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Dossiê


Resgate de um veículo pioneiro

Entrevista concedida por Ethevaldo Siqueira a Mônica Kimura

O curso de Jornalismo da Escola de Comunicação da USP iniciou suas atividades em 1967. E, segundo o cronograma de atividades, o primeiro Jornal Laboratório deveria iniciar sua veiculação no segundo semestre de 1968. Tratava-se de um instrumento fundamental no processo teórico-prático desenvolvido para o processo ensino aprendizagem do fazer jornalístico.

Diversos processos burocráticos que se seguiram foram se interpondo no caminho deste que seria o primeiro piloto de um veículo laboratorial que culminou em sua implantação somente em fins de 1969. Denominado Jornal, deste só restaram fotos de algumas capas em relatórios produzidos pelos docentes do curso na época e referências breves em algumas publicações, esta entrevista tem como objetivo, o resgate precioso da memória de quem viveu, conviveu e “respirou” aquele projeto pioneiro.

Tratam-se das reminiscências de Ethevaldo Siqueira, aluno graduado pela USP, na primeira turma do Curso de Jornalismo da então Escola de Comunicações Culturais. Hoje, um dos jornalistas mais conceituados da área de Telecomunicações, Prêmio de Esso de 1969, na categoria Menção Honrosa, e de 1978, na categoria Informação Científica e Tecnológica.

Porém, naqueles anos duros de 1968-69, Ethevaldo teve o privilégio de ser o editor do Jornal (nome instituído pelo próprio). Sobre este pioneirismo ele se refere com profunda modéstia. Mas suas respostas têm a pujança de quem conhece o ofício e por isso mesmo guarda com inegável orgulho suas lembranças e mesmo, deixa claro o desejo de ver resgatado o registro deste que foi o primeiro veículo laboratorial do Jornalismo da USP.

E que por sinal, lamentavelmente, já não existe mais qualquer exemplar deste trabalho pioneiro, a não ser algumas reproduções de capas em algumas publicações da então Escola de Comunicações Culturais.

Por força da profissão, a entrevista que se segue foi feita em meio a viagens do entrevistado ao exterior. Um trabalho de paciência, tanto de entrevistado como de entrevistadora, mas que deixa clara a enorme gratidão que o profissional tem por quem o orientou, incentivou e até o instigou a ir em frente. No final de sua mensagem ele coloca que, “...mesmo em meio a viagens e obrigações faço-o (redigir as respostas aos meus questionários) com muita alegria, pois realmente admiro o trabalho de meu mestre e amigo, professor José Marques de Melo”.

Mônica Kimura - Quanto à sua experiência acadêmica. Como foi esta primeira turma de Jornalismo da ECA? O que, quem o impressionou / estimulou?

Ethevaldo Siqueira - Sempre me impressionou a vocação única de José Marques de Melo para o estudo do Jornalismo e das Ciências da Comunicação. Nós, jornalistas, nem sempre estamos voltados para o lado da pesquisa, dos questionamentos teóricos e para os estudos mais eruditos do próprio Jornalismo.

Sou formado pela primeira turma da ECA e sou muito grato ao trabalho de muitos professores que nos tentaram atrair para o estudo mais profundo do Jornalismo, entre os quais o professor José Marques de Melo.

MK - Já que falamos do professor Marques de Melo, gostaria que descrevesse suas lembranças sobre o relacionamento professor-aluno (momentos/casos interessantes).

ES - A princípio, nosso relacionamento foi de alguma desconfiança, particularmente dos mais velhos, que já eram profissionais e achavam que a teoria e a pesquisa eram coisas de pouca significação para o bom profissional.

Logo, no entanto, passamos a respeitar Marques de Melo porque vimos em sua insistência a proposta de um estudo muito mais profundo da realidade do Jornalismo entre nós. Um dos exemplos dessa mudança foi a pesquisa, da qual participei, sobre o tempo de leitura dos jornais que os leitores dedicavam diariamente.

MK - A respeito do primeiro Jornal Laboratório: como não havia muitas referências anteriores no Brasil (salvo o que a Faculdade Casper Líbero já havia produzido, mas era também experimental) como foi desenvolvido o projeto, tanto a parte editorial como a gráfica?

ES - Para mim, o jornal laboratório – cujo nome foi idéia minha (Jornal, simplesmente, sem nenhum complemento) – foi uma experiência emocionante, pois estávamos vivendo em 1968 o período mais duro da repressão estudantil, sem liberdade, com o campus da USP ocupado pelos alunos, sem aulas formais, mas com palestras ao ar livre, trabalho voluntário, impressão de panfletos, participação em passeatas, ocupação do Conjunto Residencial da USP (o hoje esquecido CRUSP).

Fizemos nesse período um festival de comunicações, com predominância para o cinema, que contou até com a presença de (Roberto) Rosselini, o diretor italiano. O Jornal cobria tudo, como depois continuou cobrindo palestras de visitantes estrangeiros e brasileiros de primeiro nível. No final de 1968, veio o ato institucional n°5 e tivemos, a partir de então, a ditadura escancarada, com tudo que ela acarreta de violação de liberdades e direitos humanos. Décio Pignatari fazia palestras nos gramados vizinhos ao bloco B-9 onde estávamos instalados (e a própria Escola de Comunicação funcionava).

O Jornal foi um projeto magnífico, um exercício para nossa criatividade, com a participação direta de um grupo que realmente queria aprender a escrever, a diagramar, a fotografar, a editar, enfim, a fazer jornal. Não havia modelo anterior, mas isso não importava. Estávamos num laboratório, em que tudo pode ser experimentado.

No aspecto visual, copiávamos um pouco o Jornal da Tarde, que era a grande sensação de inovação no estilo de vespertinos, com ousadia gráfica, fotos de impacto, linguagem mais irônica e coloquial em relação a tudo que havia. Com o professor Marques de Melo, fazíamos reuniões semanais, discutindo pautas, projeto gráfico, linguagem, coberturas e tudo o mais.

MK - Como era fisicamente o primeiro Jornal Laboratório (papel/gramatura, número de páginas, tiragem, enfoque editorial, periodicidade etc)?

ES - O primeiro número do Jornal não tinha mais que 12 páginas, em papel jornal comum, mas tratava tanto de política quanto de assuntos ligados ao projeto jornal-laboratório e ao curso de Jornalismo. A impressão era feita com as velhas impressoras do serviço gráfico da Escola de Comunicação, nada de offset, com composição manual em chumbo (linotipo). Falávamos até da história da linotipo (inventada por Merghentaler, em 1884!!).

Não me lembraria hoje do conteúdo desses primeiros números do Jornal, mas sei que nossas cabeças estavam explodindo com as manifestações em todo o mundo contra tudo que representasse repressão (É proibido proibir), as greves estudantis que paralisaram a França, as idéias de Marshall McLuhan, a Guerra do Vietnã, o combate à ditadura entre nós, a morte de Che Guevara, o sonho de uma revolução que nunca veio, mas que nos alimentou por muitos anos. O estruturalismo era a grande discussão. Falávamos com desenvoltura e alguma leviandade tanto em Roland Barthes, como em Levy Strauss, Marx, Engels e outros.

MK - E como o primeiro editor desta publicação buscou inspiração para exercer tão importante papel? Vc tinha noção de que estava fazendo História? Havia essa preocupação?

ES - Nossa preocupação em fazer História era permanente. Acreditávamos que a comunicação seria o farol a conduzir as massas rebeladas, principalmente com os jornais, rádio, televisão e satélites – que, ingenuamente, esperávamos controlar, tomar, conduzir, rumos aos objetivos da revolução permanente. É claro que havia resistência de professores mais conservadores que não queriam ver no Jornal um instrumento de desalienação (como dizíamos) de abertura de novas idéias. Mas, mesmo assim, fomos em frente.

MK - Você mesmo me disse que estavam em plena ditadura militar. Houve represália? Momentos de tensão?

ES - A grande repressão começou no final de 1968, com invasões do campus pela polícia, prisões, exílio e, em 1969, com o confronto e as reação sob a forma de seqüestros de diplomatas estrangeiros e o endurecimento total da censura. Eu vivia um dublê de estudante e profissional do Jornalismo, trabalhando à tarde e à noite no Estadão, sob censura total a partir de 13 de dezembro de 1968. Imagine o que era nosso dia-a-dia.

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