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Entrevistas

"Minha profissão na carteira é jornalista"

Entrevista concedida por Álvaro de Moya a Marcelo Januário*

Álvaro de Moya possui múltiplas facetas. Seu universo, entretanto, está centrado na cultura popular, no coração da arte do entretenimento de massas representado pelo eixo quadrinhos, jornalismo, cinema e televisão. Nascido em 1930, em sua produtiva carreira também atuou como roteirista, produtor e diretor de cinema e TV, tendo participado da implantação da televisão brasileira nos anos 50. Em 1951 organizou a 1a Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, pioneira no mundo, e desde então é reconhecido como um dos maiores estudiosos da cultura pop.

Foto: Marcelo Januário

Como ilustrador, trabalhou para Walt Disney, Maurício de Sousa e Editora Abril, além de desenhar versões para os quadrinhos de clássicos da literatura e do terror. Partiu depois para a especialização, incluindo conferências em Buenos Aires, Nova Iorque, Lucca e Paris.

Professor universitário de jornalismo por quase 30 anos, membro do Conselho do International Museum of Cartoon Art (EUA), correspondente das revistas WittyWorld (EUA), Latin American Studies (EUA), ABIGRAF (Brasil) e colaborador de diversas enciclopédias internacionais, Moya também é autor dos livros Shazam! (1970), História da História em Quadrinhos (1993), O Mundo de Disney (1996), 50 Anos de TV no Brasil (2000), Anos 50/50 Anos (2001), Vapt-Vupt (2003) e Gloria in Excelsior (2004).

Nesta entrevista, Moya relembra passagens de sua experiência como repórter nos EUA e como chargista em jornais comunistas nos anos 50, além de opinar sobre a recente polêmica provocada pela publicação de desenhos de Maomé na imprensa européia.


MJ: Como foi sua experiência jornalística nos EUA?

AM: A televisão americana tinha começado em 1947. A brasileira começou em 1950, foi a quarta televisão no mundo. Era uma coisa nova e os americanos chamavam pessoas para estagiar na televisão, para uma boa vizinhança. Diversos profissionais da televisão brasileira foram chamados para estagiar na televisão americana.

Quando eu fui escolhido para ser um dos brasileiros que treinavam lá, como era jornalista - a minha profissão na carteira é jornalista - cheguei para a Folha e disse: 'e se eu entrevistasse um monte de gente e mandar para vocês?'. 'Ótimo!' A mesma coisa que acontecia com as histórias em quadrinhos, de pedir original dos caras...

Era uma desculpa para dizer 'sou repórter e vou entrevistar o Arthur Miller, o Stanley Kubrick'. Embora eu estivesse trabalhando na CBS, sempre tinha uma desculpa com o Department of State, que eu ia entrevistar alguém para sair no jornal no Brasil.

Achava que, como estava só entrevistando gente que estava ainda sob suspeita do Comitê de Atividades Antiamericanas, estava traindo os americanos e fazendo reportagens contra os EUA. Um amigo chegou do Brasil e disse 'o pessoal da embaixada e do consulado está achando ótimo, diz que você, de todos os que vieram, é o que está aproveitando mais, está mandando matéria, entrevistando gente'.

'E eu que pensei que eles estivessem chateados e estão até gostando!' Fiquei mais livre para continuar entrevistando.

MJ: Como conseguia as entrevistas em Hollywood?

AM: Eu dizia: 'Quero entrevistar o Stanley Kubrick'. Eles organizavam, dia tal, em tal lugar, Hollywood, no estúdio da Paramount, esperam você... Quando eu chegava com o táxi na porta da Paramount: 'sou o jornalista brasileiro que veio entrevistar mister Stanley Kubrick. 'Ah, sim, estúdio tal, sala tal'. Entrava e o Marlon Brando, que Kubrick estava dirigindo, estava na sala do lado. Esse tipo de coisa, de ser moleque, também usei nos Estados Unidos.

O pessoal da CBS dizia 'esse brasileiro vem aqui, toca a campainha e a Marilyn abre a porta para ele!' Um ciúme enorme! Eu queria conhecer as pessoas, entrevistei o Milton Caniff [cartunista norte-americano, 1907-1988], o Al Capp, o Paddy Chaevsky [escritor norte-americano], o Rod Serling [escritor, ator e produtor norte-americano, 1924-1975], fui ao estúdio da NBC ver uma peça dirigida pelo Sidney Lumet [diretor norte-americano].

Era ao vivo a televisão americana, como a brasileira.

Assisti o ensaio inteirinho, depois subi à suíte e fiquei atrás do Lumet, dirigindo o espetáculo como eu dirigia o teleteatro aqui no Brasil. Quando entrevistei o Rod Serling, ele disse: 'você vai para Hollywood, tem uma peça minha na CBS. Se você quiser dou um convite para você'.

Ele avisou a CBS que tinha um brasileiro que ia lá. Chegava no estúdio e estava lá o John Frankenheimer [diretor norte-americano, 1930-2002] dirigindo essa peça do Rod Serling.

MJ: Sentiu o mal-estar político sob o macarthismo?

AM: Vi o filme Boa Noite, Boa Sorte [Good Night And Good Luck, 2005, dirigido por George Clooney], que começa e termina com uma homenagem ao Ed Murrow [o jornalista norte-americano Edward R. Murrow, 1908-1965]. E, entre flashbacks, a briga dele com o McCarthy [o político norte-americano Joseph Raymond McCarthy, 1908-1957].

Nesse dia, que teve o evento do Ed Murrow, um banquete fechado, eu estava nos Estados Unidos, mais ligado ao pessoal de teleteatro que de jornalismo. Via o Ed Murrow na televisão, assistia ao programa dele.

Era o fim do macarthismo, mas os grandes escritores de Hollywood ainda não tinham voltado, ainda estavam na lista negra. Quando estava no Larry Edmunds Bookshop, a maior livraria de cinema do mundo, conversei com o Larry Edmunds e perguntei: 'esse James Poe é pseudônimo?'

Ele deu risada e falou 'não, é amigo meu, vai jantar na minha casa hoje com a esposa dele'. Pensei que era alguém que estava na lista negra e usou Henry James e Edgar Alan Poe como pseudônimo. E o Waldo Salt [escritor norte-americano, 1914-1987]? 'Está em Nova Iorque. Se você quiser entrevistá-lo, tenho o endereço dele. Está dirigindo teatro Off Broadway, porque está na lista negra'.

Quando foi feito o filme Midnight Cowboy [filme de 1969 de John Schlesinger], ele voltou a assinar filme, porque o Dalton Trumbo [escritor norte-americano, 1905-1976] conseguiu no Supremo que os escritores que estavam na lista negra pudessem assinar.

O argumento foi que alguns daqueles que estavam na lista negra tinham recebido o Oscar, com o nome próprio. Quando eles vendem um script com um pseudônimo, são obrigados a vender por um preço baixo.

Se eles usassem o nome verdadeiro, como ex-ganhadores do Oscar, teriam outro salário. Esse argumento do Dalton Trumbo e do seu advogado na Suprema Corte dos Estados Unidos proibiu a lista negra. Todos voltaram, começaram a escrever e a ganhar o Oscar.

Só o Dalton Trumbo ganhou dois Oscar com pseudônimo. Voltaram e corrigiram na ficha técnica dos filmes, dizendo que eram eles que escreviam com outros nomes.

Nesse período, o Waldo Salt estava dirigindo peça de teatro. Quando voltou para escrever Midnight Cowboy, ele precisava de um rapaz jovem e trouxe o namorado da filha dele, o Jon Voight, que era ator daquele grupinho em Nova Iorque.

Como eu era jornalista, entrei em contato com todo esse pessoal.

MJ: O que se lembra da atuação em jornais de esquerda?

AM: Na época, como estava com dificuldade de dinheiro, eu recebia para ficar diagramando o jornal Notícias de Hoje, modernizar. Lembro que fazia um suplemento aos domingos, que era impresso em duas cores.

Eles publicavam Marilyn Monroe [atriz norte-americana, 1926-1962], teatro de revista, coisa que era tabu. Eu fazia charge política no jornal O Tempo, à tarde eu ia para o Notícias de Hoje, assinava Ramiro e mudava o estilo.

Como eu imitava o Al Capp, o Alex Raymond, o Al Foster, sempre fazia as capas do Disney, sempre tive facilidade de imitar o estilo de todos, então mudava de estilo completamente. O pessoal do partido achava graça porque, como eu fazia charge, podia também ficar criticando.

'Os linotipos do jornal Notícias de Hoje são viciadas. Você escreve Stalin [o líder soviético Josef Stalin, 1879-1953], a linotipo sozinha já põe: Pai do Proletariado e Guia Genial dos Povos'; não precisa nem escrever, que a linotipo já escreve sozinha... E eles riam, porque achavam que eu tinha esse senso de humor.

Lá tinha mais liberdade de fazer as charges do n'O Tempo, que tinha de obedecer à linha do jornal.

MJ: A propósito, o que pensa sobre a polêmica dos cartuns publicados em jornais europeus?

AM: Saiu uma carta de um leitor na Folha dizendo o seguinte: fazer charge de homossexual não pode, porque é homofobia, charge de negro não pode, porque é racismo, fazer charge de judeu não pode, porque é anti-semitismo, mas fazer charge contra os muçulmanos, é liberdade de imprensa!

Estão argumentando que na Dinamarca existe liberdade de imprensa, então fizeram essas charges contra o islamismo.

Na verdade, estão usando a liberdade de imprensa para ofender outra religião. Sou agnóstico, sou ateu, não acredito em religião nenhuma, sei que não existe vida pós-morte, porque eu já morri e vi que é preto e não tem nada. Essas coisas sei que são assim. Mas, acho que tem de respeitar as outras religiões, principalmente de grupos fanáticos, por que o islamismo é fanatismo.

O Laerte pode fazer um gibi sobre Deus, que ninguém fala nada; mas se falar sobre uma religião de fanáticos, você tem de tomar cuidado. Eles foram desrespeitosos com a religião islâmica, assim como eles não são desrespeitosos com a religião católica. O Paul Marcinkus [bispo norte-americano, 1922-2006] morreu outro dia, por exemplo.

Era o homem do Banco do Vaticano e se meteu em negociata com o Banco Ambrosiano, um diretor do banco se 'suicidou', entre aspas, embaixo de uma ponte em Londres, o Vaticano e eles estavam envolvidos em prostituição no Paraguai, é uma sujeira enorme.

O Paul Marcinkus foi perseguido pela Operação Mãos Limpas da Itália, ficou confinado dentro do Vaticano, porque se pusesse o pé para fora seria preso, o Vaticano deu um jeito de mandá-lo para Kentucky, um lugar assim, ficou aposentado lá nos Estados Unidos, porque era americano e por isso que tinham botado ele no Banco do Vaticano.

Morre o Paul Marcinkus e sai uma notinha no jornal. Pode fazer uma charge contra ele, falando que foi um safado, um corrupto, que o Vaticano foi conivente em negociatas de banco etc. Como a religião católica apostólica romana é muito forte, é prepotente em relação às outras religiões.

Cada pessoa tem o direito de escolher a religião que quiser, ou não escolher religião, como é o meu caso e de outras pessoas que conheço. É a mesma coisa de falarem que sou o demônio, porque não acredito em Deus. Esse tipo de coisa não deve existir.

Tem de ter respeito pela opinião alheia. Isso é liberdade de imprensa.

[São Paulo, 23.02.2006


*Marcelo Januário é mestre em jornalismo pela ECA/USP e professor da UNIP/SP.

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