Nº 12 - Nov. 2009
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO VI
 

 

Expediente
Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista Ombudsman: opine sobre a revista

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 



ENSAIOS
 

No "olho do furacão"
A solidão do ofício

Por José Amaral Argolo*


RESUMO

Sob o olhar atento de um repórter,
cenas de um conflito interminável.

Reprodução

PALAVRAS-CHAVE: Reportagem / Rio de Janeiro / Crime Organizado

1. Nota explicativa

Não é de hoje que o cotidiano do Rio de Janeiro vem sendo infernizado pela disputa entre as facções do crime (des) organizado. Desde o final da segunda metade da década de setenta, quando — pela primeira vez — a Revista IstoÉ e o Jornal O Globo noticiaram a existência da Falange da Lei de Segurança Nacional (posteriormente rebatizada Falange Vermelha e Comando Vermelho [há exatos trinta anos]), a população fluminense vem pagando alto preço devido à omissão das autoridades.

O surgimento de outras facções, associadas ou não à primeira, levou à triste situação hoje conhecida até mesmo no exterior.

O episódio sobre qual o Autor discorrerá adiante [1] corresponde tão-somente a um dos desdobramentos desse interminável conflito. O Comando Vermelho domina no momento as favelas do eixo Botafogo-Leme-Copacabana (Chapéu Mangueira, Santa Marta e Morro Azul, Cabritos, Tabajaras, São João, Cantagalo, Pavão e Pavãozinho; a organização rival Amigo dos Amigos exerce controle sobre o Vidigal, Rocinha e Parque [as duas últimas na Gávea]).

Exitosa a iniciativa do Governo do Estado no sentido de prover a comunidade do Morro Dona Marta de um mínimo de infraestrutura após a expulsão dos traficantes que lá se abrigavam, esses mesmos delinqüentes escorraçados buscaram refúgio nas favelas das Tabajaras e do Morro dos Cabritos.

Inicialmente fragilizados, receberam reforços e armamentos originários da Mangueira (conhecido reduto do Comando Vermelho apesar dos costumeiros desmentidos por uma parte da Imprensa), assumiram o controle dos pontos de venda de drogas e, gradualmente foram dominando toda aquela extensa área.

A chamada Grande Imprensa manteve-se afastada desse caldeirão até que, no final da tarde de segunda-feira 23 de março [2009] houve o confronto que paralisou quatro bairros da Zona Sul. Vale registrar que, na madrugada de domingo (22), a batalha entre invasores e residentes estendeu-se por mais de duas horas de fogo continuado.

Ainda que o comércio nas ruas próximas tenha sido prejudicado; que doze famílias (três dentre elas ligadas a informantes da PM expulsos da comunidade meses antes) ficassem ao desabrigo; que milhares de pessoas partilhassem do pânico que nivelou ricos e pobres; que alguns veículos estacionados nas ruas Santa Clara e Toneleros recebessem ameixas de chumbo na lataria, detalhes importantes escaparam à percepção dos jornalistas mobilizados para cobrir os acontecimentos.

Circunstâncias desfavoráveis a exemplo da compressão do tempo entre os fatos e a deadline; compreensão aquém da desejável; silencio constrangido e temeroso das testemunhas contribuiu para esse noticiário oblíquo e pouco denso.

Um pouco mais sobre o “olho do furacão”.

A Favela dos Tabajaras fica localizada em um ponto histórico e estratégico da Capital fluminense. A poucas centenas de metros do início da Ladeira, dobrando a esquerda de quem desce, e em plena Rua Toneleros, fica o Edifício Albervânia diante do qual, em 1954, o jornalista e deputado Carlos Lacerda foi vítima de um atentado que resultou na morte do major da Forca Aérea Brasileira Rubens Florentino Vaz, designado pelo Comando daquela Corporação Armada para garantir a segurança daquele parlamentar.

Os fatos subseqüentes levaram à prisão do chefe da Guarda Presidencial e mandante do crime, Gregório Fortunato, e culminaram com o suicídio (?) de Getúlio Vargas no interior do Palácio do Catete.

Mesmo com a favela próxima (e esta é uma das contradições da Capital) a região vizinha é bastante valorizada.

Seja pelo fato de que ali exista uma estação do Metrô, quatro agências bancárias (Banco do Brasil, Bradesco, Unibanco e Itaú), dois hotéis classificados na categoria quatro estrelas, uma ampla galeria repleta de lojas de antigüidades (das mais conhecidas no RJ), três supermercados de médio e grande  portes, restaurantes e lanchonetes, farmácias e um sem número de negócios que se estendem dos simples camelôs às casas de massagem para todos os gostos (e preços!).

Ali, na Ladeira, um apartamento com três dormitórios em prédio antigo pode custar o equivalente a US$ 160 mil. Se o edifício for mais novo, dispuser de uma ou duas vagas na garagem e alguma infraestrutura destinada ao lazer, esse valor tende a alcançar US$ 200 mil ou mais, principalmente na hipótese de imóvel localizado na cobertura e/ou com varanda voltada para a Rua Siqueira Campos, de onde se vê o mar.

Táxis, vans, motocicletas circulam a intervalos curtos. Independentemente dos veículos de propriedade dos moradores, costuma ser intenso o movimento dos automóveis até altas horas. São os viciados em drogas que procuram adquirir as ferramentas da autodestruição.

Sobre esse tópico é necessária uma digressão. Os preços cobrados pelos motoboys que sobem e descem a Ladeira dos Tabajaras variam até mesmo conforme a cor da pele. Em se tratando de estrangeiros (notadamente norte-americanos e nórdicos), a taxa exigida é de R$5, enquanto brasileiros e moradores das duas comunidades pagam R$1. Nos dias de chuva forte, quando o “movimento” nos pontos de venda de drogas cai sensivelmente, são oferecidas “promoções” que variam conforme a cara do freguês.

Diuturnamente, porém, o problema, porém, não está na viagem de ida, mas no retorno quase sempre com algum tipo de imprevisto. O mais comum de acontecer é a interceptação efetuada por patrulhas da Polícia Militar exatamente no final da Travessa Santa Margarida, à direita de quem desce, na esquina com a Rua Siqueira Campos.

Para os desavisados a motivação policial é quase sempre a mesma: verificação dos documentos e apreensão de armas e drogas.

Quanto às ruas no alto da favela, há até quatro/cinco décadas eram ornadas por pequenas chácaras pertencentes, quase todas, a famílias dos descendentes de portugueses que chegaram à cidade no início do Século XX.

Casas amplas e confortáveis, algumas com testada de quarenta metros por 100 de fundos onde cavalos com charretes eram utilizados para transportar as pessoas e/ou cestas contendo produtos perecíveis adquiridos em Botafogo ou nas poucas lojas da (ainda) semideserta Copacabana.

É fato que nas duas primeiras décadas do século passado o bairro era pouco povoado. Fotografias tiradas quando da construção do Hotel Copacabana Palace exibem um areal que se estende da ponta do Leme ao atual Posto Seis.

Pouquíssimas casas podem ser vistas junto à orla.

Na segunda metade do Século XX,  com a favelização numa escala cada vez maior derivada  em boa parte da migração maciça de famílias originárias do nordeste (pressionadas pelo desemprego e miséria), muitos antigos proprietários preferiram se transferir com malas e bagagens para as chamadas ruas nobres junto à orla.

Alguns simplesmente fecharam as portas das residências, dispensaram empregados e abandonaram tudo quando perceberam que os terrenos acabariam sendo invadidos. Sequer ensaiaram ações judiciais objetivando a retomada dos respectivos patrimônios.

Um sobrevoo no helicóptero imaginário do qual o Autor dispõe permitirá aos eventuais leitores um panorama mais nítido da região. Imagine o que representaria para o contribuinte proprietário no antigo Estado da Guanabara morar em uma casa confortável e ampla, com pomar, uma pequena horta e espaço a valer a menos de 1500 metros da praia tida como mais famosa do mundo; a 1 km distante de um bem azeitado complexo de transporte e lazer e a uma altura tal (150m a 200m acima do nível do mar) que nem o mais violento tsunami conseguiria provocar estragos.

Dadas as peculiaridades acima descritas, isso corresponderia a um segundo Joá (bairro habitado por pessoas da classe média alta da Zona Sul, no caminho para a Barra da Tijuca).

Bem, esse é o quadro.

Agora o foco do Autor desloca-se para um personagem até o momento não citado nos órgãos de Imprensa, mas importantíssimo como se verá.

Dele o Autor não dispõe do nome. Portanto, cita apenas o apelido. Exatamente como ouviu de várias fontes.

2. Uma reportagem

─ E aí, Patrão, nenhum serviço?

─ Hoje tá fraco. Talvez no final da semana ─ responde o Chefe, cujo apelido, Mexicano, tornou-se conhecido de todos quantos moram nas favelas das Tabajaras, Cabritos, Santa Marta (que controlou com mão-de ferro até ser expulso) e Morro de São João (as duas últimas) em Botafogo.

─ Então tá bom! ─ em seguida, algo decepcionado, se afasta e fica sentado junto às árvores com o seu único instrumento de trabalho.

Zé Foice é um individualista-solitário. Trabalha sozinho e, durante a sua labuta incomum e eventual, não permite que o ajudem. Somente ele exerce a atividade para a qual se ofereceu como voluntário e foi acolhido sem hesitação. Somente ele sabe como o trabalho é complexo e exige calma e perfeição em todas as etapas.

Zé Foice trabalha há alguns anos neste no setor. Seu aprendizado, pelo que dizem, foi na favela Santa Dona Marta, durante e em seguida a uma disputa entre quadrilhas de traficantes de entorpecentes. Desde então aprimorou a técnica e, hoje, no submundo do crime é considerado um expert na arte de retalhar vivos e mortos, ensacá-los como se faz com carne-seca e enterrá-los em locais cuidadosamente escolhidos e de difícil acesso.

Como todo bom profissional do ramo (se é que tal qualificativo pode ser atribuído a alguém engajado nesse tipo de atividade) Zé Foice não deixa rastros.

Primeiro ele arrasta os cadáveres (os vivos e muito feridos, também) para uma pequena área plana e cimentada no alto da Favela dos Tabajaras (por conseguinte, lavável com a indispensável profusão de detergente e outros produtos que não somente eliminam o odor enjoativo do sangue como fazem desaparecer as poças vermelhas (de maneira tal somente com a aplicação de borrifos de luminol [2] é possível aos peritos do Instituto de Criminalística identificar os traços remanescentes do soro vital).

Zé Foice é metódico. Após desmembrar os corpos com a ferramenta que agregou ao seu apelido e, em seguida, escoar o sangue por uma canaleta, lava cuidadosamente a área cimentada, asperge desinfetante e outros produtos, acondiciona os restos mortais em sacos de lixo reforçados e carrega nos ombros a mercadoria infernal até os locais secretos por ele próprio escavados nas matas que ornam os limites entre Botafogo e Copacabana.

Quanto aos “ainda vivos” no momento em que lhe são entregues (um de cada vez ao que se conta) para os “trabalhos” de que tanto aprecia, Zé Foice age com redobrada cautela. Examina qual das vítimas é a mais forte e, por conseguinte, capaz de oferecer reação inesperada e violenta e começa pelas pernas. Golpes rápidos sempre acima dos joelhos. O choque derivado da hemorragia intensa elimina qualquer possibilidade de fracasso na operação.

Em seguida, conforme as recomendações do chefe, vem a cabeça. Nada perturba a dinâmica do ritual. Não há gritos. Quando muito alguns uivos abafados porquanto a boca do condenado está recheada com papel jornal e/ou trapos. Um golpe apenas, desferido da direita para a esquerda, às vezes atingindo parte do ombro. Nem sempre o corte é perfeito como acontece nas execuções efetuadas com guilhotina.

Os procedimentos subseqüentes são invariavelmente semelhantes: cortes na altura dos quadris, nos braços e pés; eventualmente um talho adicional quando a vítima é muito gorda e faz-se necessário eviscerá-la para com isso reduzir o peso da carcaça. Assim aconteceu quando uma jovem grávida que supostamente havia traído a confiança do gerente do tráfico foi capturada no interior do Túnel Velho (Copacabana) junto com o namorado e arrastada até o alto do morro.

Moradores da própria favela dizem que ela foi retalhada viva, enquanto clamava por piedade. Em seguida (esse era o método utilizado na época), com os braços parcialmente amputados e a barriga aberta, a jovem e o namorado foram colocados em um barril de aço, banhados com gasolina e incinerados.

Zé Foice teve muito trabalho nos últimos dias. Melhor dizendo, entre a madrugada de domingo último e a segunda e terça-feira desta semana de março de 2009, quando, por ordem de Mexicano, lhe foram entregues para finalização os corpos de quatro ou cinco traficantes capturados durante a tentativa de ocupação da Favela Tabajaras por grupos de combate da organização criminosa Amigo dos Amigos. Esta facção responde pelas operações de refino, armazenamento, distribuição e comercialização de cocaína e maconha não somente na Favela da Rocinha como em boa parte da Zona Sul.

Os bandidos (mais de trinta homens armados, inclusive, com duas metralhadoras calibre ponto trinta [de uso militar]) foram surpreendidos quando caminhavam por uma das vielas da Favela Tabajaras sem saber que vinham sendo monitorados pelos homens de Mexicano.

Alguns dos invasores tombaram ali mesmo, crivados de balas; outros mais foram mortos a tiros pela Polícia Militar (leia-se Batalhão de Operações Especiais) durante um tiroteio que deixou em pânico milhares de moradores e trabalhadores das Ruas Santa Clara, Toneleros, Anita Garibaldi, Décio Vilares e também as pessoas que passeavam com seus cães de estimação na pracinha do Bairro Peixoto [onde, aliás, dois ou três bandidos buscaram proteção junto ao chafariz cercado e, pasmem, não foram descobertos].

Os primeiros dentre os mortos no interior da favela foram quase que imediatamente arrastados para a extensa área de vegetação que orla o eixo Tabajaras-Cabritos-São João e ali deixados inicialmente semicobertos pelos arbustos e folhas caídas, enquanto os demais comparsas — pressionados pelo fogo das metralhadoras, fuzis, granadas e pistolas automáticas — tentavam escapar daquele inferno.

Sob uma chuva de balas oito deles desceram correndo a escadaria que dá acesso à favela pela Rua Santa Clara, mas foram novamente surpreendidos pela Polícia Militar e, poucas centenas de metros adiante, já no asfalto, depararam-se com uma verdadeira parede de chumbo. A derradeira naquele final de tarde.

Enquanto os remanescentes da força invasora mergulhavam em desespero na escuridão da floresta; enquanto unidades do Batalhão de Operações Especiais davam inicio às ações de busca e captura, [3] Zé Foice (convocado às pressas) trabalhava com rapidez e eficiência.

Até o momento em que esse texto era finalizado nenhuma das vitimas tinha sido localizada e/ou identificada. Perderam-se no silêncio da natureza. Aliás, registre-se, ainda esta semana parentes dos desaparecidos na ação caminharam até as imediações da Ladeira dos Tabajaras e fizeram um apelo aos moradores da comunidade na tentativa de obter informações a respeito. Mas não obtiveram êxito.

De outra parte, um homem moreno, forte, com vasta cabeleira e uma tatuagem no braço esquerdo, dirigiu uma série de ameaças e impropérios àqueles motoboys (como se fossem estes os responsáveis pela matança) afirmando que o seu grupo voltaria para cobrar com juros o sangue dos companheiros mortos. Nenhum dos rapazes retrucou.

O que se tem como certo — e sobre isso alguns motoboys e motoristas de táxi que costumam servir às comunidades dos Tabajaras/Cabritos não têm duvidas — é o modo como os bandidos rivais foram despachados e a inevitável indagação de Zé Foice ao chefão do tráfico local:

— E ai, Patrão, mais algum serviço?

3. Post scriptum

Poucos dias após o pesado confronto que deixou atordoados os moradores de cinco bairros (Botafogo, Humaitá, Copacabana, Ipanema, Lagoa e Humaitá), a PM foi novamente acionada para coibir a presença de homens armados no alto da Favela Tabajaras. Eram bandidos locais (Comando Vermelho) que comemoravam a “derrota militar” dos traficantes da Rocinha e o extermínio de boa parte da coluna de soldados do tráfico invasores.

Durante o tiroteio que se seguiu quatro delinqüentes foram mortos, dois ficaram gravemente feridos e treze armas (doze pistolas e um fuzil) foram apreendidas.

O que foi possível apurar junto a representantes da comunidade: pela primeira vez em alguns anos bandos de urubus executaram a sua estranha dança nos ares, voando em círculos sobre determinados trechos da floresta.

A hipótese de corpos desenterrados e expostos ao tempo não parece viável. Talvez um animal agonizante e/ou gravemente ferido pelos projéteis. Um animal bem grande.

De duas pernas e com nome próprio desconhecido até esse momento.

NOTAS

[1] Esta reportagem resultou de duas possibilidades: da observação direta feita pelo Autor nas proximidades da área de confronto e de entrevistas com moradores, motoboys, motoristas de táxi e pequenos comerciantes da região.

[2] Substância concebida no Brasil e hoje exportada para diversos países.

[3] No Morro dos Cabritos, minutos após o disparo de uma pistola sinalizadora seguiram-se vários pontos luminosos resultantes de munição traçante.

*José Amaral Argolo é advogado, jornalista e professor-associado do Quadro Permanente da Escola de Comunicação da UFRJ.

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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]