História
de vida de comunicadores populares
Relato de uma experiência em rádio
livre
Por
Suely Maciel*
O
presente texto visa apresentar a narrativa do comunicador
Eliezer Barreto da Rocha sobre sua experiência à
frente da Estação Apache, rádio
livre que esteve no ar entre o final da década
de 80 e o início dos anos 90, na região
de Poá, na Grande São Paulo.
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Reprodução

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A
narrativa faz parte de um estudo, ainda em desenvolvimento,
de história oral de vida de comunicadores de rádio,
subsidiário de um projeto maior sobre linguagem radiofônica
e interatividade nos processos de comunicação.
O
levantamento das experiências centra-se em comunicadores
populares [1] que estão ou estiveram envolvidos
na produção de programas e/ou no comando/direção
de emissoras comunitárias ou livres. [2] Sua
atuação deverá estar circunscrita à
região da Grande São Paulo e da Capital, nos últimos
dez anos, no mínimo.
O
estudo está sendo desenvolvido de acordo com os métodos
da História Oral (Meihy, 2005), mais especificamente
história oral de vida, porque o seu foco é a experiência
dos comunicadores e sua trajetória pessoal, articulada
com a da comunidade ou grupo em que se inserem e com a atividade
desempenhada na comunicação alternativa.
A
escolha dos comunicadores populares se deve à compreensão
de que eles desempenham o papel de mediadores privilegiados
entre a sociedade e o desenvolvimento de iniciativas diferenciadas
de produção midiática, no caso rádios
comunitárias e livres.
Além
disso, eles estão envolvidos numa dinâmica que
tem dupla dimensão: ao mesmo tempo em que atuam no processo
de produção das mensagens veiculadas pela rádio
de sua localidade, encontram-se também na posição
de destinatários, que são a razão de ser
das transmissões e para os quais, justamente, as mensagens
se dirigem. Ao ocuparem esse lugar, os comunicadores se constituem
simultaneamente como instância de produção
e de recepção e podem contribuir de forma significativa
para a compreensão desses dois posicionamentos.
A
partir do relato das experiências, entre eles o de Eliezer
Barreto, intenta-se também identificar e compreender
de forma coadjuvante, mas não secundária como
se efetivam as práticas de produção numa
rádio comunitária ou livre e, num plano mais amplo,
como se atualizam e relacionam o cotidiano da emissora e o das
comunidades e grupos, numa dinâmica que tem como marcas
principais a participação cidadã ativa
e a busca por caminhos de democratização dos meios.
Isso porque interessam, para os objetivos do projeto ora em
desenvolvimento, emissoras cuja gestão e programação
são de responsabilidade de pessoas ou organizações
que querem efetivar uma comunicação participativa,
têm vínculo orgânico com a comunidade, tratam
da realidade local e favorecem uma programação
interativa. [3]
1.
Alternativa democrática e mais participativa
O
rádio tem sido tradicionalmente considerado o veículo
mais 'democrático' entre os demais meios devido a sua
mobilidade e a sua penetração em grupos de todas
as classes sociais, faixas etárias e graus de instrução.
No
entanto, ainda que os recursos radiofônicos facilitem
um diálogo concreto entre as instâncias de produção
e recepção, a abertura à participação
do receptor na mídia tradicional tem sido irrisória,
o que configura também uma exploração limitada
das potencialidades do meio, problema para o qual Brecht (1981)
havia alertado há quase 80 anos:
O
rádio seria o mais fabuloso meio de comunicação
imaginável na vida pública, constituiria um
fantástico sistema de canalização, se
fosse capaz, não apenas de emitir, mas também
de receber. O ouvinte não deveria apenas ouvir, mas
também falar; não isolar-se, mas ficar em comunicação
com o rádio. A radiodifusão deveria afastar-se
das fontes oficiais de abastecimento e transformar os ouvintes
nos grandes abastecedores. (Brecht, 1981:51)
Essa
ausência da participação do ouvinte é
sistemática na produção dos veículos
de comunicação de massa vinculados a empresas
de comunicação, que seguem modelos de exclusão
monológicos. Iniciativas, porém, têm caminhado
numa outra direção, buscando não apenas
uma diferenciação de conteúdo, mas também
uma programação mais livre e próxima do
ouvinte, considerando substancialmente a participação
deste.
Esse
é o caso exemplar das rádios comunitárias
e livres, que se diferenciam das chamadas comerciais em termos
técnicos, de proposta e de dinâmica de produção.
Elas acabam representando aquilo que Machado et al. (1986)
apontam como uma possibilidade real de radiodifusão alternativa
em relação à institucionalizada:
...deve
haver espaço também para outras modalidades
de exploração, mais democráticas e que
permitam engajar a iniciativa da própria comunidade
atingida pelos meios. Nesse espaço alternativo podem
caber, por exemplo, emissoras ligadas a grupos de produção,
a grupos de intervenção social, às minorias
étnicas, culturais ou sexuais, aos partidos políticos,
às comunidades locais e também aos amantes do
rádio e da TV para aí realizarem experiências
renovadoras de linguagem" (Machado, 1986: 17-8).
Conforme
Guattari (1986), emissoras dessa estirpe representam novas maneiras
de luta e expressão, e seriam exemplares de formas de
intervenção de uma "inteligência alternativa"
em práticas sociais inovadoras. Além disso, as
iniciativas são ainda mais representativas quando se
trata do papel do receptor como sujeito efetivo do processo
de comunicação:
Fala-se
muito hoje e um tanto impropriamente de tecnologias interativas,
a propósito principalmente dos recursos da informática.
Essas discussões poderiam ganhar impulso se as pessoas
depositassem um pouco mais de atenção na experiência
das rádios livres, que se mostrou capaz de inventar,
nos seus momentos mais ousados, um verdadeiro sistema de feed
back entre a equipe emissora e a comunidade dos ouvintes.
Seja através da intervenção telefônica,
da abertura das portas da emissora à comunidade, da
transmissão direta das ruas ou da veiculação
de fitas produzidas pelos próprios ouvintes, as rádios
livres restabeleceram o circuito do diálogo nas mídias
de massa, abrindo a possibilidade de falarem e serem ouvidas
sobretudo àquelas camadas da população
tradicionalmente afastadas das antenas. Tecnicamente, elas
souberam tirar todas as conseqüências do casamento
explosivo do rádio com o telefone, transformando automaticamente
todos os seus ouvintes em correspondentes (...) (Machado,
1986: 31)
Iniciativas
como as das rádios livres e comunitárias, portanto,
podem se constituir em profícuas tentativas de efetivação
de uma democracia nos meios de comunicação, seja
por contestarem o oligopólio nos meios e os sistemas
de controle político e econômico da comunicação
de massa, seja por serem sensíveis à forte demanda
social das comunidades em que se inserem.
Nesse
contexto de busca de novos paradigmas e de uma nova proposta
de radiodifusão e de democratização dos
meios, implementada pelas rádios alternativas, tornam-se
importantes as figuras dos comunicadores da comunidade, que
passam a representar o duplo papel de instâncias de produção
e de recepção, como dito anteriormente.
Ter
como foco o personagem do comunicador, sua trajetória
pessoal e sua inserção nesse universo comunicacional/comunitário
é importante para observar uma sistemática social
de suma relevância na contemporaneidade.
As
narrativas dessas experiências permitem compreender tanto
a trajetória individual dos sujeitos, suas escolhas ao
longo da vida e os fatores desencadeadores destas, como também
os processos sociais mais amplos que os permeiam e, de certa
forma, determinam.
O
papel do comunicador popular como mediador entre a produção
midiática e a sociedade e a relação que
se estabelece entre sua vida pessoal e a da comunidade são,
portanto, o foco do estudo parcialmente apresentado aqui justamente
porque deixam entrever dinâmicas que abarcam desde a problemática
estritamente ligada aos processos de comunicação
até uma discussão ampliada sobre cidadania, participação
individual e popular e mudança nas relações
de força e poder entre a ordem institucionalizada e os
grupos sociais, tendo como fator de mediação simbólica
os veículos de comunicação.
Apresenta-se
a seguir, [4] então, a narrativa do comunicador
popular Eliezer Barreto da Rocha, de 51 anos. Ele é morador
de Guarulhos, na Grande São Paulo, onde trabalha atualmente
no Serviço Autônomo de Água e Esgoto, empresa
municipal de abastecimento e saneamento. No final da década
de 80, Eliezer passou a atuar à frente da Estação
Apache, emissora livre que transmitia para a cidade de Poá,
também na região metropolitana paulista. Essa
história [5] é contada pelo próprio
comunicador.
"Fazer
rádio livre foi muito prazeroso, foi um barato... mas
também me levou a ser muito cético em relação
a tudo nesse país"
Eu
me chamo Eliezer Barreto da Rocha e tenho 51 anos. Sou... oficialmente...
leitor de hidrômetro do SAAE, em Guarulhos, pois foi para
isso que passei em concurso público, mas trabalho mesmo
no atendimento ao público... Eu comecei na militância
política por volta de 1975, me filiando ao antigo MDB.
Desde essa época, eu já tinha assim... algumas
idéias... algumas propostas para que o partido entrasse
em contato com a juventude, com a comunidade de uma maneira
geral.
Pensava
em promover palestras, trazer músicos..., mas essa idéia
não se viabilizou dentro do MDB. Eu e alguns amigos acabamos
saindo do partido porque notamos que o interesse maior não
era esse, naquela cidade em que a gente morava, Poá,
na Grande São Paulo, região Leste... (eu nasci
em São Paulo, mas praticamente fui criado em Poá.
Eu sou cidadão poaense, praticamente). Então,
viemos a fundar o Partido dos Trabalhadores na cidade e enfrentamos
todas aquelas dificuldades que os militantes do início
do PT enfrentaram, com repressão e tal. (...)
Isso
foi em 1979, 1980, na época da formação
do PT. (...) Inicialmente, o PT tinha uma proposta de educação
política dos trabalhadores, para despertar a consciência
política, mas, para se viabilizar eleitoralmente, para
cumprir a legislação eleitoral, para conseguir
voto, acabava filiando gato e sapato... Mas ser contra isso
em 1982-83 era ser "reacionário", "louco"!!!...
Bom,
aí essa desilusão com o partido me levou a me
afastar do PT também, e a me aproximar das idéias
anarquistas, da autogestão, do "faça você
mesmo". Esta posição era uma influência
também do punk rock, da música. Além disso,
havia a vontade ainda de passar uma outra informação,
não aquela informação que era veiculada
na mídia oficial. Vem daí a idéia de rádio
livre, de experimentação de novas linguagens e
de um outro conteúdo, tanto em termos do discurso quanto
de música. Então, a gente sempre procurou, depois
já do fazer da rádio, veicular aquilo que as rádios
comerciais não veiculam. Mesmo que até tocássemos
uma música que estava nas lojas, nos vinis (na época
nem havia o CD, era só vinil e fita cassete mesmo), não
era sucesso da banda, do grupo, do cantor, da cantora da moda.
Esse
outro caminho [o da comunicação alternativa] apareceu
depois que deixei a militância... Ficou um buraco, um
vazio... e eu tinha uma vontade, um desejo de comunicar o que
pensava, tocar o que gostava de ouvir, enfim, disseminar um
pouco do conhecimento que tinha e que não estava na mídia,
não é? A questão das drogas e da ecologia,
por exemplo, a gente levantou nos fanzines... A discussão
sobre as questões ecológicas era muito incipiente
ainda na época... Na Estação Apache foi
essa a rádio de que participei desde o início
, nós fizemos um acompanhamento muito grande do movimento
ecológico na região de Poá, Suzano, Mogi
das Cruzes.
A
Estação Apache nasceu em setembro de 1989, no
Dia do Rádio, e, num primeiro momento, discutia muito
as questões ideológicas, as ecológicas...
Não que na rádio houvesse algum 'militante', mas
a gente divulgava esses assuntos porque queria, achava importante.
O
nome
Estação Apache tem a ver com grupos de 'marginais',
com pessoas marginalizadas que invadiram prédios em Paris.
Naquela época (eu não sei precisar a época...),
"apache" era o nome dado a esses grupos que viviam
à margem da sociedade. Também há a referência
aos índios apaches americanos, que têm a resistência
como marca. Vem desse viés, então, o nome Estação
Apache, além da inspiração anarquista...
A gente fez campanha por voto nulo na cidade em todas as eleições,
desde as municipais e estaduais até as federais, em nível
nacional.
Nós
centramos nosso trabalho na questão da autogestão
mesmo. A rádio chegou a ter 15 pessoas, compramos equipamentos
e acabamos meio que impondo... não impondo, mas sugerindo
a leitura de determinados textos a todas as pessoas que entravam,
que iriam fazer parte da rádio. Claro que essas pessoas
já vinham sabendo do que se tratava, já tinham
tido alguma espécie de contato com a área.
Ao
ouvir a rádio, elas se sentiam afinadas com alguma coisa
que ali acontecia, desde as idéias, os textos, os poemas,
as histórias de fanzines que a gente divulgava, até
as preferências musicais. Também a discussão
ideológica, do anarquismo, era fator de atração.
Nós atraímos, assim, um grupo de anarcopunks que
estava na cidade. Eles vieram se juntar a nós na rádio
e divulgavam as questões do movimento de que participavam.
Quando
não era esse viés ideológico que fazia
com que as pessoas criassem vínculos com a rádio,
era o gosto musical 'incomum', digamos assim. Ele não
era pautado pelo que a mídia impunha. As pessoas ajudavam
a gente a se diferenciar justamente nesses dois aspectos: o
discurso ideológico e o conteúdo musical.
(...)
O
conteúdo crítico da rádio era muito grande,
ela era panfletária mesmo. A gente atacava a igreja,
o Estado, a justiça, tudo! Numa cidade pequenina como
Poá, você lê um poema e pode ofender A e
B, entendeu? Quer dizer... você não está
ofendendo pessoas, mas todo um meio social que favorece o advento
de pessoas com um pensamento 'atrasado', digamos assim... Então,
nós vivíamos com receio de nos expor.
Inicialmente,
a rádio era clandestina mesmo, ninguém sabia quem
a colocava no ar. (...) Paralelamente às atividades na
Apache, nós editávamos um fanzine chamado Sinal
de fumaça, que tinha uma caixa postal. Como era um veículo
impresso de tiragem pequena, no máximo 300 exemplares
por número (se chegou a isso... e nós editamos
seis números), a circulação era mais restrita.
O Sinal de fumaça era mais conhecido fora de Poá
do que na cidade, mas algumas pessoas, ouvindo a rádio,
escreviam para lá utilizando a caixa postal do fanzine.
Foi
a partir desse contato via carta que nós ficamos conhecendo
outras pessoas que acabaram vindo participar do trabalho. Fizemos
uma primeira reunião, expusemos o projeto da rádio
e aí eu falei: "Quero mais gente trabalhando comigo
porque eu quero trabalhar com pessoas! Não quero ficar
aqui, sozinho, todos os dias em que a rádio for ao ar,
colocar só o que eu gosto de colocar. Não!! É
preciso diversificar, ver que tem mais gente, mais cabeças
pensantes na cidade e que não somos só nós!"
Queríamos pessoas que estivessem afinadas com o discurso,
com o conteúdo da rádio, e que tivessem uma postura
diferente na sociedade local, entendeu?
E
isso aconteceu. Nós acabamos tendo contato com 15 pessoas,
aproximadamente, fizemos uma primeira reunião e, a partir
daí, uma oficina de rádio, pois, como eu, essas
pessoas também nunca tinham estado atrás de um
microfone, não entendiam direito como é que funcionava
uma rádio...
Além
dessas orientações, falávamos sobre a rádio,
sobre a questão de rádios livres. Explicávamos
que estávamos buscando a democratização
nos meios de comunicação, o porquê disso,
o que nos levava a nos opor a esse discurso padronizado da mídia...
Também discutíamos qual era o discurso da rádio,
de viés anarquista, de não se ligar a nenhum partido
político, porque estava provado que todos eles, até
então existentes, acabavam tendo um discurso diferente,
mas uma prática muito igual, e isso não nos contentava
por isso... por isso... por isso...
Eu
cheguei à rádio levado pelo José Carlos.
Ele era um cara que eu conhecia desde o colegial. A gente era
muito amigo, ouvia as mesmas músicas... Ele estudou não
sei se foi Ciências Sociais ou foi Sociologia Política
em São Paulo, então nós líamos muita
coisa juntos... (eu só vim fazer um curso superior agora,
recentemente, pois nunca havia concluído o terceiro grau.
Tinha entrado na faculdade umas duas vezes, mas não tinha
concluído...).
Bom,
como ele fazia Sociologia, a gente acabava lendo algumas coisas
que ele trazia, trocava figurinhas mil em termos de literatura,
de mídia... E ele também foi militante do PT e,
posteriormente, depois que deixou o partido, formou a rádio
Capitão Gancho. Ele e um outro amigo nosso ficaram juntos
nessa rádio um bom tempo, acho que de 1983-84 até
1989, quando as atividades da emissora foram encerradas e nós
dois montamos a Estação Apache
(...)
E
a escolha do nome influenciou até o debate que tivemos
sobre a linguagem que íamos empregar. Foi idéia
do José Carlos que utilizássemos uma 'linguagem
indígena' e, a partir daí, começamos a
ler coisas sobre o assunto. Lemos basicamente dois livros: Na
terra, no coração e na curva do rio, que narra
o processo de genocídio dos povos latino-americanos,
da América do Norte, pela colonização inglesa,
e um livro sobre o mesmo tema, mas abordando a questão
dos índios no Brasil, o Nossos índios, nossos
matos, de um jornalista chamado Edilson Martim, se eu não
me engano...
Então,
em cima desses dois livros, fomos construindo a linguagem da
rádio, meio, como diria... de faroeste, sabe? O José
Carlos chamava o prefeito da cidade, os pró-homens, os
vereadores, de "chefes estrelados dos brancos", o
"chefe estrelado não sei o quê"... A
gente adaptava essa linguagem para um discurso político,
pois a rádio tinha um discurso político contrário
à opressão branca, aos vermes brancos que carcomem
as montanhas, que invadem as montanhas e constroem um monte
de casinhas, cortam todas as árvores, destroem a natureza,
poluem os rios...
(...)
Nesse
trabalho com rádio livre, houve aspectos muito interessantes...
Um deles era o fato de a rádio ter um bom público,
ser bem ouvida, ser alvo de comentários, tanto favoráveis
como contrários. A pregação do voto nulo,
por exemplo, ficou como uma marca da Estação Apache.
Era característico falar que os partidos políticos
não iriam resolver nossa situação se nós
mesmos não fizéssemos acontecer o que queríamos...
Falávamos
de desobediência civil e de coisas um tanto quanto perigosas
para a época, certo? Mas nós ouvíamos tanto
os elogios quanto as críticas.
Uma
vez, um rapaz chegou pra mim e falou; "Pôxa, cara,
vocês falam umas coisas muito loucas naquela rádio,
muito interessantes, só que a minha mina não entende
nada!! Vocês deviam transmitir para a Vila Madalena!...".
Ele quis dizer o seguinte: muitas pessoas logicamente não
entendiam o nosso discurso porque ele seria muito avançado
para a localidade, mas que num outro lugar, mais 'intelectualizado',
de pessoas mais informadas, elas com certeza ouviriam e entenderiam
melhor tudo aquilo que era falado no dia-a-dia da programação.
Interessante...
(...)
Eu
sempre tive um 'posicionamento de esquerda', vamos dizer assim,
sem saber ao certo o que era essa 'esquerda'... A gente lia
muito sobre temas como anarquismo, contracultura etc. Acho que
foi isso que me levou à filiação no MDB.
(...)
Não
me lembro como passei a ler as coisas que lia, a ter as idéias
que tinha, a trilhar esse outro caminho. Eu só sei que
não fazia tanto parte desse mundo que meus pais passaram
inicialmente para mim. Acho que essa outra visão foi
acontecendo por causa das leituras, que era algo pouco sistemático,
já que eu lia o que caía na minha mão.
Ou um amigo chegava e falava: "Leia esse livro aí,
é legal".
Os
livros circulavam entre as pessoas. Lembro que, na época
de ginásio e colegial, formávamos um grupo de
colegas de classe e todo mês a gente fazia uma vaquinha,
juntava uma grana e alguém comprava um livro e ficava
sendo dono dele, mas todo mundo o lia. No mês seguinte,
outro comprava, e assim por diante. E isso ocorria com livro,
com disco... Nós estávamos sempre buscando coisas
novas e quando a leitura era interessante, sempre havia referência
a outra obra...
(...)
Quando
eu fui fazer a rádio com o José Carlos, ele tinha
uma emissora com o assessor parlamentar Dárcio, de Poá
(hoje grande amigo também, companheiro de muitas, muuuitas
peripécias... muitas aventuras...!!!). Os dois faziam
a Capitão Gancho e eu, como era amigo deles, às
vezes freqüentava o estúdio, que ora estava na casa
de um, ora na do outro.
Eu
ia lá na hora da transmissão, cheguei até
a empunhar timidamente o microfone. Eu tremia! Não saía
palavra da minha boca, mas... eu estava apaixonado por aquela
questão, por aquela história de contra-informação!!!
Nós já estávamos desiludidos com o PT mesmo,
já tínhamos caído fora, já éramos
tachados de loucos na cidade, aquelas histórias... Eu
achava legal o trabalho na Capitão Gancho, mas a rádio
era deles e eu ficava na minha, muito tímido, admirando,
né?! Mas, então, eles resolveram, lá por
questões deles, acabar com a rádio Capitão
Gancho.
Tinha
mais gente trabalhando nela, mas eles divergiram, sei lá,
e as atividades da rádio foram encerradas. O José
Carlos quis montar uma outra emissora, com um novo perfil, uma
nova linguagem. Ele falou da Apache e foi aí que me convidou.
Eu topei: "Vamos fazer, então".
Desde
o início eu participei de todo o processo e ficamos juntos
até 1989?1990? Acho que em meados de 1990 eu já
estava sozinho com a rádio e chamando alguém para
ficar comigo. As outras pessoas vieram no final de 1991, acreditando
que esse era o caminho, que a gente podia atingir outras pessoas.
O
lance sempre foi esse: atingir as pessoas, trazer as pessoas
para participarem, se mobilizarem e estarem agitando a cidade,
porque aquilo era um marasmo completo, uma cidade conservadora...!
A gente sempre teve isso em vista, o PRAZER!! O prazer mesmo
de estar fazendo a rádio, porque fazer rádio é
um negócio meio terapêutico também, entende?
Você deitar falação, ler o que você
quer... Em determinados programas era tudo organizadinho, tinha,
vamos dizer assim, uma pauta, mas em outros não tinha
nada! "O que a gente vai rolar hoje?". "Então,
tá aqui, vamos colocar" e pá! colocava o
programa no ar e ia falando, compondo fanzine, lendo poesia
imaginária... A programação acontecia espontaneamente,
não havia um preparo, embora às vezes a gente
escrevesse um texto sim, combinasse de fazer de um jeito, "fala
isso"... "toca música aqui" ... etc. Também
fizemos alguns programas de entrevistas.
Antes
de eu ter essa experiência, eu era ouvinte de rádio,
desde criança. O rádio era "o" veículo
de comunicação lá em casa. Meu pai trazia
jornal de vez em quando, mas era o rádio o veículo
principal. Então eu ouvia desde pequenininho, ouvia música
sertaneja, ouvia Nelson Gonçalves, Velha Guarda...(...)
Minha mãe tinha discos 78 rotações aos
montes, discos que se perderam, quebraram... Mesmo depois de
criança, eu sempre continuei ouvindo rádio, ouvindo
música, dormia com o rádio ligado e até
hoje eu gosto disso.
(...)
Ao
passar para o 'lado de lá', de fora para dentro da rádio,
veio aquela constatação de que, numa sociedade
de classes, algumas pessoas vão ter acesso a determinadas
informações e outras não. E, queira ou
não, eu me incluo entre os que têm algum nível
de informação, fui um privilegiado nesse aspecto
porque era só olhar ao meu redor na cidade e ver quantas
pessoas tinham o conhecimento que eu tinha em relação
às coisas que eu estava fazendo, em relação
às experiências que eu fui vivendo no decorrer
da minha vida... Essas experiências práticas trouxeram
conhecimento e me levaram a tomar contato com pessoas que passaram
para mim outros saberes, ambientes que me proporcionaram esta
e aquela sacação...
O
que se vê, porém, é que as pessoas se aproveitam
do conhecimento diferenciado que têm para se impor, para
viverem bem, para ganharem dinheiro, para se venderem em todos
os níveis. Eu passei a questionar isso. "Até
que ponto o que eu estou fazendo está sendo passado com
clareza?" Isso era até decorrente de questionamentos
como o do rapaz cuja namorada, dizia, não entendia nada
o que eu falava na rádio.
Assim
como a menina dele, muitas outras pessoas não entendiam
nada e, mesmo hoje em dia, quantas são capazes realmente
de entender, com um mínimo de clareza e de profundidade,
as notícias veiculadas nas rádios? Quer dizer,
tem-se muita informação, mas... as pessoas não
reagem! O país está sendo assaltado já
faz tempo, e não é de agora, não é
na administração do PT não, é desde
1500!!! E a população está aí, apática.
Será que ela não tem informação
sobre o que acontece? O que falta para que se dê um salto
de qualidade realmente, de exigência, de reivindicação,
de mobilização??
Eu
fiquei meio descrente em relação a essas coisas
porque percebi que, normalmente, as pessoas acabam apenas tirando
proveitos pessoais desse conhecimento que adquirem no decorrer
da vida, em geral por fazerem parte de uma elite econômica
e, em decorrência disso, de uma elite intelectual. E tudo
fica por aí mesmo, todo mundo só fala para os
seus pares!!...
(...)
A
Estação Apache praticamente encerrou suas atividades
em julho de 1992, depois de dois anos de devoção,
mais ou menos. Ela foi de 1989 a julho de 1992. Depois houve
até umas transmissões esporádicas, mas
não voltamos a transmitir por dificuldade em encontrar
um lugar seguro para isso. Nesse período se formou a
primeira Associação das Rádios Livres do
Estado de São Paulo, da qual o primeiro presidente foi
o Leo Tomás, da rádio Reversão, que funcionava
na Vila Ré. A rádio era mais estruturada.
Eles
faziam transmissão de apresentações musicais
ao vivo e funcionavam todo dia. Já nós transmitíamos
três, quatro, quando muito cinco vezes por semana, durante
algumas horas da noite. Nossa experiência era mais mambembe
e a gente vivia mudando de lugar, fugindo.
Em
1991, houve um problema com o local de transmissão, que
não foi fiscalizado pelo Dentel, mas pela Polícia
Civil. Eram paus-mandados dos pró-homens da cidade, mas
a gente já estava sabendo da história, da 'fiscalização',
e paramos as transmissões. A gente vivia mudando os locais
de transmissão, embora tivesse mantido um lugar fixo
durante um certo tempo. Eram no mínimo três lugares,
ficávamos uns meses em um, depois íamos para o
outro, depois voltávamos para o primeiro... Hoje é
diferente e as rádios livres têm um lugar fixo
de transmissão...
(...)
Na
década de 80, ocorreu um boom de fanzines do Brasil e
nós recebíamos publicações do país
inteiro, além de fitas cassete com músicas...
O Sinal de fumaça teve um grande papel nessa história
porque, como veículo impresso, ele chegava aonde a rádio
não chegava. Até em Belém do Pará
ele foi dar...Com esse negócio de fanzine vão-se
estabelecendo relações que você não
controla!! Você faz um fanzine, manda pra outro fanzineiro,
que faz um comentário sobre a sua publicação
e informa o endereço dela no fanzine dele... E isso roda,
vai virando uma bola de neve! Era assim que muitas pessoas tomavam
conhecimento da Estação Apache... Fora isso, tinha
também a imprensa, pra onde a gente mandava uns números...
O
Sinal de Fumaça foi um grande divulgador de movimentos
de rádios livres no Brasil. Era um órgão
impresso marginal de divulgação de uma coisa também
marginal na época, que era a questão das rádios
livres. O Sinal era um fanzine que trazia histórias em
quadrinhos de autores desconhecidos, textos anarquistas e libertários,
poesias. Havia também informações sobre
rádios livres, de aspectos técnicos como modelos
de transmissor até dicas sobre como montar notícias
nas rádios. Uma vez, por exemplo, a polícia fez
uma 'visita' à rádio Reversão e prendeu
o Leo Tomás. Nós divulgamos isso no Sinal.
Acredito
que muitas pessoas tenham ficado sabendo alguma informação,
pelo menos sobre as rádios livres, através do
fanzine, que era feito na região Leste por duas pessoas,
eu e o José Carlos, com a colaboração do
Brasil inteiro!! Acho que a tiragem máxima foi de uns
trezentos exemplares por número. Eram duas folhas de
papel sulfite A4 dobradas no meio. Depois ele até evoluiu,
pois chegamos a fazer a editoração eletronicamente!
Mas ele era xerocopiado, a partir de uma matriz.
(...)
A
uma certa altura da história da Estação
Apache, não dependia mais de mim para ela ficar no ar,
pois ela já era de todos, até o transmissor era
coletivo. Cada um dos 15 participantes havia contribuído
para a compra (um bancário que fazia a programação
com a gente abriu uma conta no banco e assim eram geridas as
finanças da rádio). Portanto, se eu saísse
e os outros quisessem tocar o barco, eles tocariam. Mas o projeto
terminou mesmo por dificuldades materiais, por problemas de
'logística'. Não ter um local para a transmissão
era outro empecilho, pois era perigoso ficar se expondo e correndo
o risco de perder tudo, e isso a gente não queria! Além
do que, sem lugar para a transmissão não há
rádio, não é? Havia também muita
repressão, a Reversão tinha sido pega mais ou
menos nessa mesma época, se não me engano...
Somado
a tudo existia um certo cansaço do modelo, do jeitão
de fazer a rádio e a dificuldade de avançar mesmo,
porque a gente queria fazer coisas que dependiam de grana. Queríamos
investir na aparelhagem da rádio, comprar um transmissor
mais potente... Mas como era que a gente ia levantar a grana?
Pôxa, a idéia era que a rádio se autogerisse,
não tivesse vender espaços ou publicidade como
muitas rádios acabaram fazendo. Nós éramos
contra isso, embora até tenhamos questionado essa posição
num determinado momento.
(...)
Devido
às dificuldades e aos questionamentos que eu já
vinha fazendo, acabei ficando meio sem pique, não consegui
entender como íamos tocar a coisa e vencer esses entraves.
Não consegui esclarecer a dúvida sobre como chegar
a mais pessoas... A gente até avançou um pouco
na discussão com a idéia de fazer uma rádio
com outro perfil, mais aberta realmente à comunidade.
Só que, então, pintava dúvida de novo:
aberta quanto? Ficamos discutindo essas alternativas, como a
da possibilidade de trazer um grupo lá de música
sertaneja pra tocar. "Mas que tipo de música sertaneja?
Essa que rola aí?" "Não, essa que rola
não!!".
Ou
seja, sempre tendo claro que serve bem esse tipo de música...
mas "Onde encontrar as pessoas que vão fazer isso?".
Nós também chegamos a fazer reuniões pra
discutir possibilidade de fazermos reportagens, cobrirmos os
acontecimentos da cidade, mas então já seria uma
rádio com uma outra cara, um outro perfil, não
tão mais de combate.... Porque aquele momento foi importante,
era meio quixotesca a coisa... a gente desafiava realmente os
moinhos de vento da cidade!... O Zé Carlos até
falava muito isso e é verdade: dependendo do que a gente
falava no microfone, era preciso tomar cuidado para sair de
casa e descer a rua para pegar o trem...
Depois
que fechamos a Estação Apache, as pessoas partiram
para outras atividades. O transmissor ficou com o pessoal, parado,
não foi mais utilizado. Um grupo de pessoas continuou
na ativa, fazendo música, fazendo fanzine. Recentemente
encontrei um deles, com quem cheguei a conversar. "A gente
tá pensando em montar uma rádio, claro, mas uma
rádio livre", foi o que ele contou. Eu, porém,
não mais nenhum envolvimento, nem vontade de trabalhar
com isso.
Essas
coisas, todo esse 'altruísmo' encheram a paciência.
Pode até ser uma fraqueza minha (se isso for encarado
só por esse lado...), mas a gente começa a achar
que não tem saída, que "tá tudo dominado",
como dizem... Então... não tem muito o que fazer
não. Acho que qualquer atividade que seja feita acaba
sendo desviada para interesses que acabam sendo os "interesses
da oficialidade banal de aldeia!", como diríamos
os apaches!!...
Pessoalmente,
ter realizado essa atividade foi uma baita experiência,
que trouxe momentos agradáveis, conhecimento, contato
com pessoas interessantes... Mas também me levou a ser
muito cético em relação a tudo nesse país!...
A experiência também serviu para expandir muito
meu conhecimento sobre a comunicação, sobre o
poder da comunicação... e também questionar
até que ponto as informações ou as contra-informações
resultam em posturas claras, objetivas, e em coisas concretas
para melhorar o entorno... o social... o geral... o coletivo.
Me
levou a isso... a esse questionamento. Pessoalmente, foi uma
experiência muita rica, muito gostosa, foi um negócio
meio lúdico!... Acho que não tenho muito mais
o que falar além disso... foi um grande BARATO!!! ter
feito tudo isso na época e nas condições
em que fizemos... (...)
Foi
possível também ver que mistifica-se muito o trabalho
alternativo... de rádio livre. Grosso modo, porém,
a coisa era muito mais simples de ser feita do que alguns acadêmicos
na época tentavam passar pras pessoas, né?...
com seus discursos bem elaborados. Diziam que "tem de ser
feito assim", "não tem que ser feito assado".
Ahh! tem que ser feito assim nada, tem que ser feito do jeito
que DER!! É claro que sempre se vai procurar melhorar,
tanto é que a gente passou a questionar toda essa questão
de ampliação da rádio, de melhoria e tal.
Mas...
um certo discurso 'oficioso' que se faz em cima das tentativas
alternativas pra qualquer coisa... acaba tolhendo às
vezes a vontade e até intimidando as pessoas... "ahh,
não, isso não é pra mim", né?...
Se eu não tivesse visto acontecer, na cidade onde eu
morei, a experiência de rádios bem simples... assim...
trazendo muita coisa rica, muita informação, muita
coisa nova, eu jamais teria feito porque se eu fosse ler, depois,
eu ia achar que era uma coisa muito difícil de ser feita,
que estava muito além das minhas posses e tudo o mais.
E, no entanto, era uma coisa muito fácil de ser feita.
A gente nem tinha, assim, muita despesa... Claro que, para nós,
acabava pesando no orçamento, porque você tirava
de um lugar pra pôr no outro pra sustentar a rádio...
mas...
Então,
viver essa experiência prática foi muito legal...
foi prazeroso, foi lúdico! Foi um grande barato!... Se
tem um saldo positivo da minha experiência é o
de que foi um grande barato, porque, do resto, já estou
questionando tudo!!... entendeu? Se mobiliza, se não
mobiliza, até que ponto mobiliza, entendeu? O que que
é mobilização?... Mas aí já
são outros quinhentos... aí já é
uma outra discussão...
Considerações
finais
Não
é pretensão desse texto apresentar uma análise
definitiva da narrativa de Eliezer Barreto da Rocha ou do papel
do comunicador popular, haja vista que isso só será
possível a partir do diálogo com outras narrativas
ainda em fase de sistematização que irão
compor o conjunto da pesquisa.
Apesar
disso e de ser apenas uma das entrevistas, ela já permite
identificar as motivações, as preocupações
e os anseios que levaram Rocha a participar de um projeto de
rádio livre. Mais que apenas compor o relato de uma experiência,
as palavras revelam inquietações e perspectivas
que certamente assemelham-se àquelas de milhares de comunicadores
que, com suas iniciativas, questionam o sistema massivo de comunicação
e representam, de forma concreta, alternativas a ele. Além
disso, a narrativa lança questionamentos que levam a
uma reflexão sobre os sentidos dessas mesmas iniciativas
e sobre projetos efetivos de comunicação.
A
fala de Eliezer mostra uma posição de questionamento
social e político alinhada com um discurso de contestação
marcante nas décadas de 70 e 80. Esse dizer, apesar de
muitas vezes tido como anacrônico por determinadas correntes
hegemônicas de pensamento na atualidade, refere-se a problemas
comunicacionais concretos que, presentes mesmo antes do período
enfocado pelo relato, não foram equacionados até
hoje: representatividade, interatividade, determinação
dos conteúdos, linguagem diferenciada, participação
popular, democratização. Ou seja, os anseios do
passado ainda são os mesmos no presente.
É
possível perceber também que a atuação
do comunicador na rádio livre estava completamente alinhada
com um anseio já manifestado desde a adolescência,
que era o de se posicionar no contrafluxo de um determinado
tipo de discurso e de práticas estabelecidas. A busca
por 'outros olhares' sobre a realidade, as leituras que ele
chama de "contraculturais", a simpatia por conceitos
como o de autogestão já delineavam a possibilidade
de formas de atuação no futuro.
Essa
formação se refletiu nas atividades paralelas
desempenhadas na idade adulta (de meados dos anos 70 em diante),
todas elas alternativas à produção midiática
geral, como fanzines e rádios livres, sem falar no engajamento
em partidos primeiro o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), depois o Partido dos Trabalhadores (PT) que aglutinavam
forças populares de oposição ao poder estatal
e político instituído na época.
Quanto
à maneira de produção da programação
na rádio Estação Apache, destacam-se a
informalidade e o uso do microfone como canal para a expressão
de anseios, preferências e pontos de vista individuais
sobre a realidade. Mais que meio coletivo de manifestação,
no caso da experiência de Eliezer revela-se uma produção
centrada na comunicação de preocupações
e gostos particulares, de um grupo extremamente restrito e sob
forte sentido agregador de idéias e posturas. Isso desvela
uma faceta quase oposta à da produção midiática
massiva, que é produzida por muitos e se dirige a um
universo muito maior ainda, a "massa" de que fala
Warren Breed (1971).
É
instigante notar que os questionamentos do comunicador sobre
seu trabalho se dão justamente nesse sentido, numa compreensão
ainda muito marcada pela idéia de que os meios de comunicação,
mesmo os alternativos, têm sim que falar para muitos e
representar os interesses de muitos. Na sua avaliação,
ter o "privilégio" do acesso a um veículo
de comunicação e não servir como porta-voz
dos grupos alijados dessa 'sorte grande' imprimiria à
iniciativa um caráter pouco legítimo, uma espécie
de apropriação indevida, um desperdício
de uma oportunidade tão rara...
A
narrativa de Eliezer, então, põe em cena a discussão
sobre a representatividade de ações diferenciadas
na comunicação social. Ao fazer isso, suscita
uma série de questionamentos: as iniciativas de comunicação
devem, sempre, envolver o maior número de sujeitos possível,
ou seja, devem se configurar de e para grupos
ampliados, ainda que sob propósitos restritos?
É
possível fazer uso dos meios de comunicação
para falar para poucos ou até mesmo para si? As transmissões
radiofônicas em iniciativas comunitárias e/ou livres
podem ser reflexo de gostos pessoais, e as mensagens, devido
a suas formas de composição, podem se dirigir
a um conjunto bastante fechado de pessoas, únicas para
as quais seriam compreensíveis?
Ainda
não é possível apresentar respostas para
essas perguntas. As demais entrevistas talvez contribuam para
isso ou, quem sabe, venham adicionar outros questionamentos
aos já postos. Ainda assim, eles colocam, desde já,
um problema para aqueles que pensam e discutem a comunicação,
em especial em mídias e iniciativas alternativas.
Notas
[1]
Por comunicador popular estou considerando os sujeitos que atuam
em mídias radiofônicas diferenciadas, ou seja,
em iniciativas independentes do sistema de radiodifusão
oficializado, lugar esse ocupado notadamente pelas rádios
comunitárias e livres. Refiro-me, ainda, a pessoas que
pertencem a uma determinada comunidade, ampla ou restrita, e
que não têm vínculos nem experiência
de trabalho com radiodifusão comercial. Ressalte-se que
o termo 'popular' não é aqui sinônimo de
"simpático" e de "boa penetração"
na comunidade, nem de profissionais que atuam na comunicação
massiva em programas de grande apelo público, em emissoras
comerciais.
[2]
Não há um consenso na diferenciação
entre emissoras livres e comunitárias, embora ambas denominações
sejam comumente utilizadas para identificar projetos de rádio
independentes e singulares. De comum entre as duas designações
há a baixa potência de transmissão (em geral
25W) e audiência restrita e, na maioria dos casos, transmissão
sem concessão, permissão ou autorização
de canal por parte do governo (cf. PERUZZO, 1998). Atualmente,
com o advento da legislação sobre rádios
comunitárias, tem sido corrente no meio chamar de comunitárias
as que já obtiveram autorização de funcionamento
do governo e de livres, as que continuam sem essa outorga. No
presente projeto, a distinção se deve ao tipo
de proposta que norteia as atividades das emissoras e não
o critério da 'legalidade/ilegalidade'. Opto por utilizar
os termos rádios comunitárias e livres para designar
iniciativas que se desvinculam da rede 'formal' de emissoras
de rádio e que se insiram em propostas e atividades vinculadas
com as comunidades em que se situam ou com grupos específicos
comprometidos com projetos de democratização da
informação, não importando como elas se
auto-denominam ('comunitárias' ou 'livres'); o que importa
é a atividade que realizam.
[3]
Os parâmetros que caracterizam as rádios comunitárias
e livres são apresentados por PERUZZO (1998).
[4]
O texto é uma versão parcial da transcriação
da entrevista com o comunicador, realizada no dia 26 de outubro
de 2005. Ressalte-se que, devido às limitações
de espaço, optou-se por destacar trechos de sua narrativa
que abordam mais diretamente a sua experência à
frente da rádio livre e de outros projetos alternativos
de comunicação.
[5]
A narrativa foi obtida conforme o método da História
Oral. A perspectiva, como dito anteriormente, é da história
oral de vida, com foco na trajetória pessoal do colaborador
a partir da ótica deste. Em vista disso, o interesse
do levantamento não está na contraposição
ou checagem de dados, mas no relato da experiência feito
pelo colaborador. O importante é saber como ele compreende
as dinâmicas históricas e a relação
destas com a sua vivência.
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Lluís (ed.). De las ondas rojas a las radios libres.
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sociocultural. In: CONH, G. Comunicação
e indústria cultural. São Paulo: Edusp/ Cia.
Editora Nacional, 1971.
FERNANDES,
Francisco A. M. (Org.) Comunicação e solidariedade.
São Paulo: Loyola, 1992.
GUATTARI,
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a uma era pós-mídia". MACHADO, Arlindo et
al. Rádios livres: a reforma agrária no ar.
São Paulo, Brasiliense, 1986. (pp. 9-13).
LAVALLE,
Ricardo. "Brasil tem 131 novas autorgas de rádios
comunitárias em 2005". Boletim da Agência
Nacional de Telecomunicações ANATEL. Disponível
em http://www.anatel.gov.br/radiodifusao/FM_Comu/.
(Acesso em 03/08/2005)
MACHADO,
Arlindo; MAGRI, Caio; MAZAGÃO, Marcelo. Rádios
livres: a reforma agrária no ar. São Paulo,
Brasiliense, 1987.
MEIHY,
José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral.
São Paulo, Loyola, 2005.
ORTRIWANO,
Gisela Swetlana. A informação no rádio:
os grupos de poder e a determinação dos conteúdos.
São Paulo, Summus, 1985.
PERUZZO,
Cecília Maria Krohling. Comunicação
nos movimentos populares: a participação na construção
da cidadania. Petrópolis, Vozes, 1998.
_____________________________.
Participação nas rádios comunitárias
no Brasil. XXI Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Recife-PE, 9 a 14 de setembro de
1998. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=peruzzo-cicilia-radio-comunitaria-br.html
(acesso em 31/08/2005).
*Suely
Maciel é jornalista formada pela Universidade Federal
de Goiás, mestre em Semiótica e Lingüística
Geral pela FFLCH/USP e doutoranda em Ciências da Comunicação/Jornalismo
pela ECA/USP.
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