ENTREVISTAS
"Jornalismo
basic one"
Depoimento
de
Israel do Vale a Marcelo Januário*
Ex-editor
da Ilustrada e da Revista Cultura e Mercado,
o jornalista Israel do Vale atualmente é diretor
de programação e produção
da Rede Minas (TV Educativa de Minas Gerais) e
editor do laboratório multimídia do Rumos
Jornalismo Cultural, projeto do Itaú Cultural.
Na
entrevista a seguir, ele comenta o atual estágio
do jornalismo cultural brasileiro, seus problemas, qualidades
e possibilidades para o futuro.
Marcelo
Januário:
Na sua opinião, quais são os motivos
que levam o jornalismo cultural a ser tão criticado
no Brasil?
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Reprodução
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Israel
do Vale: Há dois problemas básicos, na minha
leitura, mas ambos remetem para a questão do mercado.
O primeiro deles é industrial / econômico: de um
lado, a mudança no modelo de produção e
distribuição de notícias (não só
pela disseminação da internet, mas pelas facilidades
tecnológicas implantadas na "linha de montagem"
das redações) radicalizou a segmentação
de tarefas dentro dos jornais e transformou em armadilha o que
poderia ser um benefício, dando origem a uma falsa especialização.
Outro
fator decorre da estagnação econômica do
país. Com menos dinheiro circulando pela economia (ou
seja, menos anunciantes) e a disparada do dólar (que
interfere diretamente no "bolso" das empresas, visto
que o papel-jornal representa cerca de 50% dos custos da produção
do periódico -e a maior parte do papel ainda é
importada), os empresários começaram a reduzir
os gastos drasticamente e isso se refletiu no tamanho tanto
dos cadernos como das equipes.
Com
menos gente e menos espaço, o repertório de assuntos
e a profundidade da abordagem são cada vez mais restritos.
Fosse
pouco, as redações estão sendo progressivamente
"juvenilizadas" (porque manter uma equipe experiente
custa mais), uma decorrência do investimento que os veículos
fizeram no "adestramento" de estudantes (com os inúmeros
cursos de focas) e na "formularização"
dos textos (apoiada com muita força nos manuais de redação).
Isso
tudo está ligado ao primeiro fator. O outro problema
é de uma certa "crise existencial", reflexo
da "concorrência interna" (de conteúdo)
gerada pela multiplicação dos cadernos -uma forma
de organização que, em princípio, seria
sem dúvida um benefício.
A
adoção dos cadernos de idéias disseminou
a visão de que aquele era o lugar para textos "cabeça";
de outro lado, a criação dos guias de fim de semana
concentrou o compromisso com os serviços e os cadernos
adolescentes/ e revistas dominicais a cobertura comportamental.
Os cadernos de cultura ficaram no meio desse tiroteio, arriscando
um pouco de tudo, mas até o meio do caminho.
Com
a queda na circulação geral, os jornais começaram
a apelar e a usar artifícios das revistas (que sim, vivem
do seu apelo de capa) e cederam progressivamente ao celebridismo
-a visão tosca (e para mim anti-jornalística)
de que as pessoas só se interessam pelo que elas já
conhecem.
Outro
erro gritante é o desprestígio (pra não
dizer abandono) da reportagem, que combina bem com o papel de
guia de consumo que os cadernos têm cumprido. Acho que
este conjunto de elementos explica a esqualidez e a falta de
imaginação que tomaram conta dos cadernos.
MJ:
Se tivéssemos de demarcar um ponto de origem
para o "declínio" da crítica, qual momento
você apontaria?
IV:
Não consigo visualizar uma data específica ou
uma estratégia intencional de quem quer que seja. Vejo
isso como um processo complexo, induzido por todos os fatores
listados acima. Se posso arriscar um período indeterminado
de "esqualidez crônica" seria a segunda metade
dos anos de 1990.
Se
os anos 80 foram marcados por um investimento na sedução
visual (espécie de resposta gráfica para os efeitos
da cultura televisiva) e geraram o primeiro movimento concreto
em direção às fotos maiores/ textos menores,
os anos 90 foram chacoalhados pelo surgimento da internet -o
que deu mais agilidade na circulação da informação
e desmontou alguns artifícios de que os jornais (e revistas)
se valiam com muita freqüência.
Estou
me referindo à banalização da circulação
de material produzido por agências. Quando o Último
Segundo do IG começou a retalhar as notícias
recebidas por agências e a publicar praticamente tudo
que chegava deste modo, os jornais foram forçados a rever
(na cobertura internacional, sobretudo, mas também na
cultural) o uso que fariam daquelas mesmas informações,
envelhecidas prematuramente. Mas isso foi só o primeiro
movimento neste xadrez.
O
impacto da internet sobre os veículos tradicionais ainda
está para ser medido. E, na minha opinião, o "estrago"
ainda vai ser maior. Primeiro, porque a própria cobertura
jornalística na internet ainda está tateando em
direção a um caminho próprio (os textos
continuam sendo reproduzidos na base do ctrl c + ctrl v);
depois, porque os próprios jornais tratam seus equivalentes
na net como "concorrentes" -uma visão tacanha,
acovardada.
Não
é uma relação saudável nem do ponto
de vista jornalístico, nem do ponto de vista empresarial.
Além
do mais, a multiplicação dos blogs e de publicações
segmentadas vão cada vez mais concentrar o interesse
dos novos leitores -o que significa que os jornais terão,
forçosamente, que mudar.
MJ: Qual foi o auge da área na história
do jornalismo?
IV:
Foram os momentos de ousadia. As revistas tiveram papel importantíssimo,
desde pelo menos o modernismo. Nos jornais, o Pasquim
é um marco, sem dúvida, não só pelo
momento histórico, mas pelo exercício permanente
da crítica (veladamente, nos momentos mais críticos,
que fosse) e a capacidade de reunir articulistas inquietos e
de excelente formação intelectual.
A
revista Realidade é outra publicação
fundamental, num sentido "cultural" muito mais amplo
(antropológico, até) do que este que nos acostumamos
a usar para nos referirmos ao caderno. Foi a grande escola de
reportagem deste país.
A
Ilustrada dos anos 80 era de encher os olhos (e teve
peso determinante no reposicionamento da Folha de S.Paulo
e na imagem de "jornal moderno que ela construiu), assim
como o Caderno 2 dos primórdios, abusadíssimo
(graficamente, inclusive) e cheio de vitalidade.
Sou
suspeito para dizer, mas me orgulho muito de ter participado
do projeto da revista Palavra, que o Ziraldo criou em
Belo Horizonte.
Tem
outra grandeza, certamente, mas pelos comentários que
eu ouço até hoje ela deixou uma marca muito forte
como tentativa de redirecionar o olhar sobre a cobertura cultural
-em termos de cardápio de assuntos, de amplitude da cobertura,
de tratamento dos temas.
MJ: E o assédio do business sobre as
editorias de cultura?
IV:
Nos grandes veículos isso não existe. Não
de maneira sistemática, como "política",
pelo menos. O que há, episodicamente, é alguém
que atua como contato publicitário carregar o cliente
pra conhecer a redação ou o assessor de imprensa
do cliente para deixar o material em mãos. Não
é o bastante para interferir na definição
editorial. O jornalismo regional é certamente bem mais
suscetível a isso.
MJ: Quais são os pontos positivos do atual
modelo de cobertura - cadernizado, com serviços - jornalística
da cultura?
IV:
É indiscutível que a organização
em cadernos facilita a vida do leitor.
É
ela também quem permite a "fluência industrial"
nos termos de hoje, neste processo insano que é colocar
um jornal novo por dia na banca e fazê-lo chegar a todo
o país. O problema não está nos cadernos,
mas no uso que se faz deles. Acho abominável, por exemplo,
a superpopulação de colunas.
Nos
quadros atuais, de cadernos esquálidos e textos minúsculos,
engessar os espaços é um crime na minha opinião.
Fosse pouco, isso gerou um auto-deslumbramento pernóstico
nas redações. O que tem de gente que "se
acha" colunista não é fácil. Convenhamos:
quantas pessoas têm informação relevante
e uma visão original dos fatos, dentro dos imperativos
de um jornal diário?!
MJ: Quais propostas apontaria para a renovação
da área?
IV:
Antes de tudo, a imprescindível retomada da reportagem.
O jornalismo cultural não pode estar apartado da "vida".
E a "vida" não está nas prateleiras
das livrarias ou lojas de disco. Os cadernos impressos precisam
romper com o papel de guias de consumo, deixar de ser garotos
de recado das assessorias de imprensa (sem as quais acho que
não viveriam hoje) e/ou das corporações
da indústria cultural.
Precisam
ampliar a visão do que seja cultura, para além
do entretenimento, e passar a falar para pessoas, não
para consumidores -ou para "pessoas privadas", a quem
se dirigem a maior parte das manchetes dos jornais.
Precisam
olhar para e acompanhar de dentro os processos de criação,
porque na maior parte dos casos a arte (as inquietações,
a reflexão) está lá e não no produto
final, que é tratado como se caísse do céu
pronto.
Precisam
fazer jornalismo basic one, cobrindo melhor a política
cultural (enormemente negligenciada) e o aspecto econômico
da cultura (o que é diferente de falar de best-sellers),
como uma atividade importante para o país, que emprega
mais que a indústria automobilística, por exemplo.
E
precisa parar com a idéia infantil de que é capaz
de construir mitos -dentro e fora das redações.
Basicamente, precisa virar sua lógica do avesso. Porque
da forma como se dá hoje, não serve para muita
coisa.
Se
os cadernos não mudarem sua postura (leia-se, sua mentalidade)
serão progressivamente substituídos pela internet
e, cada vez mais, o celular.
*Marcelo
Januário é jornalista.
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