Entrevistas
A
genética e as
entrelinhas da notícia
Depoimento
de Claudio
Tognolli a
Paulo Lima
Cada
época proclama o seu zeitgeist, ou espírito de
época, como se referem os alemães. O espírito
do século 20 foi em larga medida dominado pelos paradigmas
da Física. Figuras como a do cientista Albert Einstein
e sua Teoria da Relatividade certamente contribuíram
para ampliar esse domínio sobre as demais ciências.
O reinado dos físicos, porém, foi substituído
pelos dos geneticistas. Hoje é a Biologia que ocupa o
espaço antes reservado à Física. Os genes
são o novo sujeito da história. Os problemas e
as respostas estariam na carga genética de cada indivíduo.
Esse novo paradigma não leva em conta que somos produtos
de relações complexas, que somos sistemas abertos,
como a meteorologia. O entorno social das questões não
é discutido.
Essa
nova ideologia e a forma como tem sido vendida pela imprensa,
sob a condição de verdade única, foi o
tema exaustivamente estudado pelo jornalista Claudio Tognolli
para a sua tese de doutorado em Filosofia da Ciência,
defendida na USP em 2002. O trabalho chega agora ao público
na forma do livro A Falácia Genética, recém-lançado
pela editora Escrituras. De abordagem interdisciplinar, enfocando
temas variados como genética, jornalismo, biotecnologia
e filosofia, a obra dialoga com idéias fundamentais que
forneceram as bases da ciência moderna.
Claudio
Tognolli (40) escreveu O Mundo Pós-Moderno (Scipione,
1997) e O Século do Crime (Boitempo, 1997), ambos em
co-autoria com José Arbex Jr, e Sociedade dos Chavões
(Escrituras, 2001). Além de jornalista, é músico,
mestre em Psicanálise e doutor em Filosofia da Ciência
pela USP. Atualmente, é professor de Jornalismo no Unifiam-Faam
e na ECA/USP, repórter especial da Jovem PAM e do Consultor
Jurídico. É também colaborador do Observatório
da Imprensa, da revista Caros Amigos e membro da Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI). Por e-mail,
ele concedeu esta entrevista em que repassa algumas idéias
científicas fundamentais para responder as perguntas
formuladas sobre o seu novo livro.
BN
- Quando e como o senhor se interessou por esse assunto?
Claudio
Tognolli - Sou músico. Venho de família de músicos
e psicanalistas. Desde adolescente eu tinha um estudo sobre
clichês na música. Que fui aperfeiçoando
ao longo de minha vida, com estudos com o Marcus Rampazzo e
o maestro Hans Joachimm Koellreutter. Quando fiz graduação
na ECA, fui passando esta visão pro jornalismo. Fiz um
dicionário de chavões na imprensa. Isso virou
minha tese de mestrado. Mas, quatro anos antes de ela ficar
pronta, meu trabalho com os clichês chamou a atenção
do Augusto Nunes e do Alberto Dines.
O
primeiro me pôs na capa do Caderno B do Jornal do Brasil
quando eu tinha 22 anos de idade, e o segundo me deu primeiro
lugar no Curso Abril. Sabe o que significava isso prum iniciante?
Tudo. Com tanto feedback, jamais deixei de ler jornal vendo,
nas entrelinhas, o que tentava se vender. Quando começou-se
a falar que os genes seriam a resposta final, fiquei com o pé
atrás. Esses primeiros arrepios datam de uns dez anos,
eu acho.
BN
- Em seu livro, o senhor indica que agora o novo espírito
de época é acreditar que a resposta final dos
problemas está nos genes, no DNA. Como essa crença
se estabeleceu?
CT
- A história da ciência é a história
da estética. A Teoria Geral da Relatividade já
estava nas entrelinhas do conto Entrevista com uma Múmia,
do Edgar Allan Poe, datado do século 19. Acho que foi
o TS Eliot quem disse que uma nova e grande obra de arte quando
aparece afeta, imediatamente, todas as obras de arte que a precederam,
obrigando-as a se reorganizar em seu derredor. Às vezes,
a estética e arte saem na frente da ciência. Às
vezes, é o contrario. Por exemplo: quando Witelo e Gauss
fizeram os primeiros experimentos com lentes e ótica,
administrar a luz virou sintoma de modernidade.
Por
isso na Divina Comédia, de Dante, Beatriz é salva
pela luz: era Dante sendo influenciado por Witelo. Há
quase 60 anos Adorno escreveu: O moderno ficou fora de
moda. A arquitetura pós-moderna desde os anos 50
passou a privilegiar a transparência. Transparência
que passou para outras áreas. Isso foi aproveitado no
jornalismo: a câmera oculta é a transparência
do não-autorizado. Temos isso no corpo, também:
vende-se a idéia de que o corpo "virou" transparente,
com o mapeamento do genoma.
BN
- Por que a "febre do biologismo", como o senhor se
refere no livro, torna-se determinante neste século?
CT
- Subirats aponta que a máquina desempenhou no início
do século 20 o mesmo papel que a natureza no século
18 ou o gênio no período romântico: era o
verdadeiro sujeito da história. Hoje, o gene é
o sujeito da história. A imprensa coloca a resposta final
dos geneticistas. A física chegou a limites que a biologia
chega apenas agora. O "gênio" sai da física
e vai para a biologia.
BN
- Por que se trata de uma falácia?
CT
- O termo Falácia Genética, que intitula o livro,
é um verbete clássico de filosofia. Usei-o para
um livro de biologia. O fato de a bicicleta ter sido inventada
na França (ou talvez na Escócia) não significa
que bicicletas sejam um meio de transporte inadequado na China.
Na Lógica, o erro de se confundir a origem de uma idéia,
teoria ou crença com os próprios fundamentos de
sua legitimidade é chamado de "falácia genética."
Então
se a origem do homicídio está nos genes homicidas,
isto é uma falácia. Porque somos sistemas abertos,
como a meteorologia e a economia. Mas vende-se que somos sistemas
fechados, como computadores, em que gene vira chip. Falar que
somos sistemas fechados, o que a imprensa tem feito, é
portanto uma falácia.
BN
- Que razões ideológicas estariam por trás
desse determinismo? E com que conseqüências sociais?
CT
- No século 19 o Times londrino satanizava o bacilo de
Koch. Dizia que era ele o "culpado" pela febre de
tuberculose. Omitiam-se as condições sociais miseráveis
que levavam à contração da doença.
No princípio do século 20, John D. Rockefeller
ponderava que "o desenvolvimento de vastos negócios
equivale muito simplesmente à sobrevivência dos
mais aptos".
Ao
que o magnata das ferrovias dos EUA, James Hill, acrescentou
em 1910: "A sorte das companhias de ferrovia é determinada
pela lei da sobrevivência dos mais aptos". Portanto:
as conseqüências sociais são que teremos logo,
logo a horda dos que trazem o "gene do homicídio"
em si, e não podem ser contratados...
BN
- Por que motivo a imprensa encampa essa novidade?
CT
- Porque isso é novidade. E porque as maiores assessorias
de imprensa do mundo são contatadas pelos grandes laboratórios
de implementos biotecnológicos, que estarão dominando
as bolsas de valores em dez anos.
BN
- De que modo essa postura da imprensa vai se refletir na qualidade
da informação?
CT
- Bem, passaremos a acreditar que pessoas detentoras desse ou
daquele gene podem mesmo ser aquilo que o gene determina.
BN
- Como a imprensa pode separar o joio do trigo, no caso da divulgação
das notícias científicas?
CT
- O Adlai Stevenson falava que a imprensa separa o joio do trigo
e publica o joio. Com raras exceções, ela não
separará.
BN
- Quais são as revistas que fazem um trabalho sério
de divulgação científica no Brasil? Por
que?
CJT
- Só a Scientific American, porque não visa o
lucro em cima de novidades.
BN
- E na área dos jornais impressos? Por que?
CT
- Folha de S. Paulo. Porque o Marcelo Leite, bem como o Ulysses
Capozzoli, na Scientific American, são muitíssimo
bem preparados. Mesmo assim, analisei, 95% do que sai na Folha
sobre o assunto vem sem comentários e portanto só
se publica o que as agências internacionais mandam.
BN
- Que avaliação o senhor faz do nível do
jornalismo científico praticado hoje no Brasil?
CT
- Medíocre, voltado para o mercado do encantamento.
BN
- O debate sobre os transgênicos tem oscilado entre a
sua aprovação e a sua condenação.
O senhor acha que a imprensa tem esclarecido o suficiente sobre
esse assunto?
CT
- Nesse ponto, eu acho que muito.
BN
- Será que podemos identificar no caso dos organismos
geneticamente modificados a "febre do biologismo"
de que o senhor fala?
CT
- Claro. É o mesmo processo levado ao paroxismo.
BN
- Experiências como as de congelamento de corpos nos Estados
Unidos, visando uma ressurreição no futuro, aponta
para uma fé desmedida na ciência. A ciência
estaria ocupando a função de uma nova religião?
CT
- Sempre foi assim. Pena que a fé dos cientistas seja
complexa para as massas, que preferem o Deus antropomórfico.
A religião do futuro será a que Einstein previu:
não antropomórfica. Mas toda a forma de poder
vira ideologia, a ciência não fica de fora.
BN
- Em sua opinião, que interesses existem por trás
de projetos como o mapeamento do genoma humano?
CT
- Curar doenças, o ponto genial da coisa. Mas não
de graça: levaremos ideologia de brinde.
BN
- O senhor acredita que o mapeamento pode levar a uma tentativa
de controle eugênico, no futuro, separando os genes bons
dos ruins, as pessoas "boas" das pessoas "ruins"?
CT
- O genoma humano contém mais de 3 bilhões de
letras e, caso impresso, preencheria 7 mil volumes de livros
de 300 páginas. Dizem uns que o Projeto Genoma Humano
vai transformar a medicina e mitigar o sofrimento humano no
século 21 - como afastar as possibilidades de câncer,
da cardiopatia, de doenças auto-imunes como a artrite
reumatóide e algumas enfermidades psiquiátricas.
Para outros, no entanto, o Projeto poderá abrir a possibilidades
para um mundo "povoado por Frankensteins e desfigurado
por uma nova eugenia".
BN
- Como o senhor avalia posturas como a do físico Fritjof
Capra, que hoje assumiu novos paradigmas após anos de
aproximação da ciência com as filosofias
orientais?
CT
- Isso do Capra não é novo. É dos anos
70. O dr. Timothy Leary, de quem fui amigo, admitiu o Capra
e o movimento "Tudo num só", mais iogues, swammies,
dentro de tudo o que a contracultura tentou abarcar. Tive muitas
aulas com o maestro Koellreutter, mestre do Tom Jobim, que ficava
me buzinando pra eu estudar o Capra.
O
maestro Koellreutter criava as suas peças, como "Akronon",
em cima das teorias do Caos e do Princípio da Incerteza
do Niels Bohr e do Werner Heisemberg. Esse pessoal do Capra
é o do Niels Bohr, cujos estudos foram patrocinados pelas
Cervejarias Carlsberg. Quando ele ganhou o Nobel, botou o símbolo
do Tao em cima da medalha. O Capra tirou sua idéia daí.
Essa história tem a ver com neoliberalismo. Porque, se
o substrato da natureza é o caos, dizem esses caras,
não podemos alterar nada. Basta-nos meditar. Isso é
o substrato do neoliberalismo: a "mão invisível"
da teoria do caos é a mesma mão invisível
que Adam Smith via no mercado.
Esse
pessoal new age, do Capra, é no fundo um bando de gente
que defende o neoliberalismo. Capra é uma ideologia neoliberal
refinada. Por que são os grandes milionários como
os Marinho, Príncipe Charles, que apóiam os movimentos
como o Greenpeace ou WWF? Porque essa gente quer ver países
de terceiro mundo em seu lugar de exportadores de matéria
prima. Só isso. O movimento ecológico tem muito
de ideologia neoliberal anti-desenvolvimentista, mas apenas
para o terceiro mundo.
Nesse
sentido, Capra é um demônio. Mas que jornalista
vai querer estudar essas coisas? Como diz o vulgo, são
"coisas de louco". Jornalista é basicamente
preguiçoso e egocêntrico. Tem medo em geral de
ir buscar explicações nas ciências duras.
Vai buscar explicação para a comunicação
nas teorias da comunicação, todas falhas, superficiais,
ultrapassadas. Ou busca explicações no seu ego.
E ganha a vida dando adjetivos para situações.
Esse é o espírito do comentarista político,
por exemplo. Prefiro um repórter de polícia iniciante
a um colunista político.
O
primeiro, em sua humildade, busca fatos, sobre os quais, se
erra, é processado. O segundo, busca adjetivos no fundo
de copos de uísque. Estudar ciência é um
ato de humildade. O adjetivo é a metafísica do
verbo. Não serve para jornalismo. E a memória
é a fonte do jornalista em fim de carreira.
BN
- Quem ganha e quem perde com a ideologia do DNA?
CT
- Vamos ganhar muita saúde com as novas descobertas.
Mas vamos levar de brinde a ideologia de que os genes são
a resposta final.
BN
- Estamos à mercê da ciência e dos cientistas?
CT
- A ciência é libertária. Mas o uso que
se faz dela não de todo. Infelizmente. O preço
da metáfora é a eterna vigilância. Vivemos
agora a metáfora de que o corpo é transparente.
Não tenho dúvidas de que se por um lado muita
coisa será curada, teremos também um novo e poderoso
instrumento eugênico nas mãos.
Com
a imprensa chancelando tudo, graças aos jornalistas preguiçosos
que lêem apenas orelhas de livros, têm preguiça
de estudar, não sabem se impor porque não têm
cultura, ou porque levam o jornalismo como emprego, não
como missão. Ou porque se rendem às novidades
para se manter vivos, porque a novidade bombeia vida nas veias
de gente que há muito se sente morta, coisificada. Estamos
à mercê de jornalistas que acham que entendem das
coisas e vivem de adjetivos. Nesse sentido, ser repórter
é uma profissão de fé.
Fonte:Balaio
de Notícias, 28.03.2004.
http://www.sergipe.com/balaiodenoticias/index.htm
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