Danton
Jobim:
No rastro da Operação Condor
Por José
Amaral Argolo*
Prelúdio
sobre o chá da meia-noite
Quem é do ramo; isto é, aqueles que militaram
na reportagem policial entre os anos quarenta, estendendo-se
até meados dos anos oitenta; antes, portanto, da
chamada Nova República presidida pelo Sr. José
Sarney, sabem que uma das práticas comuns a todos
os grupos de extermínio que operavam semiprotegidos
pelo véu da impunidade era proporcionar aos criminosos
mais violentos, feridos, ou mesmo capturados durante confrontos
armados, um ponto final indetectável pela Imprensa
encarregada de reverberar as ações policiais.
Assim aconteceu, por exemplo, quando Liéce de Paula
Pinto e seu cúmplice Nijini Renato Villar Lírio
(irmão mais novo de Lucio Flávio, bandido
famoso no início dos anos setenta) foram localizados
em seu esconderijo, na Rua General Góis Monteiro
em Botafogo por uma equipe de fogo da Delegacia de Entorpecentes
(à época instalada no Alto da Boavista,
Zona Norte do Rio de Janeiro) e mortos a tiros.
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Reprodução

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Para
dar a impressão de que se travara violento tiroteio entre
os bandidos e a Polícia, contam alguns dos que participaram
da caçada aos criminosos, os cadáveres de Liéce
e Nijini foram transportados em um Karmann Ghia (veículo
esportivo produzido em série pela Volkswagen do Brasil)
para a Avenida Princesa Isabel em frente ao Hotel Plaza (Copacabana)
e ali, diante de dezenas, talvez centenas de transeuntes assustados
além dos moradores locais que acorreram às janelas,
foram novamente metralhados pelos agentes sob as ordens do inspetor
Gargaglione, considerado à época um dos ases da
Polícia Carioca.
Neste
episódio somente agora revelado em detalhes, o objetivo
implícito era proporcionar aos leitores, ouvintes e telespectadores
uma visão oblíqua e espetacular sobre os fatos
de maneira a incorporá-la definitivamente no imaginário
coletivo. Tudo isto, registre-se, aconteceu durante um período
não muito distante do tempo presente, em que pontificavam
operações autorizadas e/ou clandestinas, muito
bem orquestradas contra os grupos da Esquerda Armada que se
opunham ferozmente ao regime militar.
A
crônica policial muitas vezes multiplica os efeitos do
caldo da violência e, deliberadamente, confunde a Opinião
Pública, direcionando as reportagens para ampliar as
vendas nas bancas e a audiência dos blocos de noticiário.
Muito mais inteligente e violento que Lucio Flávio, planejador
minucioso e implacável na aplicação do
que interpretava como a sua própria justiça, Liéce
de Paula Pinto comandava o bando com mão-de-ferro. No
plano pessoal, porém, era vaidoso, gostava de vestir
roupas caras, elegantes, compradas nas melhores lojas e, quando
almoçava ou jantava nos restaurantes, era atendido sempre
pelo mesmo garçom, de sua confiança (que o acompanhava
onde quer que fosse), e a quem cabia provar os pratos antes
de serem levados à mesa.
Liéce
de Paula Pinto podia ser considerado, de fato e de direito,
o Inimigo Público Número 1 da Polícia Fluminense.
Lúcio Flávio, melhor dizendo, Noquinha (apelido
afetuoso restrito aos parentes e amigos de infância),
seu irmão Nijini Renato, o cunhado Fernando Gomes de
Carvalho (Fernando C.O.), Rivaldo Morais Carneiro, o Martha
Rocha, Francisco Rosa da Silva, o Horroroso, Julio Augusto Dieguez,
o Portuguesinho, Michelle Cristille e Wilson dos Santos Pinto,
o Wilsão, integravam o bando, acrescido aqui e acolá
por outros cúmplices menos expressivos.
Martha
Rocha, Antonio Branco e Horroroso foram igualmente metralhados
e mortos tempos depois, durante uma rebelião no Presídio
Evaristo de Moraes Filho (antigo Galpão da Quinta da
Boavista, local onde era processada a triagem dos presos antes
de sua remoção para os presídios de maior
segurança) depois de assassinar friamente o diretor daquela
unidade prisional, coronel PM Darci Bittencourt, que ficara
como refém.
Após
as execuções de Liéce e Nijini, como visto
acima, em moldes quase cinematográficos pela Polícia,
os remanescentes do bando foram igualmente capturados e mortos
durante rebeliões nos presídios ou empreitadas
habilmente dissimuladas. O penúltimo a tombar foi Fernando
C.O., que estava recolhido no Complexo Prisional Frei Caneca,
no Centro do Rio de Janeiro (o último remanescente foi
Júlio Augusto Diegues, o Portuguesinho, cuja sanha criminosa
não terminou após o esfacelamento do bando. Tempos
depois, auxiliado pelo assaltante e homicida apelidado Lobisomem,
estrangulou dois bandidos rivais no interior da carceragem da
antiga Divisão de Roubos e Furtos, em Benfica, onde estava
recolhido após recaptura efetuada pela equipe do delegado
Arnaldo de Poli Campana).
Corajoso
e respeitado como um dos maiores motoristas de quadrilha de
todos os tempos, Fernando C.O. apresentava um perfil diverso
dos demais: era afável com todos, inclusive os jornalistas,
e tinha como principal hobby a pintura de telas a óleo.
Sobre
o assassinato de Fernando C.O., o autor destas linhas foi o
primeiro jornalista a chegar ao presídio e, devido às
relações de amizade que mantinha e ainda mantém
com a Direção e funcionários do Departamento
do Sistema Penitenciário (Desipe), viu não somente
o corpo ensangüentado da vítima antes que fosse
transportada para o Instituto Afrânio Peixoto (IML), como
o estoque (de aproximadamente trinta centímetros de comprimento)
confeccionado artesanalmente a partir de um vergalhão
de aço afiado, com fita gomada na extremidade que servia
como cabo. Ainda presos a esta, alguns pêlos do peito
da vítima.
Foi
mais um episódio violento que ter poderia sido encomendado
- policiais comentaram na época - pelo arqui-rival de
Lúcio Flávio, Nijini e Fernando C.O.: o ex-detetive
Mariel Moryscotte Araújo de Matos - condenado por integrar
um grupo de extermínio e recolhido na antiga Unidade
Especial do Presídio Milton Dias Moreira.
Fernando
C.O. seria libertado em breve e, este fato, poderia contribuir
quase imediatamente para a morte de Mariel. Aliás, em
diversas ocasiões, o ex-detetive integrante da equipe
denominada Homens de Ouro da Polícia Carioca, precisou
defender-se com unhas e dentes para não ser trucidado
no interior do presídio.
Ambicioso
e violento, Mariel teve também um final trágico
tempos depois e, com ele, foram para o túmulo muitos
segredos de um dos mais ativos esquadrões da morte da
Polícia Fluminense. Como repórter do Globo compareci
ao velório e ao sepultamento no Cemitério do Caju
do ex-detetive e aprendiz de contraventor executado com uma
rajada de submetralhadora Ingram calibre nove milímetros
(de fabricação norte-americana), na Rua Alcântara
Machado, Centro do RJ, em frente ao sobrado de onde o banqueiro
do jogo-do-bicho Raul Corrêa de Melo, o Raul Capitão,
comandava os negócios.
Quanto
a Raul Capitão e seu filho Marcos, bem como uma pequena
parcela da cúpula da contravenção fluminense
(excetuados Castor de Andrade, Kalil Petrus Kalil, o Turcão,
Anísio Abraão David e o ex-capitão do Exército
Brasileiro Ailton Guimarães Jorge, previamente alertados
sobre o contrato de morte por um policial dublê de pistoleiro
avulso que trabalhava para um dos cardeais do jogo), também
seriam assassinados.
À
execução em plena via pública de Mariel
Moryscotte correspondeu uma seqüência de homicídios
que se estendeu durante meses e somente baixou de intensidade
quando os cadáveres crivados de balas, enforcados ou
mutilados começaram a aparecer nos bairros da Zona Oeste,
imensa área suburbana sob a influência do Sr. Castor
de Andrade, patrono do Grêmio Recreativo e Escola de Samba
Mocidade Independente de Padre Miguel, ainda hoje identificado
equivocadamente por parte da mídia como o Rei da Contravenção
no Rio de Janeiro.
Castor,
homem educado, risonho e popular, era poderoso de fato, mas
- à semelhança dos demais - tinha como anteparo
Kalil Petrus Kalil, o Turcão, este sim o maior banqueiro
de descarga do Rio de Janeiro: discreto, respeitado entre os
pares e conhecido pela severidade e eficiência nas ações
sob seu comando.
Vivíamos
então sob o governo do Sr. Antonio de Pádua Chagas
Freitas (MDB). Eleito quatro vezes deputado federal e duas vezes
governador do Estado do RJ (por intermédio de eleições
indiretas); proprietário dos jornais O Dia e A Notícia
(o primeiro campeão de vendas nas bancas), Chagas Freitas
era o maestro de uma pequena, porém combativa, bancada
na Assembléia Legislativa: Miro Teixeira, Jorge Leite,
Bambina Bucci, Átila Nunes e outros parlamentares mais
ou menos cotados seguiam as suas instruções. O
próprio Senador Danton Jobim - objeto de análise
do presente trabalho - lhe emprestou apoio integral durante
longo período. Principalmente na fase que antecedeu a
fusão entre os estados da Guanabara e o Rio de Janeiro.
"Meio
passo à frente, dois passos atrás..."
"As
embolias são descritas nos compêndios de Medicina
Legal como obliterações dos órgãos
e ou vasos "especialmente uma artéria: ou por
um corpo estranho líquido, sólido, gasoso, chamado
êmbolo. Não se pode admitir que a introdução
de ar na corrente circulatória durante injeção
intravenosa cause acidente embólico, pois tem sido
demonstrada, clínica e experimentalmente, a enorme
tolerância do organismo à introdução
de grande quantidade de ar. Não é assim, contudo,
quando grande volume de ar é introduzido acidentalmente
após término de venóclise em que, por
descuido, não se desligou o sistema perfusor; ou na
secção dos grandes vasos do pescoço,
das axilas, da pélvis, em que o êmbolo gasoso
impede a circulação do sangue pelas artérias
pulmonares e, conseqüentemente, a hematose, acarretando
síndrome de asfixia aguda, manifestada por cianose,
edema dos pulmões, dispnéia intensa, estado
de choque etc, durante minutos ou horas após o trauma,
ou morte súbita".
Delton
Croce e Delton Croce Júnior, Manual de Medicina Legal,
Saraiva, São Paulo, 2004, p. 263-264.
Dentre
as técnicas de tortura utilizadas nas antecâmaras
do aparato repressivo brasileiro, algumas podem ter escapado
à memória dos militantes da Esquerda Armada e/ou
deixaram de ser publicizadas na Imprensa, pela simples razão
de não haver sobreviventes entre os que passaram pelas
prolongadas sessões de interrogatório, onde as
injeções de escopolamina (ou pentotal sódico)
eram consideradas "sofisticadas demais"e cediam lugar
ao pau-de-arara, pimentinhas (máquinas para produzir
eletrochoques) e a outras ferramentas de uso médico ou
mesmo industrial, incorporadas ao cotidiano dos torturadores.
Refiro-me às torqueses em brasa (muito comuns durante
o tenebroso período da Inquisição Espanhola),
machados, martelos, maçaricos (centenas de experiências
deste gênero foram efetuadas durante a Guerra de Libertação
da Argélia pelos contingentes do Regimento Leopardos,
sob o comando do general Jacques Massu (ver, a propósito,
ARGOLO, José Amaral e FORTUNATO, Luiz Alberto Machado,
Dos quartéis à espionagem - Caminhos e Desvios
do Poder Militar. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, 248 p.).
Ou, ainda, às pinças, afastadores cirúrgicos,
micro-serras e bisturis, que, como os instrumentos acima citados,
também deixavam marcas nos corpos das vítimas
(dizem que, exatamente para evitar constrangimentos futuros,
os interrogadores do Serviço Secreto - KGB, na antiga
União Soviética nunca deixavam sobreviventes e
ou permitiam que os caixões fossem abertos de modo a
que os parentes pudessem constatar as violências perpetradas).
A "tecnologia" aplicada para forçar pessoas
consideradas "especiais" a informar tudo o que sabiam;
isto é, aqueles indivíduos capazes de, na hipótese
da pseudoliberdade próxima, gerar efeitos colaterais
ainda mais desastrosos à imagem do Regime - e que morriam
de parada cardíaca, falência múltipla dos
órgãos etc - resultava, quase sempre na elaboração
de relatórios médico-legais superficiais, ou -
hipótese ainda mais adversa, laudos intencionalmente
falhos - elaborados com displicência
que passavam desapercebidos aos advogados das famílias
dos presos e ao conhecimento da Opinião Pública.
Tais documentos (Autos de Exame Cadavérico) firmados
sempre por dois ou três legistas confirmavam tais óbitos
como decorrentes de disparos de armas de fogo durante confrontações
com as equipes de segurança, quedas "acidentais"
observadas durante fugas e transporte dos presos ou, ainda,
atropelamentos em circunstâncias misteriosas que mascaravam
as sevícias.
Exemplo a ser lembrado é o do estudante de Medicina,
Charles Chael Schreier, 23 anos, militante da organização
de esquerda Vanguarda Armada Revolucionária - VAR Palmares.
Preso à disposição do Regimento Escola
de Cavalaria e interrogado na Companhia de Polícia de
Exército, ambos localizados na Vila Militar (Zona Norte
do Rio de Janeiro), ele morreu em 1969, durante uma dessas intermináveis
sessões de pancadaria, e o seu cadáver: o rosto
desfigurado, o corpo repleto de equimoses, foi restituído
à família para que cuidasse do sepultamento.
Neste, e em alguns outros episódios, a Imprensa chegou
a ser comunicada e pôde registrar os ritos fúnebres.
Mas a destinação final de muitas outras pessoas,
engajadas (ou não) na resistência armada contra
o regime até hoje permanecesse oculta por uma densa camada
de neblina. Estas, muito provavelmente, foram vítimas
do chamado chá-da-meia-noite, cujo diagnóstico
era - e ainda hoje é assim - de difícil comprovação.
Dentre os métodos de supressão da vida humana
com requintes de perversidade não explícitas aos
olhos dos leigos, de acordo com as mesmas fontes reservadas,
destacavam-se a: Sopa de Legumes "enriquecida" com
Bambu Ralado, ou este mesmo produto misturado à farinha
de mesa grossa servida com o feijão e arroz diários
constituía um complemento mortífero.
Pedaços
de taquaruçu ou outro representante da família
dos bambus passavam pelo ralador fino (preferencialmente aqueles
utilizados pelas indústrias de beneficiamento da madeira,
de fácil obtenção); em seguida, eram batidos
no liquidificador com pedaços de legumes, carne e transformados
num caldo grosso temperado. Uma vez digeridas pelo "paciente"
(geralmente debilitado após horas de interrogatório
mesmo sem pancadas, mas sob a luz cegante ou temperaturas oscilando
entre calor intenso e temperaturas abaixo de zero grau) essas
aparas mínimas de bambu ficavam cravadas na parede do
esôfago, estômago, duodeno e, principalmente, nos
intestinos.
Tais micro-farpas produziam hemorragias impossíveis de
tratamento, tamanha a quantidade de pontos lesionados e a extensão
das áreas atingidas. Assim, sem apresentar quaisquer
vestígios externos de violência o prisioneiro morria
por conta do sangramento junto com as fezes; era necropsiado
em seguida e as vísceras removidas e encaminhadas para
"exames complementares". Daí, como a tecnologia
dos exames laboratoriais para confirmar se o DNA daquele esôfago,
estômago, duodeno ou intestino era mesmo de João
*** ou Maria *** (aqui representados por criptogramas), era
precária ou não existia, os laudos podiam ser
mascarados à vontade.
Outra técnica (mais discreta) destinada à supressão
da vida, num período histórico em que as Organizações
Não Governamentais ainda engatinhavam, era praticada
- segundo fontes policiais - com a ajuda de auxiliares infiltrados
entre os profissionais do serviço de saúde em
alguns hospitais da rede pública ou certas clínicas
particulares localizadas na periferia dos grandes centros urbanos.
Não podemos, salvo por intermédio de provas contundentes,
identificá-las ou incluí-las numa relação,
sob pena de incidirmos em erro. Mas como tudo é possível
neste imenso País chamado Brasil. E como, há poucos
anos, pelo menos um enfermeiro lotado no Hospital Salgado Filho
(Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro) foi preso, admitiu
sua culpa e acabou condenado por prática de eutanásia
em pacientes terminais, não faz sentido duvidar.
Bastava, por hipótese, que a pessoa - objeto do "tratamento
especial" - estivesse ali internada para recuperação
pós-cirurgia de emergência ou acompanhamento clínico.
Exatamente nesta fase costumam acontecer as "recaídas"
e mortes misteriosas que, dois, três meses depois, sequer
voltam a ser mencionadas pelos órgãos de difusão.
Tudo vira esquecimento, tudo perde força e intensidade
diante dos fatos que se sucedem nas metrópoles ou em
regiões mais distantes dos centros de decisão
no País.
Trato, neste parágrafo, e ainda que en passant, das injeções
de ar, medicamentos com efeitos coagulantes de efeito rápido
e outras substâncias capazes de provocar paradas cardíacas,
embolias etc. Daí, consumada a cirurgia ou o tratamento
de choque para a recuperação, digamos, de um Acidente
Vascular Cerebral, Infarto ou Politraumatismo, com o paciente
sedado e sem testemunhas capazes de comprovar a presença
momentânea de estranhos na enfermaria ou quarto de hospital,
bastam um ou dois minutos para a aplicação de
alguns centímetros cúbicos de ar no tubo de plástico
transparente do soro, bloquear a passagem do líquido
durante alguns segundos, substituí-lo por outro novo
e desfazer-se do antigo jogando-o no lixo misturado a outros
resíduos, ou destruindo-a com álcool/éter
inflamado. Operação simples, rápida e que
pode ser finalizada em qualquer sala vazia. Quem foi? Quem viu?
Ninguém poderá dizer.
Existia (talvez ainda possa ocorrer) ainda um terceiro método,
mais selvagem e doloroso, mas este ficava restrito aos grupos
de extermínio com atuação nas regiões
mais distantes dos grandes centros urbanos. Sangrar a vítima
sem, contudo, provocar qualquer corte ou lesão externa.
Deixá-la seca por intermédio da introdução,
no ânus, de um sabugo de milho deixado semanas curtindo
em molho concentrado de pimenta. Neste caso, o único
esforço para os algozes está em recolher os litros
de sangue derramado sem parar em baldes de plástico e
despejá-los na bacia sanitária. Somente um perito-legista
poderá detectar a causa da morte. Quanto ao diagnóstico,
será quase invariavelmente anemia aguda.
A
voz e a morte do Senador
"Em
vão clamei ao Senado, nestes últimos dois anos,
contra a ameaça de uma Fusão precipitada, uma
Fusão que ninguém pediu, ninguém quer.
Hoje assisto, com o coração angustiado, não
apenas ao estrangulamento da economia carioca, mas aos funerais
da Federação. Esta é uma hora de luto
para a Guanabara e para o Brasil."
Senador
Danton Jobim. Revista de Direito da Procuradoria, 1975, p.
415.
Há exatos trinta anos (1975) era consolidada a Fusão
entre os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Ainda hoje,
e principalmente agora, a Imprensa Fluminense reverbera negativamente
os efeitos desta união entre duas unidades díspares
da Federação. A primeira, considerada nos anos
setenta por sua forte rede hoteleira, praias despoluídas,
ainda não deformada pelo quantitativo imenso de favelas
e Cidade-Estado irradiadora de algumas das mais importantes
manifestações culturais do País. O segundo
(RJ), muito maior no quesito extensão territorial, limitado
a duas grandes indústrias (Petrobrás, em Duque
de Caxias) e Companhia Siderúrgica Nacional (Volta Redonda),
e pródigo nos vazios populacionais, principalmente no
Norte Fluminense.
Ao longo desse período, o quadro político e as
variáveis econômicas, (justiça seja feita),
foram alteradas para melhor, no Norte, Regiões Serranas
e Sul fluminenses. Muito especialmente devido ao boom da indústria
petrolífera e petroquímica. O Rio de Janeiro (Capital),
tornou-se uma cidade turbada pela violência em patamares
jamais cogitados durante o Governo Ernesto Geisel; isto é,
superada a fase mais traumática da repressão.
Mas este é um estudo que demandará tempo maior
e outros indicativos ultracomplexos para a sua interpretação.
O que preocupa, no presente trabalho, é a suspeita de
que o polemista-paladino da Guanabara; o professor do curso
de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia, que em muito
contribuiu para o repensar sobre o papel da Imprensa brasileira,
o ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa
num dos momentos mais nebulosos e violentos da História
do Brasil possa sido morto em circunstâncias ainda não
esclarecidas, nos rastros da Operação Condor.
Reproduzo,
abaixo, quadro-resumo elaborado por Nilson Mariano (in As Garras
do Condor. Petrópolis, Vozes, 2003, 234 p.), sobre o
número de mortos e desaparecidos no Cone Sul.
Argentina
(1976-1983) |
8961
mortos e desaparecidos (dados oficiais) ou 30 mil (entidades
de Direitos Humanos); |
Brasil
(1964-1979) |
366
mortos e desaparecidos; |
Chile
(1973-1990) |
2011
mortos e 1185 desaparecidos; |
Paraguai
(1954 -1989) |
1
mil e 2 mil mortos e desaparecidos; |
Uruguai
(1973-1984) |
297
mortos e desaparecidos. |
As
estatísticas contidas neste quadro-resumo referem-se
aos episódios documentados e obrigatoriamente derivados
das ações violentas perpetradas pelos agentes
do aparato repressivo dos governos nos Estados Nacionais citados.
Excluem, por exemplo, o que aconteceu em outras nações
vizinhas à linha de fronteiras com o Brasil e onde, também,
as forças de autodefesa foram mobilizadas para intervir
na luta contra as organizações da Esquerda Armada.
Tais como a Bolívia (onde, o comandante guerrilheiro
argentino de nascimento Ernesto Che Guevara e sua coluna foram
dizimados na quebrada [curva] do Rio Yuro, em outubro de 1967),
e o Peru (principalmente na região de Ayacucho, base
de operações do grupo Sendero Luminoso, de tendência
maoísta).
Peru e Bolívia, no entanto, ficaram de fora da Operação
Condor. Meras filigranas políticas. Mas é fato
que os seus governos tiveram conhecimento das incursões
guerrilheiras. Ernesto Che Guevara, por exemplo, quando entrou
no território boliviano para a sua última tentativa
de implantação de focos da guerrilha em território
da América do Sul, esteve o tempo todo sob monitoração
discreta dos órgãos de Inteligência do Exército
Brasileiro, que, aliás, repassou os dados para os Rangers
bolivianos, isto é, as tropas especiais que o localizaram,
capturaram e assassinaram na região de La Higuera.
De todo modo, as estatísticas oficiais e oficiosas supra-assinaladas,
deixaram de lado um razoável quantitativo de ossadas
até hoje não identificadas, de episódios
dissimulados, perdidos no labirinto das centrais de informações,
de dossiês excluídos e/ou incinerados, de processos
apreciados tangencialmente pelos órgãos do Judiciário
devido à falta de provas, de rastros parcial ou integralmente
apagados ao longo de trinta anos.
Até então, escaparam ou apresentaram leituras
oblíquas por parte das lentes da repressão, ao
menos quatro episódios envolvendo personalidades da vida
pública brasileira. Senão vejamos: o seqüestro,
tortura e morte do deputado Rubens Beirodt Paiva, no Rio de
Janeiro (fato este conhecido mas não admitido formalmente
pelas centrais de inteligência das FFAA); as mortes dos
ex-presidentes João Belchior Marques Goulart (informações
recentes apontam como causa provável para o falecimento
a impregnação de veneno nos medicamentos que vinha
tomando para insuficiência cardíaca) e Juscelino
Kubitschek de Oliveira (vítima de acidente durante viagem
que fazia de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em seu automóvel
particular) e da estilista Zuzu Angel, 55 anos (amiga de D.
Yolanda Costa e Silva, mulher do general-presidente que chancelou
o Ato Institucional Número 5, em dezembro de 1968).
Zuzu Angel morreu num acidente de automóvel, ao que tudo
indica provocado, quando voltava para a sua casa após
cruzar o Túnel Dois Irmãos (sentido Joatinga-Barra
da Tijuca, Zona Oeste do RJ). Era mãe do estudante Stuart
Angel, torturado e morto por oficiais da Aeronáutica
no pátio do Terceiro Comando Aéreo Regional (3o
Comar), junto ao Aeroporto Santos Dumont.
A esses quatro episódios pode ser acrescentada, sob a
forma de presunção legítima, a morte -
dadas às circunstâncias misteriosas - do Senador
Danton Jobim, candidato natural ao Governo do Estado do Rio
de Janeiro, em contraposição ao Sr. Antonio de
Pádua Chagas Freitas, e que estava internado para ser
submetido a um checkup de rotina no Hospital dos Servidores
do Estado (Zona Portuária do Rio de Janeiro).
A investigação jornalística sobre a hipótese
de morte provocada do Senador Danton Jobim não nasceu
e ganhou envergadura por simples acaso. Foi, na verdade, apontada
num primeiro instante pelo neto mais velho do parlamentar, o
empresário carioca Luis Jobim, residente em Copacabana.
Este
fato vinha sendo tratado de maneira muito discreta pela família,
até porque muito pouco ou quase nada se sabia sobre as
divergências políticas acirradas entre Danton Jobim
e o Sr. Antonio de Pádua Chagas Freitas. Os dois, em
1978, eram candidatos naturais ao governo do Estado do Rio de
Janeiro. Ambos constituíam poderosas forças políticas
atuando em campos opostos.
Esta pesquisa jornalística decorreu, também, graças
à observação (para muito além do
viés acadêmico), efetuada pelo Professor Dr. José
Marques de Melo. Num estudo sobre a importância para a
Imprensa Brasileira sobre a participação do Sr.
Danton Jobim, difundido durante encontro realizado na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, no final de 2004, ele manifestava
curiosidade sobre as circunstâncias da morte misteriosa
do jornalista, professor e senador da República.
Questões igualmente sensíveis também foram
se acumulando a partir do momento em que o Sr. Antonio de Pádua
Chagas Freitas, tendo concluído o seu segundo mandato
como Chefe do Executivo Fluminense e estando desiludido com
os rumos da política regional, repassou por preço
de banana os jornais O Dia e A Notícia ao grupo empresarial
capitaneado pelo Sr. Ary de Carvalho. Chagas Freitas morreu
no início dos anos oitenta e, até o momento, quase
nada foi escrito que analisasse ou aprofundasse as lutas políticas
de então.
Pelo que foi possível apurar, a família do Sr.
Danton Jobim encontrou e vem encontrando dificuldades até
mesmo para obter cópias da documentação
hospitalar arquivada no HSE. Chave para uma série de
perguntas, o próprio Sr. Luis Jobim lá esteve,
por solicitação do autor destas linhas e nada
obteve de concreto. Um dos pontos mais emblemáticos sobre
o fato em si, é que o senador estava aparentemente bem
de saúde e, no apartamento, como testemunha e acompanhante
privilegiado na madrugada em que se deu o óbito, apenas
o irmão e ex-embaixador, José Jobim.
A família do senador, que - no momento - está
empenhada para materializar, na Cidade do Rio de Janeiro, o
Instituto Danton Jobim, destinado a estimular o desenvolvimento
de pesquisas sobre o Jornalismo e a política fluminense,
não consegue compreender como aquele parlamentar morreu
subitamente, sem manifestar qualquer sintomatologia de moléstia
incurável ou agravamento de uma simples gripe.
E mais: quando sentado próximo ao leito, o sr. José
Jobim (ele próprio encontrado morto enforcado um ano
depois em circunstâncias misteriosas, nas proximidades
do Itanhangá Golfe Clube, na Barra da Tijuca) este último
explicou que fora vencido por cansaço e sono incontroláveis,
sem que tivesse ingerido qualquer medicamento indutor do sono.
Segundo a família do Sr. Danton Jobim bastariam alguns
minutos para alguém, disfarçado como integrante
do staff do Hospital dos Servidores do Estado, entrar no apartamento
privativo, injetar alguma substância no tubo de plástico
e, em seguida, com rápidos e preciso movimentos, substituir
o equipo. Quando despertou de um sonho agitado, o embaixador
José Jobim percebeu, num átimo, que o irmão
mais velho estava morto.
*José
Amaral Argolo é jornalista e advogado, pós-graduado
em jornalismo e em ciência política, mestre em
filosofia, doutor em comunicação e cultura e,
como bolsista do CNPq, pós-doutor em jornalismo pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. É Professor Adjunto e diretor-geral
da Escola de Comunicação da UFRJ.
**Trabalho
apresentado durante o 3º Encontro Nacional da Rede Alfredo
de Carvalho (ALCAR), realizado em Novo Hamburgo (RS) entre Março/Abril
de 2005.
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