funcionará
como espaço de convergência para as outras mídias.
O senhor concorda com essa previsão?
J.M.M.
Tecnologicamente, a internet foi engendrada como espaço
de convergência simbólica, permitindo agregar conteúdos
originalmente produzidos para veiculação através
de suportes específicos. Até agora os suportes
monocodificados estão funcionando concomitantemente aos
suportes pluricodificados. Mas até quando permanecerá
esse dualismo? As evidências científicas ainda
são insuficientes para prever sua total integração.
P.L.
- Se essa tendência se confirmar, não implicará
um hiato maior entre as populações mais pobres,
excluídas do admirável mundo novo digital, e a
informação?
J.M.M.
A questão não se limita ao aspecto tecnológico,
até mesmo porque as tecnologias de informação
digital estão sendo barateadas fabulosamente. O problema
reside no domínio dos códigos. Não basta
melhorar a capacidade aquisitiva dos cidadãos, ampliando
seu acesso às novas tecnologias. Enquanto tivermos massas
amorfas, analfabetas e ignorantes, as demandas comunicacionais
permanecerão defasadas.
P.L.
- Pesquisa divulgada em 2003 indica que apenas uma parcela da
população brasileira (25%) é capaz de discernir
a leitura de uma informação escrita. Esse não
é um desafio particularmente difícil para uma
atuação mais séria da mídia impressa?
J.M.M.
Este é o argumento que venho reiterando desde
o início. A salvação cultural da nossa
sociedade está na universalização do sistema
educativo.
P.L.
- Que tipo de lição programas como Big Brother,
Hebe e Ratinho podem oferecer aos estudiosos da mídia?
J.M.M.
Pouco conhecemos sobre a natureza de tais programas,
seus conteúdos e seu impacto sócio-cultural. A
academia brasileira padece de aguçado preconceito, pouco
ou quase nada pesquisando sobre formatos midiáticos que
vêm demonizando historicamente.
P.L.
- Que tipo de proposta tem norteado o grupo de São Bernardo
do Campo, voltado para os estudos da comunicação?
J.M.M.
A mística do Grupo de São Bernardo pode
ser resumida numa frase: pragmatismo utópico. Resgatando
o legado da Escola Latino-Americana de Comunicação
formamos uma geração de estudiosos midiáticos
vocacionados para decifrar a "esfinge midiática".
P.L.
- A mesma proposta poderia ser ampliada para outras regiões
do país?
J.M.M.
Ela começa a se difundir pelo restante do país,
na medida em que nos mestres e doutores atuam em outras universidades.
Se eles não logram resultados imediatos é porque
se defrontam com ambiente hostil, cimentado pelas atitudes apocalípticas
importadas dalém-mar, especialmente ancoradas nas
defasadas teses da diáspora frankfurtiana.
P.L.
- Em sua opinião, a nossa universidade tem contribuído
a contento para explicar as variações do fenômeno
midiático no Brasil?
J.M.M.
Os estudos midiáticos na universidade brasileira
são ainda muito recentes. Apesar de termos programas
de formação universitária há meio
século, as atividades de pesquisa são ainda embrionárias.
Temos multiplicado os estudos sobre a mídia, embora eles
ainda permaneçam em patamares descritos. Falta uma vanguarda
capaz de dar tratamento holístico ao conhecimento estocado,
evitando a desnecessária reprodução de
pesquisas já feitas em outros espaços e no mesmo
tempo.
P.L.
- Como o senhor avalia as propostas de criação
de um quinto poder para atuar como um agente fiscalizador da
mídia?
J.M.M.
Acho fundamental que o Estado brasileiro mantenha instâncias
destinadas a monitorar cientificamente a mídia, como
aliás o fazem as nações democráticas.
Contudo, acho perigosa a institucionalização de
um mecanismo regulatório. Somos uma nação
onde a tradição autoritária continua profundamente
enraizada no tecido social.
Por
isso, a regulação dos sistemas midiáticos
deve ser feita pelo Parlamento, fiscalizada pelo Judiciário,
e implementada pelo Executivo. É fundamental garantir
plena liberdade de ação para que as empresas e
a sociedade civil possam nele intervir, dentro dos princípios
da livre iniciativa.
P.L.
- O Brasil real, com suas múltiplas manifestações
culturais, não aparece na grande mídia, ou não
está incluído na "agenda midiática".
Como é que essa barreira pode ser vencida?
J.M.M.
A produção cultural nas indústrias
midiáticas se faz de acordo com as lentes de uma camada
que oscila entre o elitismo da academia e o comercialismo dos
gestores empresariais. Para incluir o Brasil real em nossa mídia
seria necessário ampliar, fundamentalmente, os espaços
regionais, tendo em vista continuamos a ser um arquipélago
cultural. Concomitantemente, seria desejável promover
nas redes escolares programas de alfabetização
midiática, desmistificando e desmistificando os conceitos
equivocados que permeiam as atitudes da grande maioria dos nossos
agentes educacionais.
P.L.
- Para o senhor, quais seriam os atributos da TV ideal no Brasil,
para ficar somente na mais controversa das mídias?
J.M.M.
A TV ideal é aquela, em qualquer sociedade, que
está sintonizada com as aspirações culturais
dos contingentes majoritários da sociedade, garantindo-se
evidentemente espaços segmentados para o deleite intelectual
das elites.
Enquanto
o sistema educacional brasileiro não for universalizado
e melhorado, continuaremos a ter cidadãos incapazes de
demandar conteúdos mais avançados no espectro
televisivo.
Na
medida em que lograrmos elevar o nível cultural da nossa
população, imediatamente serão elevadas
as aspirações populares nos terrenos do entretenimento,
do jornalismo e da educação permanente.
*Paulo
Lima é estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes
(SE) e editor do Balaio de Notícias:
(http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)
Fonte:
Observatorio da Imprensa, 11.05.2004, Armazém Literário.
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