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Dossiê


Nos tempos da ditadura - O efeito devastador
do 477 no edifício em construção da ECA-USP

Entrevista concedida por José Marques de Melo a Vera Rodrigues

O ano de 1968 marcou um período sombrio na vida institucional brasileira. O país já estava mergulhado no regime autoritário instalado após o golpe de 1964. Os presidentes militares governavam sob os auspícios dos famigerados Atos Institucionais, que reduziam os poderes civis e ameaçavam os que ainda tentavam lutar pelos princípios democráticos.

"Às dezessete horas da sexta-feira, dia 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do palácio. Começava uma missa negra." (Gaspari, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pg.333).

Baixado o Ato Institucional número 5, que marcaria o mais difícil período da repressão, em todas as esferas da sociedade civil, medo, perseguições e até omissões e covardias tomaram conta das universidades brasileiras, numa tentativa de por de joelhos o que de mais precioso estes centros de conhecimento detinham: seu material humano.

Professores foram cassados, afastados sumariamente, num ato de brutalidade que traria inumeráveis prejuízos à instituição. O professor Marques de Melo foi um dos atingidos pelo arbítrio.

Aqui ele relembra, sem mágoas, com serenidade, o que foram aqueles anos negros.

VR - Quando e em que circunstância se deu seu afastamento da USP? Foi em função do Ato Institucional número 5?

JMM - Fui vítima de "cassação branca" em 1974, sendo impedido de lecionar e pesquisar na instituição até a Anistia Política de 1979, quando fui reintegrado em minhas funções acadêmicas. O processo teve perfil kafkiano, iniciando-se em 1972, fundamentado na legislação excepcional promulgada pelo AI-5, oriundo da Junta Militar que assumiu o poder constitucional logo após o impedimento do Presidente Costa e Silva. O meu processo foi baseado no Decreto-Lei 477, editado para punir docentes e estudantes universitários.

A acusação formal era a de que eu havia publicado uma apostila "subversiva", na qual teria incitado meus alunos a se opor ao governo militar. A apostila que circulou em várias universidades brasileiras e ganhou destaque internacional por sua inovação pedagógica, se intitulava "Técnica do Lead". Ela continha as anotações de aulas registradas pelos meus alunos do curso de jornalismo, tendo como ilustrações as notícias publicadas pela imprensa de prestígio nacional (que, aliás, estava sob o regime de censura prévia).

As autoridades alegavam que, circulando fora do país, aquelas notícias "denegriam" a imagem internacional do nosso governo. O processo foi instaurado pela Reitoria da USP, que recomendou minha punição. Mas o Ministro da Educação, General Jarbas Passarinho, a quem cabia a decisão final, verificando que a denúncia era improcedente, me absolveu.

Aqueles eram tempos conturbados, em que as instâncias inferiores nem sempre obedeciam as decisões superiores. Em São Paulo, os agentes de segurança vinculados à chamada "linha dura" desdenhavam as normativas do Governo instalado em Brasília. Acobertadas pelo comando do II Exército elas agiam nos porões da ditadura, contando com a conivência das autoridades civis, intimidadas, atemorizadas, acovardadas.

Foi assim que em 1974, dois anos depois de absolvido pelo Ministro da Educação, eu fui surpreendido com o Ato assinado pelo então Reitor da USP, Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva, cancelando a vigência do meu contrato de trabalho na universidade. De nada adiantaram os recursos impetrados. Outros colegas da instituição foram vítimas de arbitrariedades semelhantes, sem direito a defesa, a indenização pecuniária e a ressarcimento dos direitos trabalhistas.

Periodicamente circulavam no campi da USP listas de "indesejáveis" que a Reitoria, cândidamente, demitia ou não contratava. Essa situação perdurou até 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia. Os colegas do Departamento de Jornalismo fizeram um abaixo-assinado dirigido ao Reitor da USP, reivindicando a reintegração dos docentes cassados. Fui reintegrado no primeiro lote, juntamente com Jair Borin e Thomas Farkas. Depois, foram reintegrados Sinval Medina e José Freitas Nobre.

VR - Qual era sua situação na USP, na época? O senhor já havia implantado a estrutura dos cursos da ECA? Estava atuando em algum projeto específico?

JMM - Minha situação na USP, naquela época, era a seguinte: eu exercia a função de Regente da Cátedra de Técnica de Jornal e Periódicos. Até 1972, ocupei o cargo de Diretor do Departamento de Jornalismo, mas em função do processo instaurado com base no Decreto-Lei 477, o Diretor de então, Prof. Dr. Antonio Guimarães Ferri, achou "prudente" que eu não permanecesse em função dirigente. Como ele candidato a Reitor e não queria complicações com os dignatários do regime militar optou pelo meu afastamento da liderança acadêmica no Departamento de Jornalismo.

Como eu já havia implantado o Curso de Jornalismo e concluíra a etapa inicial de instalação do Curso de Editoração, comecei a me preocupar com o desenvolvimento da pós-graduação.

Apresentei um projeto nesse sentido aos órgãos superiores da universidade, recebendo sinal verde. A FAPESP também apoiou a iniciativa, concedendo-me bolsa de pós-doutorado na Universidade de Wisconsin (USA), onde permaneci estudando o modelo norte-americano de ensino e pesquisa em jornalismo. Mas, ao retornar, em 1974, fui surpreendido com a minha demissão dos quadros da universidade. Meu projeto de pós-graduação em Jornalismo ficou arquivado.

VR - Havia quanto tempo o senhor estava na USP, quando foi afastado?


JMM - Eu comecei a trabalhar na USP em 1966. Inicialmente colaborei como voluntário. Logo que a ECA foi criada, abrindo seu primeiro concurso público para admissão de docentes, eu me candidatei, sendo aprovado. O primeiro diretor da ECA, Prof. Dr. Julio Garcia Morejón, logo me convocou para colaborar com a instituição, pedindo-me para fazer um projeto de jornal-laboratório e depois para reformular o currículo do curso de Jornalismo, tendo em vista a vigência de novas diretrizes emanadas do MEC. Minha nomeação, contudo só se efetivou no início de 1967, uma vez que os processos passavam por uma rigorosa verificação junto aos órgãos de segurança.

Eu temia pelo meu impedimento inicial, pois fora antes processado em Pernambuco, em vista da minha atuação como integrante da equipe do governador cassado Miguel Arraes. Mas ainda não havia sistema informatizado na administração pública, livrando-me, nesse momento, de ser constrangido. Logo depois que tomei posse fui convidado pelo Diretor da Escola a assumir a primeira Cátedra de Jornalismo, o que me obrigava ao Regime de Dedicação Exclusiva à Docência e à Pesquisa (RDIDP).

Quando foi criado o Departamento de Jornalismo, tive a satisfação de, mesmo sendo o docente mais jovem, ser nomeado para a sua direção. Permanecei nesse cargo até 1972, quando, processado pelo 477, passei a figurar como "persona non grata" junto aos altos escalões da universidade. Dediquei-me, então, a concluir minha tese de doutorado. Como fui o primeiro doutor em Jornalismo do país, a notícia ganhou grande repercussão na imprensa nacional. Isso desagradou o chamado "terceiro estágio" (informantes policiais que atuavam nos gabinetes da Reitoria).

Fui aconselhado a ficar fora do país durante algum tempo para não ser perseguido ostensivamente. Foi então que decidi fazer pós-doutorado. Mas a turma da segurança nunca perdia de vista aquelas pessoas que não baixavam a cabeça. Por isso mesmo, ao retornar ao país, em 1974, fui vítima do golpe fatal. Demitido sumariamente. E vigiado de forma ostensiva toda vez que comparecia ao campus.

VR - Como lhe foi comunicado o afastamento?

JMM - Ao retornar do programa de pós-doutorado, compareci ao Departamento de Jornalismo, apresentando meu relatório de viagem. Como era início do segundo semestre, assumi a regência de uma disciplina no curso de pós-graduação e comecei a trabalhar com meus alunos. Um belo dia, sou convocado a comparecer ao gabinete do Diretor da Escola, Prof. Dr. Manuel Nunes Dias, que me apresenta um ato publicado no Diário Oficial, naquele dia, determinando o meu afastamento sumário da instituição. Fiquei transtornado, pois, como fora absolvido no processo regularmente instaurado dois anos antes, me considerava imune a situações dessa natureza. Pedi explicações.

Não me foram dadas pelo Diretor, que me dizia estar cumprindo ordens superiores. Pedi uma audiência ao Reitor, que, a muito custo, me foi concedida. Ele me disse que não tivera outra alternativa senão baixar o ato da minha demissão, juntamente com outros docentes incluídos numa lista elaborada pelos órgãos de segurança. E assim ficou a situação. Depois de 7 anos de serviços prestados à universidade não recebia qualquer indenização. Tive que reiniciar minha carreira acadêmica fora do sistema público.

VR - Outros professores foram afastados na mesma época? A alegação foi a mesma?

JMM - No Departamento de Jornalismo, cinco docentes foram vítimas de perseguição política durante o regime militar: José Freitas Nobre, Jair Borin, Thomas Farkas, José Marques de Melo e depois Sinval Medina. Cada um teve uma acusação diferente. Mas os processos foram semelhantes. Demissão sumária, sem direito a defesa ou a ressarcimento dos danos causados.

VR - Como estava o ambiente na USP, quando se deu seu afastamento? O clima ainda era de tensão e receio, face aos primeiros expurgos havidos na universidade, quando os professores começaram a ser afastados?


JMM - A universidade brasileira ficou atemorizada a partir de 1964, quando ocorreram as primeiras cassações, amparadas no AI-1. A partir de 1968, veio o período do terror. Novas cassações, fundamentadas no AI-5. A terceira fase foi a das "cassações brancas", motivadas pelos processos secretos instaurados nos organismos de Segurança e Informação existentes em cada universidade. Durante toda a década de 70 predominou um sistema marcado por delações, investigações, caça às bruxas. Houve casos isolados que se divulgava de boca a boca.

Na USP, eles sempre repercutiam intensamente. Algumas vezes transbordavam para a imprensa. Mas as reações internas eram logo sufocadas, sob a ameaça de que seus líderes viessem a figurar nas próximas listas. No caso da ECA, o ápice desse processo ocorreu quando os estudantes, revoltados com tantas cassações e perseguições a seus professores, decidiram fazer uma greve contra a gestão do Diretor Nunes Dias, a quem atribuíam a autoria intelectual dessas arbitrariedades. Embora parassem a escola durante vários meses, perdendo o ano letivo, os alunos nada conseguiram. A mudança só viria ao final da abertura política, quando o governo militar concorda em anistiar os cassados.

VR - Hoje, como o senhor analisa aqueles momentos difíceis?

JMM - Com muita tristeza. Minha geração desperdiçou boa parte da sua vida intelectual produtiva, tendo que autodefender-se para não ser vítima de arbitrariedades. Mas também foi um período rico em solidariedade humana. Muitas pessoas preservaram a dignidade que as caracterizava, ajudando perseguidos, amparando condenados ou acolhendo órfãos e viúvas, apesar do terror generalizado.Outras optaram pelo exílio voluntário para viver de forma menos opressiva.

VR - O senhor chegou a ter algum tipo de militância ou atuação partidária que servisse de pretexto para seu afastamento?

JMM - Na minha juventude, eu tive atuação no movimento estudantil. Participei das lutas políticas da época, alinhando-me à esquerda e vindo a colaborar com o primeiro governo popular deste país, liderado por Miguel Arraes no Estado de Pernambuco. Mantive sempre diálogo franco e aberto com os meus colegas da juventude comunista e da esquerdas católica. Mas ao optar pela carreira acadêmica no campo do jornalismo, achei que não era compatível exercer militância política.

Permanecei evidentemente fiel aos meus ideais da juventude, mas afastado das lides partidárias ou comunitárias. Nunca hesitei porém, como cidadão, em defender francamente o que desejava para a minha sociedade e para o meu povo. Tudo isso está contido nos livros que escrevi. Conseqüentemente, acho que fui perseguido injustamente pelo governo militar, uma vez que jamais fiz proselitismo em sala de aula, nem induzi meus alunos a pensar da mesma forma que eu. Sempre me pautei pelo respeito ao pensamento dos outros, mesmo que deles discordasse frontalmente.

VR - Qual foi, na sua avaliação, o maior prejuízo sofrido pela USP com o afastamento/expurgo dos anos 60?

JMM - Os maiores prejuízos foram determinados pelo afastamento de grandes pensadores como Florestan Fernandes, que deixaram de contribuir cotidianamente para a formação de novos intelectuais. Mas também foi um período que pôs à prova a terceira geração dos pensadores uspianos, que foi obrigada a construir novos horizontes sem negar o legado dos mestres que os precederam.

VR - Em termos pessoais, como o senhor enfrentou o período em que foi forçado a deixar uma atividade à qual dedicava tanto de si próprio?

JMM - Realmente, quando optei pelo trabalho em RDIDP na USP, fiz uma opção consciente pela vida acadêmica. Interrompe-la abruptamente, quando me encontrava em pleno amadurecimento intelectual (pós-doutorado), foi dramático. Mas, como provenho de uma cultura rústica (nordestina), cedo aprendi a gerar mecanismos de resistência para sobreviver com dignidade.

Por isso mesmo, empenhei-me em fundar uma sociedade científica - a INTERCOM - onde pudesse dar continuidade aos projetos interrompidos na USP, a eles agregando outros colegas, que também haviam perdido seus espaços de trabalho em suas instituições de origem.

VR - Após ser afastado da USP, o senhor deixou o país?

JMM - Apesar de ser convidado para exercer funções em outros países, graças à solidariedade internacional dos colegas e amigos, optei por resistir pacificamente, aqui permanecendo. Trilhei pelo caminho do exílio em minha própria terra.

VR - Como sobreviveu nos anos negros?

JMM - Fui trabalhar em universidades particulares e voltei ao exercício do jornalismo.

VR - Como foi sua volta?

JMM - Minha volta se deu após a Anistia de 1979. Um movimento liderado pela Profa. Maria do Socorro Nóbrega trouxe de volta os cassados do Departamento de Jornalismo. O nosso espaço de trabalho havia sido praticamente desmantelado, pois aqui permaneceram heroicamente apenas os ex-alunos da Escola, ainda inexperientes do ponto de vista acadêmico. Mas eles foram adquirindo suas próprias habilidades e preservando as diretrizes iniciais dos cursos de jornalismo e editoração, que mesclavam empirismo e criticismo.

Mas logo depois do retorno, fui convocado pelos meus colegas para reassumir a chefia do Departamento, na tentativa de reconstruir nossa identidade e recriar as condições de trabalho de que se ressentiam os alunos. Foi um período muito rico, em que atuamos em regime de mutirão intelectual, num clima de grandes debates, mas de muito empenho produtivo. Ao final da década de 80, fui concitado por colegas de toda a unidade a me candidatar a Diretor da ECA. Mesmo tendo estado fora da universidade durante todo o ano eleitoral (1988), pois estava realizando pesquisas na Europa, aceitei o desafio e logrei uma grande vitória, tendo sido sufragado pela grande maioria dos professores e estudantes.

Exercei o mandato de Diretor da ECA durante o quadriênio 1989-1992, realizando um projeto de atualização pedagógica, internacionalização investigativa e criando canais de diálogo com a sociedade, inclusive as corporações profissionais. Terminada essa missão, entendi que era o momento de partir para novas aventuras intelectuais, depois de 34 anos de serviço público. Aposentei-me em 1993, atendendo a convite da Universidade Metodista de São Paulo e ao mesmo tempo incentivado pela UNESCO a ali implantar uma Cátedra de Comunicação, o que permaneço fazendo até hoje.

VR - É possível fazer uma análise do que foram aqueles anos, para o senhor e seus colegas também atingidos pelos atos de exceção? Quais foram seus maiores danos pessoais? E profissionais?

JMM - Eu sou uma pessoa otimista, que não guarda rancores, nem coloca mágoas na geladeira. Assim sendo, contabilizo aqueles momentos de constrangimento na rubrica do passado. Espero que eles não voltem a se repetir, sob qualquer signo ideológico. O Brasil tem experimentado um rico período de fortalecimento democrático, do qual venho participando com entusiasmo e esperança.

Assim sendo, o que passou, passou. As lições de outrora não podem ser esquecidas. Mas não devem funcionar como freio de mão capazes de impedir avanços e conquistas.Se eu tive perdas, também tive ganhos. Viver é lutar. A boa luta está justamente na edificação de utopias.

São Paulo, 20 de maio de 2003.

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