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Conversas 
                          com o ermitão
 da Praia Vermelha
 
 Fragmento 
                          Biográfico [1] Por 
                        José 
                        Amaral Argolo* 
                       Eu 
                        vejo a natureza como parte de mim. Quando tenho um problema 
                        eu mentalizo Deus. Me apóio numa árvore, 
                        seja à luz do Sol, no crepúsculo ou sob 
                        o reflexo da Lua e mentalizo... como se estivesse conversando 
                        com Deus, com meus espíritos guardiães, 
                        com as entidades abrigadas nas rochas, nas árvores... 
                        e peço permissão ao Criador e às 
                        entidades invisíveis para que me ajudem a obter 
                        uma resposta. Então, com a maior segurança 
                        e naturalidade, coloco em prática os sinais divinos, 
                        de modo a resolver as dúvidas e ajudar as pessoas 
                        que me procuram. Severino Gomes 
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                        Reprodução
   O Ermitão da Montanha (1863), gravura
 de Doré para Atala, de Chateaubriand.
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                 O 
                  que importa de fato é que ele está vivo e cada 
                  vez mais teimoso.  Severino 
                  Gomes da Silva é o seu nome. Como tantos outros amigos, 
                  freqüenta a minha casa e eu a dele. Onde moro? Com a minha 
                  família num apartamento alugado e modesto em Botafogo. 
                  Ele? Sozinho e no vão de uma rocha na floresta, a aproximadamente 
                  cento e cinqüenta metros de altitude em relação 
                  ao nível do mar, partindo da Pista Cláudio 
                  Coutinho, melhor dizendo, do Caminho do Bem-Te-Vi 
                  - no canto esquerdo da Praia Vermelha.  É 
                  o seu castelo há 25 anos. Ali, com os parcos recursos 
                  de que dispõe e em plena sintonia com a natureza, cuida 
                  daquele trecho belíssimo e encantado do Rio de Janeiro. 
                  É o único cidadão autorizado pela Escola 
                  de Comando e Estado-Maior do Exército a nele residir 
                  e designado guardião das matas do Morro da Urca 
                  e do Pão de Açúcar. 
 O 
                  apelido - Sem Futuro - quem lhe deu foi Renato Papagaio, 
                  ex-guarda-vidas do Corpo Marítimo de Salvamento (já 
                  falecido) que, durante muitos anos, trabalhou na Praia Vermelha. 
                  Gomes, como eu o chamo no dia-a-dia, é um herói. 
                  Nem mesmo ele, consultando os seus registros pessoais anotados 
                  em um caderno com as páginas amareladas pelo tempo, sabe 
                  dizer o número de vezes em que, tarde da noite e/ou na 
                  alta madrugada, sob vento frio, chuva forte, trovões 
                  e relâmpagos, deixou o abrigo que lhe foi concedido pela 
                  natureza e, sozinho, entrou na mata para resgatar alpinistas 
                  acidentados nas encostas dos morros da Urca e do Pão 
                  de Açúcar, pessoas perdidas ou picadas por jararacas, 
                  localizar cadáveres ou ajudar os bombeiros no resgate 
                  dos corpos dos afogados.
 Sim, 
                  localizar cadáveres. Infelizmente, mesmo naquele Cartão 
                  Postal da Cidade, naquele trecho protegido e constantemente 
                  patrulhado pela Polícia do Exército, a violência 
                  se faz presente. Certa vez uma mulher foi morta a golpes de 
                  baioneta pelo próprio marido, funcionário, soube-se 
                  depois, de uma loja situada no Edifício Praia Vermelha 
                  - onde residem oficiais-alunos dos cursos de Estado-Maior; de 
                  outra, um suicídio; aliás, vários, inclusive 
                  no mar, nas imediações das pedras Lisa, 
                  da Sereia e do Urubu, onde o impacto das ondas 
                  contra os rochedos forma rodamoinhos mortíferos. 
 Quem 
                  conhece - e são poucos aqueles que de fato podem dizê-lo 
                  - as matas que orlam as encostas dos morros da Urca e do Pão 
                  de Açúcar e os perigos do mar nem sempre calmo 
                  (há centenas de cavernas subaquáticas nas duas 
                  extremidades da Praia Vermelha: do lado esquerdo, estendendo-se 
                  para muito além do chamado Costão até 
                  a Fortaleza de São João construída pelos 
                  portugueses; do lado direito, projetando-se ao Leme), pode mensurar 
                  as dificuldades quando se trata de resgatar alguém. Mesmo 
                  os experientes soldados e oficiais do Exército e do Corpo 
                  de Bombeiros, quando solicitados, recorrem a Severino Gomes 
                  para auxiliá-los.
 Conto 
                  uma história que não teve final feliz. Aconteceu 
                  em 1997, durante uma das piores ressacas que vi acontecer. Barcos 
                  foram lançados à distância e espatifados 
                  contra as muretas de granito da Urca, as ondas batiam furiosamente 
                  contra os rochedos e "lavaram", por assim dizer, alguns 
                  trechos da Pista Cláudio Coutinho mais próximos 
                  da linha d'água. Não havia, como hoje, uma extensa 
                  grade de proteção margeando o caminho e os praticantes 
                  de jogging, prudentemente, reduziam a velocidade colando-se 
                  quase aos paredões para não escorregar no asfalto 
                  molhado e cair no mar.
 Cinco 
                  adolescentes que aproveitaram a maré baixa e desafiaram 
                  a ressaca subindo ao topo da Pedra Lisa, tinham sido 
                  advertidos por Severino Gomes para que deixassem rapidamente 
                  aquele local, mas não se convenceram do perigo e menosprezaram 
                  o conselho daquele homem simples e mal vestido.  Sei 
                  de tudo isso porque, casualmente, também estava lá. 
                  Afinal, o Morro da Urca e a casa do ermitão da 
                  Praia Vermelha são refúgios habituais para este 
                  já não tão jovem jornalista.
 Devo 
                  ressaltar, relativamente aos fatos em pauta, o menosprezo e 
                  a resistência que certos adolescentes das metrópoles 
                  têm com relação aos conselhos dos mais velhos, 
                  principalmente em se tratando de uma pessoa humilde e desconhecida.
 Na 
                  tarde seguinte aconteceu a tragédia. Novamente a imprudência 
                  dos adolescentes e a resposta imediata das forças da 
                  natureza. Uma onda violentíssima lambeu a Pedra Lisa 
                  e dois deles caíram no mar. Um teve a sorte de ser resgatado 
                  meia hora depois - todo machucado e a bem mais de quinhentos 
                  metros da orla da Praia Vermelha - por mergulhadores da Coordenadoria 
                  Geral de Operações Aéreas. O outro, 
                  caiu no sumidouro provocado pelo repuxo da onda e, em 
                  seguida, foi projetado de cabeça contra o rochedo, afundando 
                  imediatamente e desaparecendo nas profundezas do mar. Quanto 
                  aos demais, fora o susto e alguns arranhões proporcionados 
                  pelo atrito inesperado contra a rocha, conseguiram safar-se 
                  ajudados por pescadores.
 A 
                  mãe do menino morto e desaparecido, casada com um oficial 
                  do Exército, tomou conhecimento do acidente com o filho 
                  único duas ou três horas depois, quando voltava 
                  das compras. Algumas senhoras inutilmente tentaram confortá-la 
                  e militares solicitaram, por intermédio do telefone, 
                  a ajuda das autoridades do Primeiro Distrito Naval e dos mergulhadores 
                  do Batalhão de Forças Especiais. A Marinha argumentou 
                  que não poderia arriscar uma embarcação 
                  e seus tripulantes face às péssimas condições 
                  de navegabilidade; quanto ao Exército, enviou um grupo 
                  de especialistas... Impasse 
                  na Praia Vermelha  
                  Angustiado pelo sofrimento daquela jovem mãe, perguntei 
                  a Severino Gomes se, com o auxílio de cordas, eu conseguiria 
                  descer até a Pedra Lisa e, com um pouco de sorte, 
                  localizar o corpo do menino - supondo que ainda estivesse preso 
                  às rochas. Respondeu-me que não. Muito dificilmente 
                  eu chegaria ao ponto desejado e, segundo ele, mesmo que tal 
                  proeza fosse possível, dela não retornaria com 
                  vida.
 E 
                  acrescentou:
 - 
                  Irmão Argolo, meu professor! (tratamento que sempre usa 
                  quando conversamos) se você quiser descer para a morte 
                  eu o acompanharei nessa viagem sem volta. Não há 
                  mais nada que possamos fazer. Os desígnios de Deus são 
                  mais fortes do que nós. 
 O 
                  bom senso prevaleceu e, quando os Comandos (alpinistas 
                  e mergulhadores) do Exército chegaram, houve tão-somente 
                  uma tentativa frustrada de resgate. Aqueles homens acostumados 
                  a provas duríssimas, a situações-limite, 
                  desprezaram as observações que lhes fizemos oralmente 
                  e voltaram pouco depois, de cabeças baixas, encharcados 
                  e arranhados. Nem chegaram à pedra de onde o menino despencou 
                  e morreu tragado pelo mar.  Um 
                  deles, capitão pelo que me recordo, não gostou 
                  das palavras que ouviu daquele homem de baixa estatura, magro 
                  e com um facão de mato preso à cintura por um 
                  cinturão de lona do próprio Exército:
 - 
                  Capitão, veja bem, se eu que vivo aqui e conheço 
                  cada trilha e cada caverna submarina; se o meu irmão-professor 
                  que também sabe muito disso aqui não desceu até 
                  lá atendendo aos conselhos que lhe dei, o que vocês 
                  fizeram foi loucura. Ainda bem que desistiram. 
 Como 
                  outras vítimas de tantas e tantas ressacas, o corpo daquele 
                  menino desapareceu. Naquela noite choramos por ele e compartilhamos, 
                  solidários, a dor da sua família.    Visão 
                  ao longe
 
  
                   
                    Chovia. Contornando de passagem a Praça General Tibúrcio 
                    no velho Volkswagen Gol 1993,eu regressava da Universidade 
                    para casa. Já estava tarde: oito, nove horas da noite. 
                    Tempo de tomar banho, comer alguma coisa e preparar a aula 
                    da manhã seguinte. Dirigia devagar, despreocupadamente. 
                    Dali mesmo, quando passava diante da estátua de Chopin, 
                    obra lindíssima doada ao povo carioca pelo governo 
                    Polonês, pude ver à meia-distância Severino 
                    Gomes. Ele caminhava com alguma dificuldade, a capa de náilon 
                    esvoaçante, na direção dos portões 
                    de acesso à Pista Cláudio Coutinho. Junto com 
                    ele seguia Rocha, o vira-lata mais manso que conheci e que 
                    foi morto anos depois com uma facada por um bandido dublê 
                    de barraqueiro e vendedor de mate da Praia Vermelha. Gomes 
                    caminhava sem pressa. A chuva caía sem parar, iluminada 
                    pelas grandes lâmpadas de mercúrio. Adiante, 
                    no canto esquerdo da Praia, apenas as luzes tremeluzentes 
                    das lanternas dos pescadores e a escuridão do mar. Severino 
                  Gomes da Silva nasceu em Camocim de São Félix 
                  - interior de Pernambuco - no dia 18 de março de 1951. 
                  Nos documentos, porém, por um desses equívocos 
                  do escrivão no cartório, consta o ano de 1952. 
                  Filho de Absalão Gomes da Silva e de Lucinda Rosa do 
                  Nascimento, foi entregue à guarda dos avós paternos 
                  após a morte da mãe, vítima de tuberculose, 
                  quando ele tinha três anos. Apolônio Gomes da Silva 
                  e D. Maria Julia da Conceição cuidaram do garoto 
                  até os oito anos, quando viajou para Recife com o pai 
                  e as três irmãs - Salete, a mais velha, Julia e 
                  Ione, a caçula - onde a família fixou residência. 
                  
 O 
                  catolicismo, forte em todo o Nordeste Brasileiro e muito bem 
                  representado - basta observar o número de igrejas existentes 
                  em Olinda e Recife - levou-o à Basílica de Nossa 
                  Senhora do Carmo (Santa Padroeira da Capital Pernambucana), 
                  onde foi coroinha durante algum tempo. Essa mesma religiosidade 
                  ele mantém até hoje, embora o fervor em relação 
                  às palavras de Jesus Cristo transcritas pelos apóstolos 
                  nos Evangelhos, tenha sido flexibilizado para outras crenças 
                  que considera igualmente aplicáveis: a Igreja Messiânica, 
                  o Kardecismo e certos ritos afro-brasileiros com os quais compartilha 
                  no cotidiano na floresta.   
                  Um exemplo que confirma essa aproximação:
 Severino Gomes:
  
                  Certa 
                    ocasião, e não fui somente eu que vi, pois estava 
                    acompanhado, bem perto de onde eu caminhava, à noite, 
                    na mata do Morro da Urca, havia um monge parado com o hábito 
                    franciscano, o rosto encoberto pelo capuz... O que ele fazia 
                    naquele local ermo e àquela hora? Passados uns poucos 
                    segundos, quando voltei a firmar os olhos na sua direção, 
                    ele desaparecera. Rezei, então, a todos os santos e 
                    pedi proteção aos guias e orixás da floresta.  ...No domingo passado, lá pelas dez da noite, Gomes esteve 
                comigo na minha casa. Chovia e ventava muito. Ele chegara há 
                pouco de Copacabana e, em seguida, caminharia até a Urca 
                (distante dois quilômetros) onde ministraria palavras de 
                conforto a uma pessoa adoentada. Como por acaso eu conhecia aquele 
                indivíduo e não tinha uma única sombra de 
                dúvida sobre o seu péssimo caráter, indaguei: 
                Mas...você pretende mesmo ir até lá? Esse 
                sujeito não vale o chão que pisa!
 
 Respondeu, 
                  sereno:
 - 
                  Eu sei, irmão Argolo, sei de tudo isso e até bem 
                  mais. No entanto ele solicitou que me chamassem. Vou atendê-lo 
                  porque se trata de um compromisso de fé. 
 Bebeu 
                  uma caneca de chá quente, comeu um sanduíche de 
                  carne assada fria e temperada com molho de mostarda levemente 
                  apimentada, fumou mais um cigarro e, apesar do frio e do temporal, 
                  foi embora para cumprir a missão. Essa lição 
                  de vida e solidariedade compartilho agora com você, leitor 
                  (a).
 ...
 De volta à estrada da vida.
 
 O ex-sacristão cresceu e, aos dez anos, concluiu 
                  o curso primário na Escola Municipal da Ordem Terceira 
                  do Carmo. Não chegou ao ginasial. Parou no primeiro ano 
                  quando ingressou na Escola de Aprendizes-Marinheiros 
                  de Pernambuco, em Olinda, instituição que, ainda 
                  hoje, mantém o brilho da tradição naval. 
                  Cursou quatro quadrimestres e se formou na turma de 1970-1971 
                  (Turma Juliete).
 
 A escolha decorreu da argumentação paterna:
 
 - 
                  Preferes a Marinha ou a Polícia Militar? (tanto na época 
                  como ainda hoje, ressaltou, havia poucas possibilidades para 
                  um menino órfão e de família pobre aprender 
                  um ofício).
 Mas...como 
                  ele próprio (Gomes) reconhece agora, não foi uma 
                  opção das mais fáceis. Após superar 
                  as dificuldades iniciais no quesito adaptação 
                  às normas da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco, 
                  aconteceu um fato pitoresco:
 - 
                  Eu integrava a equipe de natação e, não 
                  sei explicar o motivo, repetia uma falha durante os exercícios. 
                  Entrava na raia um e saía na raia seis. Somente como 
                  recordação, o melhor atleta entre nós era 
                  um lourinho a quem chamávamos de Alemão, 
                  talvez um descendente longínquo dos holandeses.
 A 
                  propósito dos seus dotes como nadador: já vi guarda-vidas 
                  comentar na Praia Vermelha: "eu sou bom, mas aquele magrelo 
                  é melhor do que eu".  Gomes 
                  brinca com o mar. Aproveita a força da correnteza e desliza 
                  nas ondas. Mesmo agora, aos 55 anos, fumando como uma chaminé, 
                  comendo pouco e bebendo além da conta, quando cisma de 
                  entrar na água - não importa o tempo ou a maré 
                  - vê-lo nadar é um espetáculo à parte. 
                  
 Morou 
                  no Recife até os vinte e cinco anos. Antes, durante algum 
                  tempo, ajudou o pai - hoje com 76 anos (nasceu no dia 30 de 
                  março de 1930) e ainda forte - arrendatário de 
                  uma pequena pastelaria localizada atrás da Basílica 
                  de Nossa Senhora do Carmo. "Seu" Absalão repetia 
                  sempre ao filho já graduado aprendiz-marinheiro: "quando 
                  eu pendurar as chuteiras volto correndo para Camocim de São 
                  Félix". Ainda não conseguiu fazê-lo. 
                  Ele mora sozinho na Travessa do Cação, 86 (Bairro 
                  Santo Antonio). Quanto às três irmãs, vivem 
                  numa casa à Rua Delfim, 32, numa comunidade de pessoas 
                  humildes denominada Brasília Teimosa, também 
                  na Capital pernambucana.
 Gomes, 
                  porém, pensava diferente:
 - 
                  Eu queria mais. Um dia falei com o meu pai: dê-me sua 
                  benção que eu vou embora para o Rio de Janeiro.
 Deixou 
                  Recife e desembarcou quarenta e oito horas depois na Rodoviária 
                  Novo Rio, às 9h30min do dia 16 de outubro de 1972. A 
                  Capital Fluminense era a metrópole do sonho, não 
                  das coisas fáceis. E a vida comprovou isso. 
 - 
                  Assim que cheguei fui morar na casa de uma família em 
                  Coelho da Rocha (bairro da Zona Norte relativamente afastado 
                  do centro comercial, econômico e financeiro da cidade). 
                  Arranjar ocupação era difícil e eu comecei 
                  como peão-de-obra. Inicialmente fui trabalhar em Teresópolis 
                  (Região Serrana, distante 130 km da Capital), onde ajudei 
                  a instalar os dutos para a colocação de cabos 
                  telefônicos. Serviço de curta duração 
                  que me levou depois aos municípios de Petrópolis, 
                  São João de Meriti e Angra dos Reis. Nesta última 
                  cidade trabalhei na empresa Odebrecht C.N.O., ajudando na construção 
                  da Usina Nuclear Angra 1. Foi ali que observei com um 
                  pouco mais de atenção o trabalho daqueles guarda-vidas 
                  que usavam camisetas tipo regata com uma cruz vermelha no peito.
 - 
                  Pedi autorização à chefia para treinar 
                  junto com os guarda-vidas. Me exercitava diariamente na Praia 
                  Brava e acreditava que, em pouco tempo, passaria à categoria 
                  de Auxiliar Técnico de Salvamento. Um dia mandaram que 
                  eu participasse de uma prova de 1500 metros. Nadei 4500 metros, 
                  apesar da recomendação no sentido de parar imediatamente 
                  quando estivesse cansado. Fui bem sucedido no teste e, como 
                  a empresa não oferecia curso de guardião de 
                  piscina, voltei para o Rio de Janeiro, para a Praia Vermelha. 
                  Aqui cheguei no dia 11 de janeiro de 1977 e nunca mais saí. 
                 Impressões 
                  sob a figueira   
                  Na clareira onde vive o guardião das matas do Morro da 
                  Urca e do Pão de Açúcar há uma imensa 
                  figueira. Fica em frente ao vão da rocha. O caule gigantesco 
                  lhe assegura alguma proteção contra o vento, a 
                  chuva e é a maior árvore do gênero que eu 
                  já vi. É numa espécie de banco natural 
                  que costumamos sentar e conversar muitas horas, o que tem acontecido 
                  freqüentemente ao longo desses 27 anos. Reproduzo de memória 
                  - e com os lapsos inevitáveis - uma dessas jornadas que 
                  se prolongaram até tarde da noite.  
                  - Da velhice ninguém passa!- dizia Gomes.
  
                  - 
                    Da velhice ninguém passa!- dizia Gomes.O 
                    assunto girava em torno da saúde do meu pai,bastante 
                    fragilizado pela doença, em sua primeira noite em casa 
                    após dezoito dias de internação numa 
                    enfermaria do Setor de Cardiologia do Hospital Miguel Couto. 
                    Angustiava-me o sofrimento daquele homem bom e sem inimigos, 
                    seu estoicismo diante da dor.
 Falávamos, também, dessa representação 
                    chamada vida, durante a qual as pessoas, em sua quase totalidade, 
                    buscam alcançar o inatingível, superar o tempo, 
                    comprar o passaporte para a eterna juventude.
 Gomes contou uma parábola:
 - Um executivo, desses que andam apressadamente pelas ruas 
                    carregando uma pasta de couro tipo 007, deparou-se casualmente 
                    com um ermitão quieto no seu cantinho. Este último 
                    perguntou ao executivo a razão pela qual carregava 
                    com tanta pressa levando consigo aquela maleta. Ao que o outro 
                    respondeu:" estou aqui de passagem". Daí 
                    o executivo resolveu indagar:" e o senhor, o que faz 
                    aí sentado tão calmamente? - notando que o ermitão 
                    nada mais dispunha do que um banco rústico e um estrado 
                    para lhe servir de cama. Justificou-se este: "eu também 
                    estou aqui de passagem!".
 O 
                  passado, sempre o passado. Severino Gomes lembra-se do dia em 
                  que foi reprovado no teste denominado reboque, essencial 
                  para todo e qualquer guarda-vidas.
 A 
                  explicação:
 - 
                  Em toda operação de resgate a pegada deve 
                  ser feita com a mão esquerda e a puxada com a 
                  direita. Eu estava acostumado a nadar e respirar quando virava 
                  a cabeça para o lado esquerdo. Nadando na direção 
                  da "vítima do afogamento", fiquei atrapalhado 
                  com as ondas batendo de frente e perdi muitos pontos.
 No 
                  ano seguinte (1978) passou no teste para guardião 
                  de piscina e conseguiu emprego no Clube Internacional (também 
                  conhecido como Boqueirão, nas proximidades do 
                  Aeroporto Santos Dumont - Centro do RJ).  Quatro 
                  meses depois foi convidado a trabalhar no Othon Palace (Posto 
                  4, Copacabana) onde exerceu a função até 
                  se indispor com o chefe da segurança:
 - 
                  Eu dava atenção especial a uma turma de crianças 
                  e, certa manhã, percebi que outro funcionário 
                  do hotel despejara na água uma quantidade de cloro além 
                  do recomendável. Interditei a piscina, pois não 
                  permitiria que aqueles meninos e meninas sofressem queimaduras 
                  nos olhos. Daí, o tal chefe discutiu comigo alegando 
                  que a proibição, num dia de muito calor como aquele, 
                  prejudicaria os demais hóspedes. Decidi procurar outro 
                  emprego e saí com a consciência limpa. Consegui 
                  uma vaga no Flamengo Futebol Clube e trabalhei durante sete 
                  meses até ser despedido por culpa minha, melhor dizendo, 
                  da cachaça...
 A 
                  empresa Régia Hidráulica e Esportiva (especializada 
                  na construção e manutenção de piscinas) 
                  foi sua última empregadora. Nela trabalhou sete meses 
                  no escritório central, mais oito meses como guardião 
                  de piscinas no Montanha Clube, outros cinco em um condomínio 
                  residencial no bairro da Freguesia (Jacarepaguá), pouco 
                  menos de um ano no Jóquei Clube Brasileiro, além 
                  de - por duas vezes, ambas em curtos períodos - no Condomínio 
                  Casa Alta (um prédio residencial de classe média, 
                  em Botafogo - Zona Sul).
 Durante 
                  todo esse tempo Severino Gomes esteve abrigado precariamente 
                  na Praia Vermelha. Aquele local conquistara de vez o migrante 
                  pernambucano pobre e de bom coração. Inicialmente 
                  ele dormia em um pequeno vão entre as rochas, pouco acima 
                  da linha d' água na maré cheia.  Ali 
                  guardava as suas poucas roupas e agasalhos. Muitas vezes, quando 
                  chegava para descansar após o trabalho, encontrava o 
                  interior do abrigo revirado por mãos desconhecidas e/ou 
                  as peças encharcadas devido a uma onda mais forte. Quando 
                  isso acontecia o único jeito era torcer o cobertor, resgatar 
                  os pares de sapatos/chinelos (que deixava amarrados aos pares) 
                  boiando e rezar para que o vento sudoeste não lhe castigasse 
                  o corpo cansado durante a noite. 
 Severino 
                  Gomes é um sujeito correto com os amigos e de notável 
                  honestidade pessoal. Como assinalado, há vinte e sete 
                  anos sou seu amigo e durante todo esse tempo foram inúmeras 
                  as vezes em que lhe confiei a guarda de objetos, chaves da minha 
                  casa e dinheiro. Jamais se apropriou de um centavo sequer. Se 
                  desejava um cigarro, pedia.
 O 
                  sonho de integrar o quadro de salva-vidas se dissipou, porém, 
                  no início dos anos oitenta, quando da implantação 
                  do Grupamento Marítimo de Salvamento, órgão 
                  do Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro. 
                  Durante a mudança para a nova sede muitos arquivos foram 
                  extraviados e ele não conseguiu obter a segunda via da 
                  carteira de guardião de piscinas.
 Dos 
                  raros papéis que preservou, ainda que amarrotado, o diploma 
                  obtido na Marinha pouco lhe serviu. "O certificado que 
                  recebi tem validade somente barra a fora, isto é, 
                  em alto mar; não atende à navegação 
                  de curta-distância. Daí, eu precisaria fazer outro 
                  curso, mas o tempo foi passando e nunca tive dinheiro para custear 
                  as despesas" [2], disse.  Sobre 
                  cães, répteis e homens   
                  Tamba, Rocha, Malhado, Judy e, mais recentemente, 
                  Boto, Papillon, Conchita e Anu, todos vira-latas (os dois 
                  últimos "netos" de Rocha, mistura com 
                  Terrier), foram e são os companheiros do ermitão 
                  da Praia Vermelha. O primeiro morreu de velhice e foi enterrado 
                  junto a um mamoeiro. Era um animal muito inteligente e seguia 
                  o dono como uma espécie de sombra. No final, praticamente 
                  cego e muito fraco, deitava-se na entrada da trilha esperando 
                  que Severino Gomes o levasse até a clareira no coração 
                  da mata.
 Outros 
                  cães, o número é impreciso, Gomes viu morrer 
                  picados por jararacas.  As 
                  matas nos morros da Urca e Pão de Açúcar 
                  ainda preservam muitos exemplares da flora e da fauna; relativamente 
                  a este última, são aproximadamente setenta espécies 
                  de pássaros catalogados pelos especialistas, quatro ou 
                  cinco de ofídios (incluindo corais verdadeiras), sagüis, 
                  gambás, teiús e pequenos roedores.
 Quanto 
                  aos ofídios não peçonhentos existem: jibóias, 
                  limpa-campos e cipós.  As 
                  venenosas, além das já citadas - eu pessoalmente 
                  nunca vi -, são urutus-cruzeiro e cascavéis. Gomes 
                  afirma ter se deparado com uma urutu certa vez próxima 
                  ao marco dos oitocentos metros da Pista Cláudio Coutinho. 
                  Tentou capturá-la mas o réptil escapou, embrenhando-se 
                  nos espinheiros. Relativamente às cascavéis, tenho 
                  conhecimento de dois registros: o primeiro, narrado por um sargento 
                  do Exército que teria morto uma a pauladas junto aos 
                  arbustos que existem ao longo daquele caminho.  O 
                  outro, de um alpinista apavorado que ficou suspenso à 
                  distância de três, quatro metros da base do Pão-de-Açúcar, 
                  com a serpente enrolada no chão exatamente no ponto onde 
                  ele deveria pisar. Como não teve forças para subir 
                  novamente a montanha, gritou por socorro e foi salvo por outros 
                  rapazes que, por mera coincidência, pretendiam iniciar 
                  a escalada naquele trecho.
 Os 
                  acidentes ofídicos causados por jararacas no Morro da 
                  Urca são freqüentes. O próprio Gomes quase 
                  morreu em conseqüência da desatenção. 
                  Conto como foi. Ele viu um espécime bem taludo próximo 
                  à entrada da trilha principal (marco dos 350 metros), 
                  conseguiu pegá-lo com as mãos desprotegidas, arranjou 
                  uma garrafa de plástico e, como de costume desde que 
                  foi morar naquele quase-escondido vão da rocha, tentou 
                  colocá-lo no recipiente para, em seguida - por intermédio 
                  do próprio Exército - enviar ao Instituto Vital 
                  Brasil, em Niterói. Não teve tempo de fazê-lo 
                  de maneira adequada e foi picado no dedo indicador da mão 
                  direita.
 Os 
                  efeitos foram quase imediatos. Primeiro o dedo inchou bastante, 
                  depois a mão e o braço. Gomes estava meio bêbado 
                  naquela tarde e acreditou que a peçonha instilada pela 
                  serpente fora pouca e não lhe acarretaria maiores problemas. 
                  Quarenta minutos depois teve que recolhido no final da Pista 
                  - cambaleante e pronunciando frases desconexas - por uma dupla 
                  de soldados e levado ao Hospital Central do Exército, 
                  onde tomou dezessete frascos de soro antibotrópico. O 
                  oficial-médico que o atendeu ficou impressionado com 
                  a violência do choque provocado pelo veneno e comentou 
                  que se até à meia-noite o soro não surtisse 
                  efeito, seria mais conveniente chamar o rabecão.
 Salvou-se 
                  o ermitão da Praia Vermelha graças à extraordinária 
                  resistência acumulada durante os anos vividos na floresta. 
                  Permaneceu inconsciente durante algumas horas e, quando acordou, 
                  pensou que estava no céu, olhando todas aquelas pessoas 
                  vestidas de branco: médicos, enfermeiras e enfermeiros. 
                  Passou duas semanas com a mão deformada pelo inchaço 
                  e, por sorte, não teve seqüelas permanentes (fato 
                  este bastante comum nos acidentes ofídicos). 
 Este, 
                  na verdade, foi o segundo problema que enfrentou relacionado 
                  a cobras. O primeiro foi com uma jibóia que encontrou 
                  ainda filhote no mato e resolveu criar. Passado algum tempo, 
                  no meio de uma noite de verão, levantou-se para beber 
                  água e levou uma mordida no lábio superior. Não 
                  precisou levar pontos, mas ficou a cicatriz. Quando ao animal, 
                  já adulto, a prudência postergada recomendou que 
                  levasse para o Zoológico.
 Esqueçamos 
                  as serpentes e voltemos aos cães.
 Sempre 
                  se fala da lealdade aos homens. Severino Gomes tem certeza disso:
 - 
                  São a minha alegria. Mansos como crianças. Nunca 
                  tive um cão que atacasse alguém, salvo para se 
                  defender da maldade dos homens.Dou um depoimento:
  
                  Rocha 
                    (ou Rochedo) recebeu este nome porque foi encontrado numa 
                    das encostas do Morro da Urca. Estava com sede, fome e apresentava 
                    alguns machucados na cabeça derivados, talvez, da luta 
                    com um cão mais forte. Gomes levou-o para a clareira, 
                    alimentou-o e cuidou das feridas; não demorou a se 
                    acostumar com Tamba e June e participou de inúmeras 
                    operações de resgate na mata. Um herói 
                    canino! Uma tarde ele foi atropelado (a motorista fugiu!) 
                    e a pata traseira direita precisou ser amputada. Um mês 
                    depois, apesar da falta de uma prótese, lá estava 
                    ele outra vez acompanhando o dono em suas caminhadas pelas 
                    trilhas na montanha. Já estava velho, mais de dez anos, 
                    quando foi esfaqueado na Praia Vermelha por um dublê 
                    de bandido e barraqueiro. Com dificuldade e sangrando muito, 
                    foi morrer exatamente aos pés de Severino Gomes. Este, 
                    por excesso de generosidade, penso, não quis tomar 
                    satisfações com o pilantra. Chorou muito e argumentou 
                    que a "justiça divina, por ser mais forte do que 
                    a nossa, viria a seu tempo". É 
                  comum vê-lo carregando sacolas plásticas contendo 
                  restos de carne fresca e pedaços de ossos que consegue 
                  do açougue próximo, base da alimentação 
                  dos cães. Leva para a clareira e ferve a carne já 
                  limpa da gordura e os ossos em um panelão. Mistura com 
                  ração e um pouco de fubá cozido. É 
                  preciso ver a alegria dos bichinhos.
 Mesmo 
                  quase-recluso em sua clareira na mata, Severino Gomes é 
                  conhecido por muita gente. E não somente no Brasil. Na 
                  Alemanha ele teve o seu nome citado em revistas de grande circulação. 
                  No Rio de Janeiro, quase todos os diários publicaram 
                  notícias e/ou pequenas entrevistas com o ermitão 
                  da Praia Vermelha. Esta, porém, é a primeira vez 
                  que sua vida é devassada de maneira um pouco mais aprofundada.
 - 
                  O livro da minha vida eu só abri para você, Irmão 
                  Argolo. Muitas coisas nós conversamos neste pedacinho 
                  de verde que também é a sua casa.
 Algumas 
                  pessoas zombam dele, acham-no "exótico demais", 
                  "irresponsável e preguiçoso", porque 
                  não se preocupa com os confortos proporcionados pela 
                  energia elétrica, gás de cozinha, telefone; porque 
                  não assiste televisão, não tem emprego 
                  fixo segundo os parâmetros convencionais; porque abdicou 
                  da família e anda pobremente vestido, quando poderia 
                  estar vivendo em condições mais adequadas à 
                  sua formação.
 Muitas 
                  vezes, quando conversamos, penso no filme Equus (adaptação 
                  da peça elaborada por Peter Weiss), mais precisamente 
                  da personagem interpretada por Richard Burton: um psiquiatra 
                  contratado para analisar um adolescente que nutre profunda afeição 
                  por cavalos; que cavalga nu pelos campos, e gradualmente envolvido 
                  pela paixão de uma jovem, cega com a lâmina de 
                  uma foice os animais da cocheira para que estes não vejam 
                  a consumação do amor entre ambos.
 Burton 
                  (representando um psiquiatra) reflete em certo trecho sobre 
                  o conceito de normalidade psicológica. Quem está 
                  correto? Ele próprio, casado há trinta anos com 
                  uma mulher a quem não mais deseja e está unido 
                  tão-somente por força dos compromissos sociais 
                  e familiares - obrigado pelas mesmas circunstâncias a 
                  custear férias e cruzeiros marítimos caros e insuportáveis 
                  -, ou o rapaz em sua aparente complexidade psicológica?
 Gomes 
                  ama a natureza, vive junto dela, sente-se feliz com sua liberdade. 
                  A dívida externa brasileira não lhe tira o sono, 
                  os resultados das loterias sequer o incomodam, nem lhe causam 
                  inveja os títulos acadêmicos e a imponência 
                  das vestes dos magistrados; ignora os lançamentos imobiliários, 
                  a cotação das ações e as novas tecnologias.
 Em 
                  minha casa, certa vez, pediu para assistir um vídeo. 
                  Perguntei qual o gênero e me respondeu: "qualquer 
                  um, basta que seja bom". Em outra ocasião, loucura 
                  minha e de outros amigos, quisemos lhe dar de presente um telefone 
                  celular. Desses de cartão, pré-pago. Afinal, ultrapassado 
                  o marco dos cinqüenta anos e vivendo sozinho no meio da 
                  floresta os imprevistos são admissíveis quanto 
                  ao quesito saúde. Sua argumentação foi 
                  simples: recusou.
 - 
                  Irmão Argolo, meu professor! Você e os outros amigos 
                  sempre souberam onde me encontrar. Se um dia perceberem urubus 
                  voando baixo perto da figueira e os meus cachorros latindo muito, 
                  terão certeza de que eu parti.  Então, 
                  por favor, respeitem esse meu pedido. Deixem-me lá, perto 
                  de onde vivo agora, junto à grande figueira que velará 
                  pelo meu sono; permitam que eu fique por lá, na companhia 
                  dos espíritos da floresta, onde você também, 
                  querido Irmão, estará um dia - porque eu sei que 
                  esse é também o seu desejo - e então conversaremos 
                  pela eternidade, e simbolicamente pescaremos e assaremos peixes, 
                  comeremos batata-doce e milho verde assados nesta grelha feita 
                  de vergalhões sobre latas enferrujadas, e beberemos sem 
                  ressaca água-que-passarinho-não-bebe e 
                  o que mais conseguirmos das imagens e representações 
                  da natureza, pois estaremos acima dos galhos das árvores 
                  mais altas da nossa floresta-mãe.
 Lembrei-me 
                  de uma tarde, no dia seguinte àquele tipo de rusga que 
                  tira o humor de qualquer casal. Minha mulher e eu tínhamos 
                  tido uma levíssima discussão sobre questões 
                  triviais e, na contramão das horas, visitei o ermitão 
                  em seu refúgio. Estava ocupado, varrendo com um ancinho 
                  as folhas que a ventania derrubara sobre a clareira. Recostei-me 
                  numa cadeira velha, quase desmontando, e ali permaneci, estático, 
                  com cara de funeral.  Gomes 
                  manteve-se quieto. Encostou a ferramenta de trabalho num anteparo 
                  qualquer e colocou um pouco de lenha sob a grelha. Ferveu água 
                  num bule e colocou algumas colheres de achocolatado (comprado 
                  com o dinheiro proveniente da venda de alguns peixes). Era tudo 
                  o que tinha para compartilhar. Bebemos.
 Em 
                  seguida ouvi seus conselhos, refleti a respeito, concordei com 
                  os argumentos e voltei atrás na decisão de chutar 
                  o balde. Desci novamente a trilha. Já estava tarde 
                  e, como não enxergo direito à noite, fui escoltado 
                  pelo velho mateiro até a Pista Cláudio Coutinho. 
                  De volta à casa, reconstruir a ponte com a minha companheira 
                  foi questão de horas. Melhor assim. 
 O 
                  pernambucano solitário, amigo-irmão, traz consigo 
                  a retórica do bom senso, conhece como poucos a magia 
                  da reconciliação e procura estendê-la aos 
                  que o procuram. Aprendeu com o tempo, na escuridão e 
                  no silêncio da floresta.
 Em 
                  se tratando, porém, de matéria relacionada ao 
                  seu próprio coração, Severino Gomes é 
                  um colegial. Viveu um curioso caso de amor com uma balzaquiana 
                  bem situada economicamente, que pretendia ajuda-lo financeiramente 
                  a reconstruir sua ligação com o mundo além 
                  da Praia Vermelha. Testemunhei esta relação e 
                  torci para que fosse adiante. Não deu. Ele misturou tudo, 
                  andou bebendo além da conta e fez com que a atração 
                  se dissipasse. O arrependimento veio, é claro, mas um 
                  pouco tarde.  De 
                  nada adiantaram as tentativas de reconciliação, 
                  até porque, adaptadas ao seu estilo rude, assustaram-na 
                  ainda mais.
 Após 
                  uma dessas malsucedidas iniciativas, vi Severino Gomes cambaleante, 
                  sem camisa e sob um vento frio de rachar, caminhando pela Pista 
                  Cláudio Coutinho. Parei junto dele e vi que segurava 
                  com ambas as mãos uma pomba branca, machucada. O porre 
                  não lhe tirou a percepção: "me falaram 
                  sobre um passarinho ferido e vim buscá-lo. Vai ficar 
                  bom" (uma das asas estava quebrada, provavelmente devido 
                  ao impacto nos rochedos decorrente da ventania). E continuou 
                  andando com os passos trôpegos até a clareira. 
                  ...
 
  
                  "Caniços 
                    de pesca têm propriedades mágicas. Falo dos que 
                    eu mesmo faço. Aliás, não posso compará-los 
                    àqueles produzidos em escala industrial, perfeitos 
                    na forma e vendidos nas lojas especializadas". Essa conversa 
                    estendeu-se para muito além de uma tarde-noite ao pé 
                    do fogo na clareira. "Quarto Minguante. Com a Lua assim 
                    dá certo, mas é preciso deixar secar os bambus 
                    verdes, cortados a, no máximo, três palmos do 
                    chão. Depois, quando amarelos, tratá-los com 
                    sebo de boi aquecido no fogo, como estou fazendo agora. A 
                    gordura forma uma espécie de película protetora 
                    enquanto, com todo o cuidado, as hastes são passadas 
                    várias vezes pela fogueira ativada com banha animal". 
                    É um trabalho lento, demorado mesmo. Coisa de até 
                    três meses, estendendo-se desde a retirada dos bambus 
                    verdes e a etapa de quarentena encostados na rocha, até 
                    os últimos arremates (colocação dos anéis 
                    de aço destinados à passagem da linha etc). 
                    Severino Gomes não disfarça o orgulho ao exibir 
                    um caniço novinho destinado à pesca de anchovas. 
                    "Veja a resistência, ele não quebra", 
                    diz, enquanto pressiona a ponta do bambu no chão arenoso. 
                    Ele não vende os caniços de pesca; presenteia 
                    aos amigos que com ele partilham das pescarias noite a dentro 
                    junto ao Costão do Pão de Açúcar, 
                    ou então nas proximidades da Ilha de Cotunduba (na 
                    entrada da Baía da Guanabara, a uns quinhentos metros 
                    da orla da Praia Vermelha) onde ainda é possível 
                    matar peixes de médio porte, inclusive caçonetes.Há uma história pitoresca a respeito desses 
                    caniços com propriedades mágicas, isto é, 
                    traduzindo: com eles toda e qualquer pescaria dá certo. 
                    Foi assim: certa ocasião ele havia separado uns quatro 
                    ou cinco bambus e deixou-os encostados no rochedo para secar. 
                    Alguém, muito provavelmente um pescador gaiato, aproveitou-se 
                    da ausência do ermitão, foi até a clareira 
                    e pegou dois daqueles caniços parcialmente amarelados. 
                    Tentou utilizá-los dias depois e (pelo que se comentou) 
                    ficou furioso. Perdeu um dos caniços com molinete importado, 
                    isca luminosa etc arrastado, ao que se presume, por um peixe 
                    de grande porte. A outra vara simplesmente quebrou quando 
                    ele tentava puxar a linha que ficara presa nas rochas.
 ...Há outras histórias que ajudam a encorpar a breve 
                  biografia do ermitão da Praia Vermelha. Começo 
                  destacando que é mesmo difícil acreditar que existam 
                  pessoas capazes de furtar e/ou destruir o pouco do que dispõe 
                  uma pessoa pobre. Mas tem acontecido. E ele vem procurando manter 
                  a calma mesmo quando vê o seu espaço invadido, 
                  os papéis e as roupas rasgadas ou jogadas a esmo no chão, 
                  a carne dos cachorros misturada com terra...
 
 Poucas 
                  vezes eu o vi sair do sério. Certa ocasião - e 
                  muita gente na Praia Vermelha tem conhecimento disso - um dos 
                  empregados de um cantor e compositor famoso andou dando comida 
                  para os sagüis e dez ou doze deles animaizinhos morreram 
                  por causa disso. Gomes ficou furioso: "esses bichinhos 
                  demoraram quase dez anos até se aproximarem da orla da 
                  Pista Cláudio Coutinho. Eu pedi, implorei àquele 
                  sujeito para não dar comida. Ele repetiu, repetiu, repetiu 
                  e agora? Depois, não satisfeito, foi até o espaço 
                  que ocupo na clareira, quebrou coisas e jogou as minhas roupas 
                  no chão. O que eu faço com uma pessoa assim?" 
                  Disse-lhe para manter a calma e esperar a oportunidade de um 
                  flagrante. Eu mesmo me prontifiquei a passar alguns dias por 
                  lá, dormindo enrolado num cobertor sobre o platô 
                  da rocha.  Queria 
                  ajudá-lo a pegar o indivíduo (se possível, 
                  não escondo o jogo, aplicar-lhe uma surra de cipó) 
                  e entregá-lo à Polícia para as providências 
                  cabíveis. 
 De 
                  outra feita o próprio ermitão agiu como devia 
                  e na hora certa. Foi assim:  Gomes 
                  tem um cortador de unhas que mede doze polegadas e é 
                  afiado como navalha. Falo de um facão de mato que lhe 
                  dei de presente e que utiliza como ferramenta para abrir trilhas 
                  e cortar bambus, improvisar talas destinadas a imobilizar pernas 
                  e braços quebrados; que o ajuda a superar os obstáculos 
                  proporcionados pelas touceiras de espinheiros etc. A lâmina 
                  de aço rebrilha de tão limpa e, volta e meia, 
                  vejo-o passando sebo derretido para reduzir os pontos de oxidação 
                  decorrentes da maresia.
 Ele 
                  voltava para a clareira após um dia difícil, quando, 
                  de repente, percebeu um casal junto da figueira, semidespido 
                  e à vontade demais, em "plena saliência". 
                  "Vocês não têm vergonha? Não 
                  estão vendo que é um lugar habitado? É 
                  a minha casa, procurem outro canto agora!". O rapaz não 
                  pensou duas vezes: deixou a mulher deitada no chão e 
                  partiu para a briga, dizendo que era sargento pára-quedista 
                  do Exército e ia arrebentá-lo.
 Gomes 
                  recuou, esquivou-se do soco que quase lhe acerta o rosto (magro 
                  e franzino como é, seria facilmente derrubado) e puxou 
                  o facão. 
 - 
                  Gritei para ele: sai pra lá, caboclo! E mantive a ponta 
                  do facão apontada na direção do tal sujeito. 
                  Era um camarada muito forte, sei lá quantas vezes o meu 
                  tamanho. Daí, confiando na própria força, 
                  ele segurou a lâmina, para tomá-lo de mim. Olha, 
                  foi que nem manteiga. Bastou segurar o cabo com mais força 
                  e puxar um pouquinho. Abri uma lapa na mão dele. 
                  Daí, dei-lhe uma surra de chapa de aço igual àquelas 
                  de que se fala nos tempos de Lampião: e tome pranchada! 
                  Na cara, nos ombros, na bunda, nas pernas e nas costas. E o 
                  cara pulando e gritando. A mulher, coitada, fugiu apavorada 
                  tentando se compor".
 Segundo 
                  Severino Gomes o tal sargento pára-quedista desceu a 
                  trilha como gato assustado, se arranhando todo e ouvindo, dele 
                  próprio (Gomes), frases do tipo: "Se voltar aqui 
                  eu vou cortar é pra valer!" "Cabra safado!", 
                  "Valentão de merda!", "Cocô de avião!"...
 Não 
                  houve revanche. Aliás, o próprio ermitão 
                  desceu a trilha imediatamente e comunicou o fato ao oficial-de-dia 
                  na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Este 
                  levou o assunto ao comandante da EsCEME que não somente 
                  lhe deu razão como mandou prender o militar ferido (que 
                  fora procurar socorro na Policlínica da Praia Vermelha). 
                  
 Outro 
                  episódio interessante, desta vez comigo. Estávamos 
                  conversando ao pé da figueira quando, de repente, vi 
                  que o facão estava escorado numa raiz, meio de lado. 
                  Pensei na hipótese de um dos cães se cortar na 
                  lâmina afiada e o alertei. Nem tive tempo de me desviar. 
                  Gomes pegou a ferramenta e a arremessou numa raiz alta, a menos 
                  de um palmo do meu rosto. 
 - 
                  Ficou maluco! - gritei. 
 - 
                  Fique tranqüilo, irmão Argolo, meu Professor! Bêbado 
                  como estou eu atiro melhor. Jamais o acertaria, tenha certeza.
 E 
                  justificou-se: durante anos, nos momentos de tédio e 
                  sem ter o que fazer, em Pernambuco, treinava pontaria utilizando 
                  pedaços de vergalhão com as pontas aguçadas. 
                  Depois passou a fazê-lo com peixeiras, facões, 
                  facas próprias para churrasco, o que lhe dava na telha. 
                  Ainda hoje, volta e meia, repete as lições e, 
                  posso assegurar - mesmo com a vista já um pouco cansada 
                  - em vinte ou trinta arremessos à distância de 
                  dez, doze metros, acerta praticamente todos dentro de um círculo 
                  de giz da largura de um palmo.
 Além 
                  da esplêndida pontaria Severino Gomes é um mestre 
                  na confecção de armadilhas. Faz com cipó 
                  trançado e bambu, arame fino, corda comum, linha de pesca; 
                  prepara mundéus (fossos) de todos os tamanhos 
                  e larguras; sei de gente (não cito nomes) que aprendeu 
                  com ele e, depois, destacou-se nos cursos de guerra na selva 
                  ministrados pelo Exército a oficiais e sargentos. Sua 
                  técnica é primitiva. Primeiro ele olha à 
                  volta e escolhe um pequeno galho, uma raiz, alguma folha de 
                  palma cheia de espinhos; em seguida cria uma espécie 
                  de funil utilizando a própria vegetação, 
                  de modo que a caça não possa escapar e fica à 
                  espera. Faz isso para capturar pequenos roedores, principalmente 
                  ratazanas que tentam comer os seus parcos estoques de fubá, 
                  arroz, feijão e farinha de mandioca.
 Em 
                  toda a floresta que enfeita os morros da Urca e a base do Pão 
                  de Açúcar existe apenas uma nascente. Uma única 
                  fonte de água potável para todos os seres que 
                  ali vivem. Fica à meia distancia da clareira onde mora 
                  o ermitão, tomando como ponto de referência um 
                  caminho parcialmente escondido à direita da grande figueira. 
                  É um lugar misterioso, no coração da mata. 
                  Nada aconselhável para turistas ocasionais ou alpinistas 
                  curiosos tentando desbravar uma nova trilha.
 A 
                  primeira vez em que lá estive, na companhia do ermitão, 
                  fazia um calor de rachar. Era verão, assim por volta 
                  de uma hora da tarde. Por um desses desatinos, havíamos 
                  preparado e almoçado ótimos peixes assados na 
                  grelha, temperados apenas com sal grosso. Comida simples, saborosa 
                  mas danada para dar sede. A água da moringa acabara e 
                  somente havia um jeito: buscar mais. Descer a trilha que dá 
                  acesso à clareira e caminhar até a Praia Vermelha 
                  seria a melhor solução - embora mais demorada 
                  e calorenta.  Severino 
                  Gomes pegou duas garrafas vazias de refrigerante e resolveu 
                  andar até a nascente. Fui com ele e, nesta ocasião, 
                  testemunhei um dos estranhos destinadas a superar os obstáculos 
                  impostos pela natureza:  
                  A 
                    teia era mesmo grande e espessa. Vista à meia distância 
                    na semiclaridade da floresta parecia uma pintura viva. Maior 
                    do que um homem de estatura mediana. E ficava no meio da trilha 
                    que corta perpendicularmente a mata na encosta do Morro da 
                    Urca. O caminho é estreito e disfarçado pela 
                    vegetação espessa. Há touceiras e árvores 
                    cujos caules são cobertos de espinhos do tamanho de 
                    pregos médios. Uma espetada e, além da dor, 
                    febre certa. Um tronco apodrecido propositalmente ali deixado 
                    inclinado e cipós trançados bloqueiam parcialmente 
                    o acesso. Basta remover o tronco, baixar a cabeça e 
                    seguir em frente. Uma pessoa não muito gorda passa 
                    sem problemas. Mais cem metros, no máximo, e chega-se 
                    ao poço de água potável.Havia chovido naquela madrugada. Preservadas na umidade da 
                    floresta, algumas gotículas davam a impressão 
                    de brilhantes colados à teia. Bonito de ver, mas não 
                    de chegar perto. As aranhas eram dezenas, todas do mesmo padrão 
                    preto-amareladas. Uma colônia das maiores que tive a 
                    oportunidade de ver. Tínhamos duas opções: 
                    destruir aquela armação finíssima e matar 
                    o maior número de aranhas ou tentar a abertura de uma 
                    nova trilha paralela entre os espinheiros. Gomes optou por 
                    uma terceira via. A melhor de todas, suponho. Primeiro "rezou" 
                    a teia pronunciando algumas frases que não compreendi; 
                    depois, com um gesto rapidíssimo, enfiou a mão 
                    direita naquela massa de fios entremeados de insetos mortos 
                    e girou-a rapidamente em arco, no sentido dos ponteiros do 
                    relógio. O resultado disso foi uma espécie de 
                    cacho de aranhas que deixou sobre o núcleo de um tinhorão 
                    daqueles bem grandes. Passamos em paz. Na volta, meia hora 
                    depois, as aranhas haviam recomeçado o trabalho de 
                    recomposição da teia. Cada uma no seu pedacinho 
                    de árvore.
 Gomes: "Não poderia matá-las. Elas são 
                    como eu: guardiãs da floresta. Feias, talvez, para 
                    aqueles que não conhecem a função que 
                    exercem na natureza, mas... veja só a beleza da obra 
                    que estão reconstruindo", observou quando voltávamos 
                    à clareira.
 Um detalhe: a lâmina d'água da fonte natural 
                    estava coberta por uma fina camada de poeira. Próximo, 
                    bem próximo sobre algumas pedras chatas e lisas, velhas 
                    peles de serpentes. Sinal de alerta que repasso aos curiosos 
                    e desavisados.
 
                 Amigos... 
                  amigos
 "Cadê o meu pinguço?". "Como 
                  é que ele vai?". A pergunta, tão simples, 
                  reveste-se de certa cerimônia porquanto formulada após 
                  uma solenidade na Praia Vermelha pelo então ministro 
                  do Exército, General Zenildo Zoroastro de Lucena. Pernambucano 
                  como o ermitão e seu conhecido desde o tempo em que comandou 
                  a EsCEME, o general Zenildo - há alguns anos morador 
                  em um prédio discreto na Urca - é um homem afável 
                  e bem humorado, além de muito respeitado pelo profissionalismo 
                  e firmeza com que agiu no âmbito institucional. Graças 
                  às suas recomendações Severino Gomes continuou 
                  como guardião da floresta. Houve quem pretendesse tirá-lo 
                  de lá, sob a falsa justificativa de que estaria poluindo 
                  as matas. Essa iniciativa, porém, foi abortada quase 
                  imediatamente após o militar ter sido informado sobre 
                  a amizade do velho mateiro com o ministro do Exército.
 
 Mas 
                  existem outros nomes que devem ser lembrados. Em outras conversas 
                  Gomes citou os nomes de oficiais-generais com quem manteve boas 
                  relações no tempo em que comandaram a EsCEME: 
                  Paim Sampaio, Luciano Faliante Casalles. O ex-subprefeito militar 
                  da Zona Sul, coronel Jorge Mathuy, hoje trabalhando em um dos 
                  setores do Clube Militar (Centro da Cidade), também apreciava 
                  a prosa do ermitão. 
 Uma 
                  digressão:
 Há 
                  coisas inexplicáveis na Praia Vermelha, uma delas é 
                  a informalidade em um ambiente formal. Trata-se, penso, do único 
                  local destinado ao lazer no Rio de Janeiro patrulhado dia e 
                  noite pela Polícia do Exército. Isso, todavia, 
                  não impede que, nos últimos anos, as críticas 
                  de moradores e freqüentadores da Praia venham se avolumando 
                  no que tange aos quesitos limpeza, segurança (pasmem!) 
                  e poluição sonora.
 A 
                  areia está suja, os vendedores ambulantes em nada contribuem 
                  para assegurar produtos de qualidade à clientela, as 
                  vagas no estacionamento junto à orla vêm sendo 
                  ocupadas em escala crescente por automóveis caindo aos 
                  pedaços utilizados como depósitos de bebidas alcoólicas 
                  e refrigerantes, além de outros produtos, e denúncias 
                  sobre a venda de drogas (e até mesmo contrabando de armas) 
                  na região chegaram e continuam chegando ao conhecimento 
                  do Comando Militar do Leste. 
 Para 
                  culminar, "festas" improvisadas vêm sendo realizadas 
                  semanalmente ao ar livre com a utilização de parafernálias 
                  eletrônicas que tiram o sono daqueles que, no cumprimento 
                  das suas obrigações, têm que estar cedo 
                  no trabalho. E mais: denúncias em cascata apontam danos 
                  à floresta causados pela retirada (sem autorização 
                  do Ibama e/ou das autoridades militares) de bambus ainda verdes, 
                  posteriormente enterrados na areia servindo como cercas improvisadas 
                  isolando trechos da areia e beneficiando este ou aquele barraqueiro 
                  preocupado em expandir ilegalmente os seus "negócios".
 Nos 
                  últimos anos tenho conversado muito com Severino Gomes 
                  a respeito do desgaste proporcionado pela agressão à 
                  natureza e privatização do espaço público. 
                  Mais de uma vez ele foi ameaçado de morte por um desses 
                  indivíduos, quando o recriminou sobre a retirada dos 
                  bambus. Outro indivíduo, metido a esperto, utiliza parte 
                  da construção destinada aos guarda-vidas - no 
                  canto esquerdo da Praia Vermelha -, como depósito para 
                  cadeiras e outros objetos. São fatos que incomodam não 
                  somente o ermitão e seus amigos, mas todos aqueles que 
                  moram na região e exigem das autoridades providências 
                  imediatas.
 O 
                  que se percebe é a disseminação, acima 
                  de tudo, de uma conduta desrespeitosa para com as pessoas, que 
                  vem transformando a orla da Praia Vermelha numa quase-favela 
                  e fazendo com que os antigos freqüentadores procurem outros 
                  locais para conversar, longe da poluição sonora, 
                  da falta de limpeza etc. 
 ...Retomando à tentativa de trazer aos olhos do público-leitor 
                  detalhes pitorescos sobre o ermitão da Praia Vermelha:
 
 Ano 
                  após ano, centenas de oficiais-alunos dos cursos ministrados 
                  pela Marinha (Escola de Guerra Naval) e Exército (Instituto 
                  Militar de Engenharia, Escola de Comando e Estado-Maior e cursos 
                  de Administração e de Altos Estudos Estratégicos) 
                  deixam as salas de aula daqueles prédios históricos 
                  e são remanejados para regiões distantes do País.
 Com 
                  os suboficiais e praças que montam guarda àquelas 
                  instalações militares acontece a mesma coisa. 
                  Todos acabam conhecendo o guardião das matas do Morro 
                  da Urca e do Pão de Açúcar e, passado algum 
                  tempo (um, dois meses, no máximo), já não 
                  estranham mais aquele pernambucano humilde e de fala mansa.
 Um 
                  pouco mais do meu testemunho.
 Durante 
                  as viagens que faço pelo Brasil, quase sempre no exercício 
                  do magistério especializado no campo da Comunicação, 
                  é comum encontrar alguém que residiu algum tempo 
                  no Rio de Janeiro e daí começar uma conversa. 
                  Em Imperatriz (Maranhão), por exemplo, um dos oficiais 
                  classificados no Batalhão de Infantaria de Selva ali 
                  instalado - unidade que pude visitar durante algumas horas - 
                  lembrou-se do Sem Futuro Gomes e lhe mandou um abraço.
 Em 
                  Juiz de Fora (Minas Gerais) uma colega excelente professora 
                  de cinema assim definiu o ermitão: "trata-se de 
                  uma personalidade quase anônima e fascinante". À 
                  sua maneira simples e rude, Severino Gomes da Silva transformou-se, 
                  com o tempo, num filósofo diletante. O isolamento no 
                  coração da mata fez com que perdesse a inibição 
                  de conversar em voz alta consigo mesmo. Algo que muitas pessoas 
                  costumam fazer tão-somente quando estão dirigindo 
                  ou sozinhas em casa.
 Ao 
                  longo de todos esses anos muitas vezes eu o surpreendi na clareira 
                  falando alto como se estivesse discutindo (e estava!) enquanto 
                  caminhava gesticulando muito de um lado para o outro. Numa dessas 
                  ocasiões o assunto, imediatamente interrompido quando 
                  me viu aproximando, era a importância do uso do chá 
                  de cipó-cravo para fins medicinais. De outra, buscava 
                  uma explicação sobre a temeridade dos jovens alpinistas 
                  que desafiavam as encostas do Pão de Açúcar 
                  durante um temporal. 
 A 
                  mais pitoresca, talvez, foi quando encontrei casualmente com 
                  ele no início de uma noite de outono, junto ao marco 
                  (350m) que assinala o início da trilha mais conhecida 
                  do Morro da Urca. Estava sem camisa, munido de uma lanterna 
                  e empunhando o facão de doze polegadas. Retornava de 
                  uma incursão na floresta, na tentativa frustrada até 
                  aquele momento de localizar um casal de adolescentes que se 
                  perdera. Reclamava ele da maluquice dos jovens.
 Lembrei-me 
                  naquele instante, nem sei por qual motivo, da figura de Diógenes, 
                  também chamado o Cínico (413-323 a.C.), 
                  em sua busca incessante pela verdade. Nascido em Sinope (Grécia), 
                  Diógenes desprezava as riquezas e convenções 
                  sociais. Andava descalço, tinha tão-somente uma 
                  túnica, dormia eventualmente junto aos pórticos 
                  das casas e a sua casa era um tonel que fora abandonado. Consta 
                  que, certa ocasião (na cidade de Corinto), Alexandre 
                  da Macedônia foi visitá-lo acompanhado de alguns 
                  dos seus generais e lhe perguntou o que poderia fazer para ajudá-lo. 
                  Ao que Diógenes respondeu: "peço-te que saias 
                  da frente do tonel, pois estás impedindo a entrada do 
                  sol". 
 De 
                  outra feita, em Atenas, viram-no passear à luz do dia 
                  pelas ruas da cidade carregando uma lanterna acesa. Quando lhe 
                  indagaram a razão daquele estranho comportamento, ponderou: 
                  "ando à procura de um homem" (isto é: 
                  daquele indivíduo que seria capaz de espelhar a sabedoria 
                  humana no seu esplendor).
 Desprovido 
                  do ódio contra a humanidade claramente evidenciado pelo 
                  filósofo grego durante as suas preleções, 
                  Gomes-Diógenes é, além disso, um 
                  estóico. As aventuras na mata e mesmo fora dela deixaram 
                  muitas cicatrizes no seu corpo cansado. Certa ocasião 
                  colhia mangas junto à Pista Cláudio Coutinho 
                  quando, de repente, um enorme galho parcialmente rachado pela 
                  força dos ventos quebrou de vez e despencou caiu sobre 
                  ele.  Resultado: 
                  fratura do fêmur direito e luxação na clavícula 
                  esquerda. Foi socorrido por praticantes de jogging e 
                  levado ao Hospital Público mais próximo, onde 
                  ficou internado com a perna imobilizada. Enfrentou as dores 
                  com dignidade e quando, após alguns meses, finalmente 
                  deixou o leito e ultrapassou os limites impostos pelas inúmeras 
                  e dolorosas sessões de fisioterapia, sua maior alegria 
                  foi rever a velha clareira e os cães (alimentados durante 
                  todo aquele tempo pelos amigos e alguns pescadores).
 Conversar 
                  com o ermitão é sempre reconfortante. Sem revelar 
                  nomes, porquanto essas pessoas poderiam ficar sem graça, 
                  volta e meia eu o encontro batendo-papo com jovens casais de 
                  classe média que vão à clareira em busca 
                  de orientação. Outros o acompanham em suas rezas, 
                  buscando sintonia com a floresta. O povo da Praia Vermelha (na 
                  verdade poucas pessoas ali nascidas ou criadas) como nos referimos 
                  uns aos outros, sabe que, naquele espaço mágico, 
                  tudo é admissível, menos a covardia, o desrespeito 
                  e a falta de caráter. 
 Uma 
                  história... dentre as tantas:
 
                  Foi 
                    num final de tarde. Setembro, outubro...faz muito tempo. Gomes 
                    estava sem pressa. Possivelmente passaria a noite em claro, 
                    pescando: xereletes. Voltara há pouco do mercado onde, 
                    com os poucos trocados de que dispunha, comprara um pacote 
                    de biscoitos. Na época ele tinha três cachoros: 
                    Tamba, June e Rocha.. Tamba, o mais velho, era um bom rastreador, 
                    estava quase cego por causa da catarata. June era muito dócil 
                    e o último, como assinalado, veio somar-se à 
                    "família". Sentamos para conversar. No asfalto 
                    mesmo, bem próximo à entrada do estacionamento 
                    privativo dos oficiais-instrutores da Escola de Comando e 
                    Estado-Maior do Exército. Não havia perigo de 
                    atropelamento porque o local estava quase vazio; ali ficamos 
                    algumas horas. O assunto girava em torno da força do 
                    vento sudoeste, sua influência sobre o comportamento 
                    dos peixes no mar agitado. De repente deu fome. Muita fome. 
                    Naquela época, era proibida a venda de salgadinhos 
                    e/ou sanduíches e a Polícia do Exército 
                    retirava os vendedores que agiam na orla sem maiores explicações. 
                    Abrimos o pacote de biscoitos e começamos a comê-los, 
                    dividindo com os animais. Homens e cães compartilhando 
                    a mesma refeição. Era engraçado observar 
                    as pessoas passando e olhando com desdém aquela estranha 
                    cena: os bichinhos saltitantes comendo com voracidade enquanto 
                    conversávamos. De repente passaram algumas pessoas 
                    vindas da Pista Cláudio Coutinho. Observaram-nos e 
                    uma delas comentou: puxa, essa gente não tem a menor 
                    noção do que seja espaço. Comem aí, 
                    no chão... Cometeram 
                  um erro. Um erro crasso de avaliação. Superestimaram, 
                  talvez, a própria condição social. As pessoas 
                  comem onde podem. Ali era o nosso espaço. O portão 
                  da floresta. A casa de Severino Gomes. Notas [1] 
                  Escrever sobre uma personalidade da vida pública, seja 
                  ela um político, educador ou artista popular é 
                  quase sempre fácil. Os registros são vastos, férteis 
                  as fontes de informação: jornais, revistas, fotografias, 
                  depoimentos videocinegravados etc. Dos homens simples, cidadãos 
                  comuns; dos bêbados, loucos e deserdados sem outro documento 
                  que não a cédula de identidade ou o título 
                  eleitoral, o que sobra são migalhas de informações. 
                  Algumas lembranças do dono do bar, do porteiro do prédio 
                  próximo, do jornaleiro...
 Por 
                  pouco Severino Gomes da Silva não se enquadra na categoria 
                  dos impossíveis, tamanha a resistência demonstrada 
                  por ele próprio em falar a respeito das coisas que fez. 
                  Vive só, literalmente só, perdeu quase todos os 
                  documentos durante alguma das tantas bebedeiras em que se meteu, 
                  ou (quem sabe?) guardou em um cantinho da clareira que lhe serve 
                  como refúgio, esqueceu o local exato e, de alguns, teve 
                  que tirar segunda via... que também perdeu!
 Felizmente 
                  a memória é boa; o raciocínio e as palavras 
                  fluem organizadas.
 Seu 
                  maior problema, penso, é a displicência. A preguiça 
                  em arrumar as coisas que, vez por outra, ganha como presentes: 
                  roupas usadas, sapatos em bom estado, ferramentas...
 Quanto 
                  aos livros, tem alguns que lhe foram doados. Todos protegidos 
                  da chuva e do vento em um pequeno vão da rocha. Prefere 
                  aqueles relacionados com a evolução do espírito 
                  e as coisas da natureza. Alan Kardec, Chico Xavier, a Bíblia, 
                  coletâneas sobre as propriedades curativas das ervas (muitas 
                  ele cultiva de modo precário junto à clareira: 
                  boldo, alecrim, quebra-pedra. capim cidreira etc; outros produtos 
                  ele recolhe aqui e acolá durante suas caminhadas na floresta: 
                  cipó- cravo, agrião, hortelã...).  [2] 
                  Certa ocasião ganhou de presente um pequeno barco de 
                  madeira. Serviria para ajudá-lo a conquistar uns trocados 
                  obtidos com o produto da pesca. Mas a ferramenta de trabalho 
                  não durou uma semana. Entre os pescadores da Praia Vermelha 
                  circulam duas versões sobre o que aconteceu.
 De 
                  acordo com a primeira, Gomes teria deixado a embarcação 
                  mal apoitada (isto é, ligada a um bloco de concreto 
                  deixado no fundo do mar por intermédio de uma corda) 
                  e, como naquela madrugada o mar estava muito agitado, o cabo 
                  de amarração rompeu ou soltou-se e o barco foi 
                  lançado contra as pedras, afundando.
 A 
                  segunda: a pequena embarcação teria sido furtada 
                  por gente de fora (estranhos à comunidade da Praia 
                  Vermelha) durante aquela madrugada, levada para outro local, 
                  lixada e repintada. Creio ser mais provável esta versão. 
                  Até porque, segundo mergulhadores, tanto a poita 
                  de concreto como a corda de amarração estavam 
                  intactas. 
 *José 
                  Amaral Argolo é jornalista e advogado, pós-graduado 
                  em jornalismo e em ciência política, mestre em 
                  filosofia, doutor em comunicação e cultura e, 
                  como bolsista do CNPq, pós-doutor em jornalismo pela 
                  Escola de Comunicações e Artes da Universidade 
                  de São Paulo. É Professor Adjunto Nível 
                  IV do Quadro Permanente da Escola de Comunicação 
                  da UFRJ e ex-diretor daquela unidade de ensino.  
                 **Autorizada 
                  a reprodução parcial desde que identificado o 
                  autor do texto original por seu nome completo e a observação: 
                  "Exclusivo para a Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro 
                  (ECA-USP)".
 
 
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