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                                        | A caveira e a rosa (Notas  sobre Mariel Moryscotte)
 
 Por José Amaral Argolo*
 
 RESUMO
 O  texto adiante pode ser interpretado sob o duplo viés de ensaio e quase-reportagem sobre Mariel Moryscotte  Araújo de Mattos, personagem singular da crônica policial da muy heroica y valerosa Cidade de São  Sebastião do Rio de Janeiro. 
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                                            Reprodução
                                               
 |  Parte das informações adiante enunciadas é  apresentada aos leitores pela primeira vez. Como os bastidores da entrevista  concedida no interior da Unidade Especial do presídio Milton Dias Moreira e  algumas nuances da chamada Primeira  Guerra do Jogo-do-Bicho entre 1981-1983 (o segundo conflito eclodiu após a  morte [decorrente de problemas cardíacos] de Castor de Andrade, em 1997).
 PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo  Policial / História / Esquadrão da Morte 
                                      Eu sou Mariel Moryscotte.  Busco uma pessoa que estenda-me a mão dando-me a oportunidade de mostrar minha  capacidade, minha lealdade e meu esforço pela conquista de um lugar ao sol.  Deve ser mão forte, um caráter firme e de grande personalidade, deve ser uma  autoridade assumida para que não me julgue de oitiva ou me fulmine por palpite. Mariel  Moryscotte  (Carta entregue a alguns jornalistas em papel timbrado com o seu  nome grafado incorretamente (Mariel  Maryscôtt) com a observação: Rio de Janeiro, uma data qualquer no tempo,  cujo fragmento reproduzo mantendo as imperfeições ortográficas originais.) 1. Premonição
 Ex-guarda-vidas  do Corpo Marítimo de Salvamento, ex-agente da Polícia Judiciária, ex-leão-de-chácara de casas noturnas na  Zona Sul, ex-aprendiz de “banqueiro” do jogo-do-bicho e personagem ao mesmo tempo folclórico e desumano numa fase da História  Política Brasileira repleta de violências, Mariel foi um ator incomum nesse  teatro de absurdos.
 
 É  impossível isentar Mariel Moryscotte dos crimes que praticou, nem criticar a  Justiça por tê-lo retirado — ainda que tardiamente — do convívio social. Quer  queiram ou não, ele foi ao mesmo tempo uma espécie de ícone e de anti-herói em  um sistema político em deterioração e sobre cujos restos repousa, ainda hoje, o  aparato repressivo-policial.
 Para  os telespectadores dos programas sensacionalistas Mariel representava o papel  duvidoso de missionário daquela estrutura de poder. Um dangerman tupiniquim capaz de impressionar e até mesmo cativar — com suas aventuras rocambolescas —  os cidadãos pacatos.
 Recorda-se  o autor dessas linhas de um programa de televisão transmitido, salvo algum  lapso da memória, pela TV Tupi do Rio  de Janeiro. Nele, Mariel Moryscotte e outros policiais eram apresentados como  integrantes da primeira linha de defesa da sociedade.  Num dos quadros desse  programa, Mariel, sorridente, aparecia junto de um ladrão capturado (conhecido  pelo apelido Jorginho Bacalhau) e em  cujo pescoço uma gravata fora colocada à semelhança de laço de forca. Uma clara  advertência à bandidagem da época. 
 Paradoxalmente  ele se transformou numa referência obrigatória para os delinqüentes e também  para alguns jornalistas que o elevaram ao status de justiceiro. Suas declarações, no  sentido de que já estava recuperado, alimentaram os sonhos eróticos e ingênuos  de algumas jovens que — declaradamente ou às escondidas — iam visitá-lo na  Unidade Especial do Presídio Milton Dias Moreira (Complexo Frei Caneca do  Departamento do Sistema Penitenciário).
 Durante  essa passagem pela cadeia, Mariel recebeu privilégios incomuns. Dispunha de  três celas: a primeira funcionava como ateliê de pintura; na segunda, ele mantinha uma mini-indústria de confecção (onde  alguns detentos escolhidos a dedo produziam camisetas vendidas a comerciantes  amigos que, por sua vez, lhe repassavam os lucros); na última, dormia e recebia  os visitantes: namoradas, policiais e ex-policiais, parentes, jornalistas e  amigos desde os tempos de juventude.
 Embora  afastado compulsoriamente das ruas, Mariel Moryscotte se dizia bem informado  sobre os principais fatos registrados pela crônica policial. A tal ponto que,  ao autor dessas linhas, entre tantas outras observações captadas seja na  entrevista transcrita em seguida e em outras conversas a posteriori, assegurou  que dispunha de indicações capazes de elucidar muitos casos misteriosos, a  exemplo do seqüestro do menino Carlos Ramirez, o Carlinhos. [1] 
 Em  entrevista ao Autor e ao repórter Telmo Wambier (ambos trabalhávamos na  Reportagem-Geral do Globo), nos dias  dois e três de novembro de 1979 (publicada na edição datada de quatro de  novembro, à página 24 do Primeiro Caderno sob o título: As confissões de Mariel Moriscotte — Não me arrependo. Todos os que  matei mereciam morrer), o ex-homem de ouro negou qualquer  ligação entre a imagem expressa no quadro e o  símbolo utilizado pelos  grupos de  extermínio.
 A  estranha percepção de Mariel Moryscotte enquanto artista plástico diletante  também merece registro. Um dos últimos óleos sobre tela de sua autoria reproduz  uma caveira — sem as tíbias cruzadas como a das bandeiras nos mastros  principais das naus dos flibusteiros — trabalhada em fundo negro com uma rosa  vermelha presa pelo talo entre os dentes. 
 A  tela supracitada ornava há até pouco depois da execução de Mariel, na tarde de  oito de outubro de 1981, na Rua Alcântara Machado (Centro do Rio), a parede em  frente ao topo da escada de acesso ao escritório-fortaleza do polêmico advogado  criminalista Nicolino Lagrutta (mais tarde assassinado a tiros numa trama  envolvendo contrabandistas e receptadores de armas), localizado em um bairro da  Zona Norte da cidade. Durante a entrevista Mariel explicou que o quadro fora  idealizado como uma homenagem da morte ao  amor — representado pela rosa vermelho-sangue.
 Em  que pese a atenção e a delicadeza dispensada aos repórteres nas duas jornadas  de conversa no interior daquela unidade especial, foi difícil esquecer a  impressão provocada por aquela figuração da morte, parecida com a dos cartazes  toscamente elaborados, recortados em cartolina e infalivelmente encontrados  junto aos corpos das vítimas. 
 Seria  possível imaginar aquele quadro como uma premonição sobre o destino trágico que o aguardava? 2. Confissões radicais 
                                      Eu sou do Esquadrão da Morte. Não desse esquadrão que mata às  escondidas e joga os corpos na Baixada Fluminense... Para mim, bandido que  resiste à bala tem tantas chances de morrer quanto eu.
 Mariel Moryscotte,  entrevista publicada na edição de quatro de novembro de 1979, no Primeiro  Caderno do Globo.
 Nas  entrevistas de hábito polêmicas que concedeu, inclusive enquanto esteve  foragido no Paraguai (após uma fuga mirabolante [2] do Instituto Penal Candido  Mendes, na Ilha Grande [unidade considerada de segurança máxima] e nas quais  pontificavam reflexões amarguradas e/ou bem humoradas), Mariel Moryscotte deixava  transparecer opiniões singulares. 
 Mal comparando, era um exemplo daquele modelo  assinalado por Howard Becker (Uma teoria  da ação coletiva); isto é: o do  homem que desenvolve e retroalimenta a concepção de ele está certo e os que o  desaprovam e punem estão errados (Cf. Becker, Op. cit., p. 53): 
                                      Todos os grupos sociais  fazem regras e tentam, em alguns momentos e algumas circunstâncias, fazer com  que elas sejam seguidas. Regras sociais definem situações sociais e os tipos de  comportamento apropriados a elas, especificando algumas ações como certas e  proibindo outras como erradas. Quando uma regra e imposta, a pessoa que se  supõe tê-las transgredido pode ser vista como um tipo especial de pessoa,  alguém que não se espera que viva segundo as regras com as quais o grupo  concorda. Ela e vista como um marginal ou desviante. Essa  concepção também se coaduna com o pensamento das lideranças das facções  criminosas que, no tempo presente, tiram a paz das populações das metrópoles  brasileiras. Tais indivíduos se auto-proclamam vítimas. 
 Eis  um exemplo do que acreditava ser um pressuposto da sua “ética” como ex-policial  (mas que, dois anos após a entrevista concedida ao Autor dessas linhas, acabou  confirmada). Tinha a ver com a contravenção.
 Disse  Mariel:  
                                      Eu podia muito bem receber  uma grana do jogo-do-bicho e ficar na  minha. E se isso é corrupção eu sou corrupto. Recebo até hoje, porque o negocio  é o seguinte: qual é a mola-mestra da Policia? Todo mundo sabe que é o  bicheiro. Agora vê se com essa reportagem eles vão “estourar” o bicho. Vão  nada! Mariel  Moryscotte foi, no fundo, o seu próprio carrasco. Por mera casualidade uma vez  que, na ocasião, o autor fora credenciado pelo Globo para prover a cobertura jornalística da Justiça Fluminense,  alguns dias antes da sua execução (dois ou três, no máximo) conversamos rapidamente  junto aos carros estacionados na Rua Dom Manuel, próximo do portão lateral de  acesso ao Fórum do Rio de Janeiro. O  bate-papo versou sobre automóveis.
 Tanto ele  como eu gostávamos de carros velozes. Como de hábito estava bem vestido, calmo  e sorridente. Há alguns meses usufruindo da qualidade de preso albergado de bom  comportamento ele prestava serviços burocráticos na Vara de Execuções Penais,  sob a responsabilidade direta do juiz Francisco Horta (tempos depois destacado  ex-presidente do Fluminense e dublê de comentarista esportivo).
 Mariel  soube-se depois estava contaminado até o último fio de cabelo pelo vírus da contravenção. A ambição desmesurada  pelos lucros que poderia auferir no curto prazo levou-o a procurar uma sólida  associação com Marco Correia de Mello [Marquinho],  filho mais velho de Raul Capitão,  banqueiro do jogo-do-bicho muito  conhecido na época (inclusive por ser proprietário do diário popular O Povo, além de inúmeros imóveis  localizados no estratégico e supervalorizado coração financeiro da cidade),  dono dos pontos localizados não  somente no Centro da Cidade como em parte da Ilha do Governador. 
 De volta ao  passado, um pouco sobre os primeiros anos de Mariel:
 Nascido em Niterói  no dia 4 de julho de 1940, viveu os três primeiros anos em Salvador. De volta  ao Rio de Janeiro, na companhia da mãe e do padrasto (o sargento do Exercito  Wilson de Azevedo Filho), passou o restante da infância e da adolescência em  Bangu (Zona Oeste). No final dos anos cinqüenta ele trabalhou algum tempo na Fábrica  de Tecidos Bangu e ganhava algum dinheiro extra como instrutor de natação. Ao  contrario da maioria dos rapazes da sua geração, não bebia e nem fumava. 
 Mas era  assustadiço. Tanto assim que o padrasto costumava acordá-lo todas as manhas e o  levava até a estação de trem, de onde seguia para o Comando da antiga Brigada  Aero-terrestre (como assinalam Paulo Markun e Ernesto Rodrigues num bem  sucedido instant book lançado poucos  meses depois da sua execução em via pública). A força física ele adquiriu por  intermédio dos exercícios praticados no quartel e, em seguida, durante o  treinamento obrigatório para guarda-vidas. Todo esse condicionamento gerou no  seu imaginário uma presunção de superioridade que acabou sendo retroalimentada  quando ingressou no aparato de segurança publica como Agente de Policia  Judiciária.
 Nas praias  da Zona Sul ele se tornou conhecido de algumas socialites de então, envolveu-se com mulheres mais ou menos  famosas, usava e abusava da confiança dos colegas do Corpo Marítimo de  Salvamento. Na medida em que começou a desfrutar das vantagens decorrentes  desses novos conhecimentos e atividades, mergulhou cada vez mais fundo no  desvio.
 Um exemplo  da sua imaturidade. Recusava-se a ouvir pessoas como o promotor José Carlos da  Cruz Ribeiro, seu conhecido de Copacabana, que o desaconselhou a ingressar nos  quadros da Polícia por antever o destino daquele jovem insensato (aliás, o  próprio José Carlos da Cruz Ribeiro confirmou isso ao longo das conversas  mantidas enquanto, como repórter do Globo,  o autor participou da cobertura jornalística diária da Justiça no Rio de  Janeiro). Seja como for, e os fatos são por demais conhecidos, Mariel  envolveu-se com pessoas mais experientes que o entronizaram no aprendizado do  mal, aparentemente conscientes da semi-impunidade.
 Na corrida  sem fim e desenfreada pela notoriedade e o dinheiro dela resultante, Mariel  Moryscotte se esqueceu de um ditado popular: a sorte costuma ser pródiga  àqueles que sabem fazê-la acontecer e conhecem as forças e limitações que atuam  sobre os indivíduos, principalmente aqueles que integram os segmentos melhor  aparelhados intelectual e financeiramente.
 Recorte de  uma parte não publicada da História: 
                                      Certa madrugada, Lá pelo inicio  dos anos sessenta, no interior de um ainda hoje conhecido bar e restaurante  localizado na Rua Ministro Viveiros de Castro, em Copacabana, um homem não  identificado em meio a outras pessoas, sacou por puro exibicionismo uma pistola  calibre 45 e, ao exibi-la, a arma disparou. O projétil ficou alojado em uma das  paredes e, para evitar maiores complicações, tanto o proprietário da arma como  seus amigos deixaram o bar.  Avisada por telefone a equipe de plantão da  Delegacia Policial mais próxima (na Rua Hilário de Gouveia) enviou a guarnição  de uma radiopatrulha até o local. Mariel integrava aquele grupo. Ali chegando  começaram os problemas. Impaciente, truculento e estouvado, o policial escolheu  um dos fregueses e indagou o que acontecera. Face à negativa das respostas (ate  porque, fora o susto provocado pelo estampido ninguém ficou ferido), aquela  pessoa levou uns tabefes e, como nada havia que a comprometesse, foi liberada. 
 Mariel Moryscotte cometeu um  erro do qual viria a se lamentar depois. A vítima da agressão era um veterano  jornalista que, poucos meses depois, foi convidado e assumiu a chefia de reportagem  do Jornal do Brasil. Como, segundo o  ditado popular, quem apanha jamais esquece, o troco foi dado exemplarmente e  levou a elucidação do chamado escândalo dos travellers  checks.
 Mulheres pertencentes ao  submundo da prostituição atraíam turistas a um determinado apartamento no Posto Seis (Copacabana) onde havia um  armário com fundo falso que se comunicava com o imóvel ao lado. Então, durante  os encontros amorosos, elas fingiam estar sendo agredidas e gritavam. De  repente dois policiais saíam de dentro do armário pela porta dissimulada,  forjavam um flagrante de agressão e, para “abafar o caso”, aceitavam propinas  na forma de dólares e/ou cheques de viagem. 
 O plano vinha se repetindo  com algum êxito até que, embora assustada, uma das vítimas da extorsão resolveu  registrar queixa. As investigações que se seguiram (inclusive por parte do  Centro de Inteligência da Aeronáutica) foram minuciosas e levaram aos responsáveis.  O caso foi levado aos tribunais e a sorte de Mariel começou a perder o brilho. Desmascarado e rotulado como desviante, Mariel respondeu  ainda por diversos crimes de maior ou menor intensidade. Todavia, até então,  suas atividades não despertaram o interesse da cúpula da contravenção. Os  banqueiros do jogo-do-bicho, alçados,  principalmente por conta da atuação na diretoria das Escolas de Samba, à  condição de personalidades da vida carioca, mantinham-se afastados das cavernas  do inferno policial. 3. (Retorno ao quase contemporâneo das interpretações) Essa  amizade acabou gerando algumas ações violentas contra supostos adversários no  submundo da contravenção. Sem dispor de forças capazes de enfrentar os demais barões do jogo-do-bicho (quais sejam:  Kalil Petrus Kalil [Turcão], Castor  de Andrade, Aniz Abrahão David [Anísio de Nilópolis], Jorge Scafura [Piruinha],  Luizinho Drummond, a dupla Zinho e Manola, Ângelo Maria Longa [Tio Patinhas] e Ailton Guimarães Jorge [Capitão  Guimarães], este último remanescente do aparato repressivo instalado  durante o regime militar pós-1964), Marquinho e Mariel aplicaram um golpe-de-mão no outro lado da Baía da Guanabara,  em Niterói, apoderando-se dos pontos de anotação do bicheiro [segundo escalão] apelidado Jorge Elefante e tentaram fazer o mesmo em alguns outros  pertencentes a Ailton Guimarães.
 De  inicio, como assinalado, eles foram bem sucedidos. Mas então, como acontece  freqüentemente, materializaram uma falta grave (esta, a versão que circulou na  dupla esfera policial e jornalística): encarregado da coleta das apostas e  enteado de um dos bicheiros supracitados,  um rapaz foi interceptado em plena rua quando recolhia parte do dinheiro  arrecadado, roubado e espancado selvagemente. 
 Estava  declarada a guerra!
 Os  bastidores desse conflito interrompido muitos meses depois (da morte de Mariel)  em acatamento às ordens expressas de Castor de Andrade — apoiado, este, pelos  demais integrantes da chamada cúpula da contravenção — somente serão conhecidos quando um dos três principais  sobreviventes desse período: Turcão, Anísio ou Capitão Guimarães — à semelhança do que fizeram Don Tommaso Antonio Busccetta ou Joe  Valacchi — resolverem quebrar o pacto de silêncio, a Omertá tupiniquim, e  contar tudo o que sabem. Não é e nem será pouca coisa, acreditem.
 O  autor efetuou a cobertura jornalística de uma parte expressiva desse conflito;  se bem me recordo (em meados de 1983) os assassinatos relacionados com a guerra  na contravenção do Rio de Janeiro superavam a casa setenta. Fora os cadáveres jamais  encontrados, muitos dos quais devem estar no fundo dos rios que alimentam a  Baía da Guanabara.
 De  todo modo o contrato para a execução  de Mariel fora pactuado no momento em que se confirmou a participação deste no  espancamento do rapaz em Niterói seguido do confisco do dinheiro. O grupo  escolhido para a tarefa era integrado, ao que se sabe, por quatro pessoas [três  delas designadas para garantir a operação de cobertura], todas selecionadas a  dedo.
 O  que aconteceu em seguida é razoavelmente conhecido. Mariel chegou de carro à  sede da empresa [Cap-Rio] um amplo  sobrado de onde Raul Capitão gerenciava os seus negócios, na Rua Alcântara Machado, estacionou junto à  calçada e, sem deixar o automóvel, gritou chamando Marquinho. O ex-policial não percebeu quando um dos homens,  justamente um dos seus maiores desafetos, o detetive Chiquinho [utilizando um disfarce composto de peruca, barba postiça  e capa de chuva] se aproximou caminhando pela calcada, sacou a submetralhadora Ingram de sob a capa e descarregou o pente  à distância de um metro da janela esquerda.
 O  ex-homem-de-ouro morreu sem que  tivesse chance de oferecer resistência, ainda que estivesse armado com uma  pistola Colt calibre 45 [na capanga]  e outra de calibre 6.35 em um coldre fixado no tornozelo esquerdo. O corpo foi  impulsionado para trás e para a direita com o impacto dos disparos. Para  impedir o vazamento da massa encefálica uma toalha foi enrolada na sua cabeça  e, quando a notícia sobre o crime se espalhou, acorreram ao Instituto Afrânio  Peixoto dezenas de policiais, amigos de outros tempos, bem como jornalistas. 4. Uma volta no tempo
 Dentre  os amigos que o ajudaram no tempo das vacas  magras destacam-se os delegados Odilon Castellões Moreira César e Hélio  Vígio. O primeiro, em depoimento prestado muito antes de todos esses fatos aos  jornalistas Adriano Barbosa e José Monteiro no volume intitulado Do Esquadrão ao Mão Branca, propugnou  pela inocência do ex-detetive em alguns dos crimes de que fora acusado. Definia  Mariel como uma vitima das circunstâncias.
 Hélio  Vígio foi mais prático. Mobilizou a sua equipe e, em quarenta e oito horas,  recuperou a arma (que, após a execução, fora devolvida ao seu legítimo  proprietário, o colecionador Augusto Cursino [este confiara a Chiquinho a Ingram acreditando que ele a venderia] e a encaminhou ao diretor do  Departamento de Polícia Especializada, delegado Peter Jorg Gersten (a  submetralhadora fora testada antes em um estande de tiro e como se tratava de arma  muito diferente daquelas de uso comum por parte da força policial, acabou sendo  notada).
 Existe  uma segunda versão para justificar a presença de Chiquinho e dos demais na cena da execução. Talvez faltem alguns  dados importantes nos parágrafos adiante, mas vale a pena mencioná-la. Raul  Correia de Mello (Raul Capitão) teria  convocado os seus colegas da cúpula da contravenção com certa urgência. O  objetivo era eliminar pendências, especialmente aquelas derivadas das ações  praticadas por Marquinho e Mariel, e ─  concomitantemente ─ acalmar os ânimos.
 Antes,  porém, de efetuarmos um mergulho histórico nessa crise vale apresentar detalhes  não revelados até então pelas diferentes mídias.
 A  história remonta ao tempo em que Mariel estapeou Chiquinho em plena rua no bairro carioca da Lapa (por conta de uma “questão  de honra”). O ex-homem de ouro era amigo do banqueiro do jogo-do-bicho do segundo escalão conhecido  pelo apelido China da Saúde. O contraventor fora  assassinado por Chiquinho em meio a  um imbróglio de natureza passional. Como, segundo o ditado popular, quem apanha não esquece, o juramento de  morte nasceu ali.
 Chiquinho, ainda de  acordo com essa versão, não teria conseguido refrear o ódio quando viu o perigoso  desafeto estacionar o carro sozinho e aparentemente seguro de si. No momento em  que este gritou por Marquinho a  atenção de Mariel foi desviada alguns segundos. Com as duas mãos da vitima em  local visível e sem que esta pudesse esboçar resistência, a ação empreendida  foi como atirar naqueles alvos estáticos dos parques de diversões.
 Além  de muito forte fisicamente, Mariel era bom de briga. Que o digam aqueles que  testemunharam a pancadaria entre ele e Lúcio Flavio Villar Lírio no xadrez do  Segundo Tribunal do Júri, Centro do Rio de Janeiro, em meados dos anos setenta.   Briga de gente grande. 
 Ora, Chiquinho não tinha a mesma  disposição e, em campo aberto— ainda que excelente atirador — não era páreo  para duelar com o ex-homem de ouro.
 O contrato de morte acabou sendo  atendido parcialmente, pois o que estava previsto era ao mesmo tempo um choque e uma solução para os problemas  da cúpula da contravenção.
 O  fato é que todos os chefões do jogo-do-bicho dispunham (como ainda  hoje) de um bom número de policiais a soldo, atuando como seguranças e pistoleiros.  Uma guerra fratricida como a que estava se materializando comprometeria a  segurança deles próprios, prejudicaria a arrecadação e provocaria reações por  parte do Governo Federal (o Regime Militar, como se sabe, terminou em 1985).
 As  ações de Marquinho e Mariel expuseram Raul Capitão e seus auxiliares  perante os demais banqueiros de  primeira linha. Pacificados os ânimos e salvaguardados os interesses de todos, após  uma serie de advertências àquela dupla, as famílias poderiam voltar a conviver harmonicamente.
 Seja  como for, na data e hora agendadas para o encontro teria havido uma estranha e súbita  mudança de planos. As principais lideranças não compareceram e, na sala de  reuniões da Cap-Rio, aguardavam tão-somente  alguns pequenos contraventores que fugiram após os disparos. O motivo da  ausência do cardinalato do jogo-do-bicho: a atuação do(s) assassino(s)  se estenderia, de acordo com essa versão, para além de Marquinho e Mariel. 
 Raul Capitão seria  outra vitima palatável, bem como  provavelmente alguns dos seus homens de confiança. A presença de qualquer um  dos grandes banqueiros, Castor de Andrade, Aniz Abrahão David, Antonio Petrus  Kalil (este o maior banqueiro de descarga do Rio de Janeiro), Capitão Guimarães etc. (e a publicização inevitável por  intermédio da Imprensa), provocaria desdobramentos indesejáveis.
 Tomando  como base o elemento surpresa e a capacidade de fogo dos assassinos, as reações  não estavam descartadas. Mesmo que todos os alvos fossem atingidos e mortos,  quem poderia prever que os disparos não atingiriam também outras lideranças da  contravenção? 5. O “Resgate do Rei”  Com o  passar dos anos e atenuadas as penas que lhe foram imputadas pela Justiça,  Mariel passou a gozar de relativa liberdade, aliando-se ao filho do  contraventor Raul Correa de Mello. Pretendia ficar rico em dois anos, como  revelou à equipe de O Pasquim (em 18  de setembro de 1981) pouco antes de ser assassinado.  Esse resgate de rei corresponderia a uma  espécie de compensação pelos anos passados nas prisões e outras violências  sofridas. Além do mais, acreditava ele — não sem razão — que a mesma sociedade  que o banira (à semelhança do que aconteceu com os grandes banqueiros do jogo-do-bicho do Rio de Janeiro após a decretação do Ato Institucional Número 5 (13 de  dezembro de 1968), aceitaria o seu retorno em bases sem ilegais sem  constrangimentos. Como exemplo dessa última assertiva, vejamos, por  exemplo, o que aconteceu com Castor de Andrade. Indiciado em vários inquéritos  por importação ilegal de componentes eletrônicos de videopôquer, foi glorificado  com uma fotografia publicada na primeira página da revista Veja, edição subseqüente ao Carnaval de 1992, por suas atividades  como patrono da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
 Mesmo tendo publicado o livro Desigualdade Humana — Eu Passei Por Lá, onde rememorou a sua  passagem pelos presídios, o ex-detetive não dispunha dos mesmos atributos  intelectuais de Castor de Andrade (advogado) e do ex-capitão do Exercito Ailton  Guimarães Jorge (formado pela Academia Militar das Agulhas Negras), bem como  dos conhecimentos e instrumentos indispensáveis à sua salvaguarda junto a  pessoas influentes. Na sua imaginação esperava superar tais óbices por  intermédio do charme pessoal e da fama que acumulara como policial temido. Acreditava que se conseguisse um lugar junto à cúpula  da contravenção, a sociedade como um todo lhe seria favorável, principalmente  levando em conta a falta de memória dos brasileiros. Mas os seus cálculos foram  equivocados, principalmente por ter se associado a Marcos Correa de Mello, o Marquinho, que, sabe-se hoje, fora  jurado de morte pela cúpula do jogo-do-bicho e até então não tinha sido justiçado em respeito ao pai. 
 Marquinho foi  executado a tiros, tempos depois, em plena Rua Bartolomeu Mitre (Leblon, Zona  Sul da cidade) por um grupo de pistoleiros originários do Espírito Santo e  integrado inclusive por policiais. A ação foi testemunhada por dezenas de  pessoas, freqüentadores de um bar e restaurante da moda.
 No momento em que decidiu invadir os espaços  geográficos de há delimitados pela cúpula da contravenção (cujo código de ética  é bastante singular) e, principalmente, por associar as suas pretensões com  iniciativas violentas, Mariel selou a própria sorte.  Ousara demais, voara muito  alto com asas de pardal diante dos olhos dos gaviões do crime. Daí a sua execução em via publica, como um  lembrete para os futuros candidatos a aventureiros.
 Apesar de tudo aquilo que foi dito e escrito a  respeito, a débâcle de Mariel  Moryscotte teria começado mesmo quando o Centro de Informações e Segurança da  Aeronáutica decidiu investigar um derrame de cheques de viagem falsificados  (supondo que a iniciativa teria origem nas facções da Esquerda Armada que  lutavam contra o regime militar, agentes disfarçados passaram a freqüentar  casas noturnas da Zona Sul e ouviram clientes e vitimas dos golpes. Com isso,  descobriram que a quadrilha era comandada pelo [ainda] detetive).
 Como se não bastasse a Promotoria do Primeiro Tribunal  do Júri pedira a prisão preventiva de Mariel pela prática de vários crimes de  morte. No entanto, a última palavra foi publicada na primeira página do Diário  Oficial do Estado em 22 de outubro de 1970. 
                                      O governador Chagas Freitas,  no uso das suas atribuições legais e tendo em vista o que consta do processo  número 09.436-184/70, resolve demitir a bem do serviço público Mariel Araújo  Moryscotte de Mattos, matrícula número 106.998, por transgressão dos artigos  197, incisos IV e X, 196, incisos V e VI e 209, incisos IV e X, do decreto-lei  número 100.169, segundo conclusões da 2ª Comissão Permanente de  Inquérito Administrativo. De desviante circunstancial  Mariel Moryscotte passou à categoria de inimigo público. Mesmo assim ele não  admitiu a rotulação e lançou uma serie de acusações contra aqueles que o  condenaram:  Mariel: 
                                      Quando o Brasil começou a  ser conhecido no exterior como o país que tinha o Esquadrão da Morte, alguém tinha que ofegar a culpa dos crimes que  eram cometidos contra os marginais. Como eu era uma pessoa temida no meio  policial eles me pegaram. Fui tão honesto que eu mesmo me apresentei na ocasião  em que soube que havia uma ordem de prisão contra mim. Durante  essa fase — considerada romântica e aventureira por alguns repórteres  especializados — Mariel Moryscotte conquistou grande popularidade. Sua fuga  rocambolesca do presídio de segurança máxima (Instituto Penal Cândido Mendes,  na Ilha Grande), o tempo em que passou foragido no Uruguai, Paraguai e  Argentina; a viagem para a Bahia, onde brincou o Carnaval de 1973, a célebre  visita de cortesia à concentração da Seleção Brasileira de Futebol (na Estrada  das Canoas), aonde chegou acompanhado dos jornalistas Amado Ribeiro e do  repórter-fotográfico Roberto Valença.  Ali ele pode conversar com os atletas e  assistir parte do treinamento físico. Finalmente, a recaptura efetuada pelo  Delegado Regional de Marília (município localizado no interior de São Paulo)  que o reconheceu quando pretendia entrar no principal cinema da cidade para  assistir o filme Um Golpe de Mestre constituíram pontos altos daquele período.  Mariel tornara-se  um dos ícones da crônica policial fluminense. Por uma (in) feliz coincidência,  foi a época na qual  também pontificaram  nas paginas dos diarios Liece de Paula Pinto (o Cão Danado), Lucio Flavio Villar Lírio e seu irmão Nijini, o  cunhado de ambos Fernando C. O.,  Francisco Rosas da Silva o Horroroso e outros bandidos com os quais Mariel mantinha algum tipo de ligação, ou cujas  ações reprimira. Muitas  lendas foram criadas sobre esse período da História Recente e transportadas  para o imaginário popular. Livros como Lucio  Flávio — O passageiro da agonia (de José Louzeiro [posteriormente transformado em filme dirigido por Hector  Babenco]) e A república dos assassinos (de Aguinaldo Silva) nos quais Mariel figurava direta ou indiretamente  trouxeram polpudos dividendos aos autores, além de indenizações pecuniárias ao  ex-detetive que se sentiu prejudicado com os personagens ali retratados  alegando que em hipótese alguma se identificava com eles. A exceção ficou por  conta de Mariel — Um ringo a sangue-frio (de Adriano Barbosa [jornalista a quem dedicava profundo respeito]). 
                                      A cadeia é uma grande  sociedade. Tem de tudo. Tem prisões que têm partos, tem assaltos em esquinas,  tem roubo em cubículos, existe o jogo-do-bicho, tráfico de drogas, loteria  esportiva, existe tudo, enfim, como na rua. Então é uma sociedade. O homem é  retirado de uma sociedade maior, com seus vícios, e colocado numa sociedade que  deveria recuperá-lo para reintegrar-se à sociedade sadia, mas essa nova  sociedade traz a vivência daquela grande sociedade. E com defeitos maiores do  que aqueles que estão soltos. Mariel Moryscotte.  Entrevista à revista IstoÉ, 9 maio  1979. Vai ter pá-pá-pá? Tem que ter pá-pá-pá! Valdomiro Teixeira Gomes, o Cromado [3] indiciado juntamente com  Mariel em vários crimes, no dia do enterro do ex-detetive, no Cemitério do  Caju. Ele pediu aos milhares de agentes da SSP (de todos os níveis, inclusive  delegados) ali presentes, que disparassem suas armas para o alto, como última  saudação ao companheiro assassinado. Embora ele próprio estivesse desarmado,  foi imediata e calorosamente atendido.  Relato do autor, designado  pela chefia de reportagem de O Globo para cobrir o sepultamento de Mariel. 6. Culpa comum Mariel  Moryscotte não poderia ter atingido a notoriedade não fora a colaboração e  (quem sabe?) a cumplicidade de alguns jornalistas. O Ringo de Copacabana, como  chegou a ser apelidado, foi criação de certa Imprensa. 
 Entre os  anos sessenta estendendo-se até a metade dos setenta, percebia-se com clareza o  esforço dos repórteres dos diários na tentativa de elucidar e/ou chegar o mais  próximo possível da solução de casos intrincados (inclusive com acentuado risco  de morte. Episódios rumorosos da crônica policial foram esclarecidos em parte  graças a esse empenho. Tomem-se os exemplos de Luz Del Fuego [Orlando Silva],  Ângela Diniz (a Pantera de Minas [Luiz Carlos Sarmento, Ubirajara Moura]), Claudia Lessin Rodrigues [muito  notadamente Amicucci Gallo, Valério  Meinel, equipes de O Globo e Jornal do Brasil]). 
 Mariel não  desconhecia esse empenho por parte dos repórteres, tanto assim que, a sua maneira,  procurou preservar a relação de amizade com os jornalistas, principalmente da velha guarda.
 Paradoxalmente,  ao mesmo tempo não esqueceu que a sua desdita como policial/bandido fora apontada  pela Imprensa.  7. Como arroz amargo À  semelhança de alguns pistoleiros, heróis e anti-heróis da história do cinema,  Mariel Moryscotte tombou em uma emboscada no canyon das ruas. O assassino, sem que pudesse mensurar o gesto (ou  minimizar os efeitos) reaqueceu um pouco do mito que o ex-detetive representou.  Nos meses seguintes a execução na Rua Alcântara Machado, a população do Rio de  Janeiro tomou conhecimento por intermédio da Imprensa do quantitativo de mortes  que vinham acontecendo.
 Uma delas,  a do detetive Chiquinho, passou quase  com a rapidez de um flash no  noticiário. Ele foi atraído para uma armadilha em plena Avenida Nossa Senhora  de Copacabana. Investigações reservadas apuraram que ele morreu estrangulado  com uma corda de náilon no interior de um automóvel Chevette, levado como se  fora um passageiro adormecido para Niterói (cruzando a ponte Presidente Artur  da Costa e Silva) e desovado em um  local ermo.
 Outras  indicações sugerem que Chiquinho teve  o corpo aberto a faca, foi eviscerado, a cavidade abdominal recheada com  pedras, sendo jogado no mar.
 A execução  de Mariel Moryscotte trouxe à superfície parte do lodo acumulado no fundo da máquina  policial. Afluíram denuncias envolvendo autoridades com a cúpula da  contravenção, foram divulgadas listas de futuras e/ou pseudo vítimas e  exonerações em cascata no âmbito das secretarias de estado de Segurança e  Justiça.
 Expressões  como bola da vez (o próximo a morrer)  e outras até então restritas à esfera policial foram incorporadas ao linguajar  diário. De sua parte, os jornais e emissoras de radio e televisão revelaram  detalhes sobre a indústria da corrupção que grassava no meio policial.
 Para  culminar, o secretario de Segurança, general Waldyr Alves Costa Muniz (o mesmo  que, imediatamente após o Episódio Riocentro, reproduziu para os  jornalistas convocados às pressas para uma entrevista coletiva parte do que  teria sido o último diálogo travado entre o capitão Wilson Machado e o sargento  Guilherme do Rosário [ambos lotados no Destacamento de Operações e Informações  do Centro de Operações de Defesa Interna] antes da explosão no interior do  automóvel modelo Puma que ambos ocupavam na noite de 30 de abril de 1980)  demonstrou total inabilidade ao solicitar que os banqueiros do jogo-do-bicho não demitissem os seus quase 50 mil (na  época) apontadores e fiscais, como conseqüência da retaliação desencadeada pela  Polícia Militar, desejosa de recuperar a respeitabilidade após uma série de  acusações relativas a violações dos direitos humanos.
 Waldyr  Muniz, com total falta de senso, fez exatamente o que não devia, advertindo-os  que os “cortes de pessoal” seriam compreendidos como iniciativas impatrióticas,  pois os “trabalhadores da contravenção” voltariam às ruas (muitos deles  ex-presidiários) e as conseqüências poderiam vir a ser imprevisíveis.
 Tudo  hipocrisia.
 Passados  vinte e sete anos da morte de Mariel Moryscotte, muitos espelhos foram  estilhaçados na tentativa de recuperar, para a Opinião Pública, a imagem do  ex-detetive; ou esclarecer de uma vez por todas de quem partiu a ordem para a  empreitada fatídica da Rua Alcântara Machado.
 Não deixa  de ser fascinante refletir, ainda que sucintamente, sobre a vida e o  comportamento de Mariel e as circunstâncias que o levaram ao desvio.
 Por sua  vez, imperdoável seria esquecer o tom debochado com que sempre pontuava as  declarações, como no exemplo abaixo:
 Mariel: 
                                      Acho que o brasileiro ainda não está emancipado para  se conduzir. Ele ainda tem que ser conduzido, guiado. Ele não é um idealista.  Veja. O povo só quer saber de futebol e Carnaval. Se no dia da Revolução de 31  de Março tivesse um Fla-Flu ela certamente seria adiada. O brasileiro vai na  valsa. Quer alguém que conduza a Nação. Ele não quer dirigir, quer ser  dirigido. É um comodista. A senda do  desvio foi uma opção pessoal. Todos os demais caminhos não lhe acenavam com a  gratificação almejada. Mariel projetou-se às avessas. Conquistou notoriedade a  partir do medo que impunha aos mais fracos, e acabou assassinado por um deles.   Almejou fortuna como derivativo da corrupção, mas não pôde usufruí-la. Teve em  seus braços mulheres famosas, mas, por estreiteza de concepção, não logrou o  privilégio e a felicidade de viver em família. 8. Noticia Complementar A história dessa entrevista é muito interessante. O autor  dessas linhas estava na Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (localizada  em Benfica, Zona Norte do Rio) reportando a prisão de uma quadrilha de  assaltantes, quando foi chamado ao setor cartorário para atender uma ligação  telefônica. Do outro lado da linha, Ely Moreira, o chefe de reportagem da  tarde, solicitou que eu voltasse imediatamente para a redação.  Ali chegando,  formou-se uma espécie de conselho.  O autor e o jornalista Telmo Wambier deveríamos  elaborar uma longa entrevista com Mariel Moryscotte. O fato de ser bacharel em  Direito e estar regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil  facilitaria o acesso à Unidade Especial do presídio Milton Dias Moreira.  Wambier seria “estagiário” do meu fictício escritório de advocacia. Entramos  sem grandes dificuldades e ali ficamos duas tardes inteiras conversando.  Nenhum  de nós utilizou gravador e todas as declarações foram anotadas em blocos de  papel. Na manhã em que O Globo chegou às bancas com a  reportagem, tão-logo entrei na redação fui chamado ao telefone que ficava sobre  a mesa da chefia. Era Mariel. Ele não somente agradeceu pelo fato de as suas  palavras não terem sido “deturpadas” como se colocou à disposição para outras  entrevistas. Por fim, acrescentou que poderíamos dispor dos seus serviços, caso necessário.  Por seu  conteúdo pitoresco e na tentativa de reconstituir a atmosfera daquele momento  singular, eis como publicada noGlobo. 
                                      Matei sim, mas no estrito cumprimento do dever. E sempre chamei a  Perícia depois. Não me arrependo de ter matado. Todos os que matei mereciam  morrer.  A confissão é do ex-policial  Mariel Moryscotte de Mattos, em entrevista exclusiva ao Globo em sua cela na Unidade Especial do Instituto Penal Milton  Dias Moreira, onde cumpre pena pelos dois processos em que foi condenado (em  seis outros, incluindo o último, foi absolvido ou impronunciado). Em suas  confissões, Mariel fala também do assassinato, na prisão, de um preso seu  inimigo, Francisco Domingos Franco Filho — “morreu de susto: ficou assustado  quando uma faca foi enviada no seu coração” — e diz que quando conseguir  “anistia ampla e irrestrita” ou indulto vai ser repórter policial:  “conhecimento do ofício é o que não me falta”.
 Absolvido na última  quarta-feira pelo 3° Tribunal do Júri, o ex-policial Mariel  Moryscotte de Mattos acredita ter chegado ao fim a sua longa peregrinação pelo  banco dos réus.  Embora ainda lhe restem 21 anos de pena a cumprir, dos 29 a que  foi condenado em julgamentos anteriores, ele espera estar em liberdade até  julho de 1980.
 Para isso conta com a  possibilidade de revisão de um dos processos já julgados e com uma “anistia  ampla e irrestrita”, que espera obter do presidente João Figueiredo, já que,  segundo ele, o próprio promotor Ekel Luiz Sérvio de Souza, que o acusou,  considerou o seu caso “um julgamento político”. “Afinal — diz Mariel — eu  também sou um revolucionário das primeiras horas”.
 Com a absolvição de  quarta-feira passada, sua esperança, alimentada ao longo dos oito anos de  prisão já cumpridos, transformou-se numa certeza. E isso o leva a fazer planos  para o homem que, em liberdade, substituirá o “Ringo de Copacabana”, como ele próprio se denomina no livro de  memórias que escreve na bem cuidada cela a que está recolhido, no Instituto  Penal Milton Dias Moreira.
 — Já me inscrevi para o  vestibular de Comunicação que espero fazer agora em janeiro. Se me derem  oportunidade, acho que posso dar uma grande contribuição à Imprensa como  repórter policial. Conhecimento do ofício é o que não me falta.
 Além disso, Mariel diz ter  sido convidado para trabalhar como ator de televisão, numa nova série policial  brasileira a ser produzida logo após ser posto em liberdade.  Pretende, ainda,  continuar pintando, segundo ele sua principal atividade econômica atualmente;  trabalhar como detetive particular e continuar com a sua “pequena indústria de  confecções” iniciada no presídio. “Estou ressocializado” Recostado em suas almofadas de veludo marrom, sobre  uma cama estreita e acolchoada, adaptada à cela, Mariel esmera-se em  gentilezas. Liga o circulador de ar preso à parede; depois um ventilador  pequeno e dirige-se, em seguida, ao seu ateliê de pintura, montado numa cela à  frente. Aí, entre dezenas de quadros inacabados, ele faz um café e serve em xícaras  de louça delicadas. Ao primeiro gole, comenta:
 — Um homem que faz um café como esse não está  ressocializado? — pergunta com uma ponta de ironia.
 Sobre os comentários de que o ateliê é uma das suas  “mordomias” na prisão, ele diz:
 — Pois é, meu irmãozinho. Acusam-me de ter regalias,  dizendo que todos me tratam aqui como um príncipe. Mas você está vendo esse  ateliê? Isso é uma conquista minha, mas não para meu uso particular. É uma  conquista de todos os que estão aqui (na prisão). Qualquer um destes homens que  você vê por aí pode usá-lo à hora que quiser. “Preso também  se trata” Na cela de dormir, o chão acarpetado em amarelo ouro  permite que Mariel dispense as sandálias. Ali ele tem também uma pequena  televisão a cores, um rádio AM-FM acoplado a um toca fitas e um projetor de slides, cuidadosamente arrumados sobre  uma pequena mesa. Numa prateleira pouco acima da cabeceira da cama, cinco  vidros de colônia masculina de diversas fragrâncias. Mariel apanha um dos  frascos cuidadosamente e molha, com suavidade, a barba grisalha e bem tratada.  Depois oferece aos repórteres. Por que você é  tão bem tratado?
 — E vocês acham que preso não pode se tratar? Que  preso não toma banho? Não conheço, no Código Penal, nenhuma restrição à  higiene. Pelo contrário. Além disso, tudo o que vocês vêem aqui foi comprado  com meu dinheiro. Eu trabalho. E ganho bem. Mas como é que  você pode trabalhar aqui?
 Mariel vai a uma cela ao lado e mostra, coberta por  um lençol branco, uma máquina de fazer malhas e tricô.
 — Essa máquina trabalha praticamente o dia todo.  Aqui fazemos uma média de seis camisas de malha por dia. Eu e outros presos que  contrato. É uma maneira de dar trabalho a eles, ajudando na sua  ressocialização. O homem sem trabalho se revolta, se embrutece, e o trabalho  faz parte da nova filosofia penitenciária. E qual é a sua  renda mensal?
 Ele pensa, balbucia alguns números, depois chega a  uma conclusão:
 — Somando tudo, acho que dá uns Cr$ 60 mil por mês.  Isso incluindo a venda dos quadros, a mais ou menos Cr$ 10 mil cada um; a venda  das camisas a Cr$ 320 cada. Acho que é isso.
 Com essa renda, Mariel garante que mantém sua  família com um relativo conforto. Sua mulher, Glaucia, mora com o filho no  edifício Riviera dei Fiori, em São  Conrado. Seus três outros filhos vivem com sua primeira mulher, a ex-atriz  Darlene Glória, hoje convertida ao protestantismo e casada com um pastor. Nasce um repórter Mariel garante que está preparado para o vestibular  e que tem estudado muito. Antes pensava em fazer Direito, mas a experiência de  outros presos que se formaram como advogados fez com que desistisse. “Muitos  tentaram fazer Direito, mas sofreram repressões de promotores e acabaram  desistindo do curso. Eu não vou me arriscar”.  
 Ele acha que, exercendo a profissão de detetive  particular — foi formado pelo Instituto  de Investigações Científicas e Criminais do detetive Bechara Jalkh —  poderá, ao mesmo tempo, trabalhar como repórter policial, depois de formado em  Comunicação.
 — Daqui do presídio já tive oportunidade de auxiliar  várias vezes a Polícia em inúmeros casos complicados, porque tenho grande  conhecimento no ramo. Mesmo não sendo mais da Polícia eu poderia, como detetive  e como repórter, resolver, por exemplo, o caso do seqüestro do Carlinhos e do desaparecimento da  Gabrielle Dayer, que acho serem fáceis de solucionar. E você acha  que poderia se sair bem como repórter?
 — Claro, meu irmão. O que é que vocês fazem nos  casos policiais senão um trabalho de detetive? Quantas vezes vocês não  solucionam um caso na frente da Polícia? Com a minha experiência, de que — acho  — ninguém duvida, posso dar uma grande contribuição à Imprensa brasileira. E o cinema?
 — Vai bem. O “Eu  Matei Lúcio Flávio”, com o meu amigo Jece Valadão está tendo boa aceitação  do público. Ainda não ganhei nenhum dinheiro com ele, mas acho que vai dar.  Tenho direito a dez por cento da renda líquida do produtor. Talvez dentro de um  mês já comece a receber alguma coisa. E você tem  algum outro plano em termos de cinema?
 — Fui convidado para participar como ator numa série  policial para a televisão. Não sei se vai dar, mas se me derem oportunidade  acho que vou me sair bem. Eu gosto de cinema. Agora, tem uma coisa que eu quero  deixar consignado: eu não gosto que me usem sem autorização.  Como assim?
 — Gosto muito do Aguinaldo Silva, mas ele fez um  roteiro em cima do seu livro “República  dos Assassinos”, que, embora ele negue, é a história da minha vida. Quando  eu sair daqui vou ter uma conversa com ele, porque se esse filme sair quero a  minha parte também. Acho que ele vai me entender. Jurado de  morte Mariel Moryscotte diz que o seu relacionamento  dentro da prisão é o melhor possível. Ele está na Unidade Especial da Milton  Dias Moreira, junto com 25 outros detentos, a maioria de profissionais liberais  e ex-policiais condenados. Mas então como  se explicam as ameaças de morte que você tem recebido nos últimos anos, com juras  de morte e essas coisas?
 — Estou jurado aqui dentro pelos caras que prendi.  Um deles tentou me esfaquear. Foi o Domingos Franco Filho. Mas esse morreu um  dia antes do Fernando C. O.  Mas ele morreu  de quê?
 — Morreu de susto. Como assim?
 — De susto. Ficou assustado quando uma faca foi  enfiada no seu coração. Aí morreu. E quem o  matou?
 — Quem sabe?  Mas ele também  tentou matar você não?
 — É verdade. Ele comprou uma faca de um tal Amilton  Carajá, que era meu amigo. O Amilton me contou e disse que o Domingos comprara  a faca para me matar. Aí passei a ficar de olho nele. Daí aprendi a viver na  cadeia. Um dia o Domingos foi chamado para a visita. Pegou o cartão e, em vez  de ir para o pátio, ficou me esperando no corredor. Quando eu passei, ele pulou  sobre mim armado com a faca. Dominei-o facilmente e consegui desarmá-lo. Sabe  como é, fiquei com raiva, então, e quebrei-o todo. Fui autuado por excesso de  legítima defesa na 8ª DP. Dias depois ele foi assassinado. Mas quem matou  Domingos? 
 — Ah, isso eu não sei. Às vezes um grupo de seis ou  sete presos resolve saldar velhas dívidas e acho que foi isso que aconteceu.  Depois aparece um robô batendo na  grade e assumindo o crime, que às vezes nem foi dele. “Eu sou do  Esquadrão” Mariel também é acusado de ter matado muitas  pessoas, quando pertenceu ao grupo “Homens  de Ouro” — equipe formada pelo ex-secretário de Segurança, Luis França de  Oliveira, para acabar com a criminalidade no Rio. Ele admite as mortes.
 — Eu sou do Esquadrão da Morte. Não desse esquadrão  que mata às escondidas e joga os corpos na Baixada Fluminense. Matei sim, mas  no estrito cumprimento do dever. E sempre chamei a Perícia depois. Para mim,  bandido que resiste à bala tem tantas chances de morrer quanto eu. Todas as  vezes em que troquei tiros com marginais e eles se entregaram, eu lhes dava uma  chance. Sempre? 
 — Sempre. Eu acho que marginal também é gente e  todos merecem uma chance. Mas eu não ia ficar esperando o bandido atirar  primeiro. Senão eu dançava, não é,  meus irmãozinhos? Mas você não  se arrepende de ter matado?
 — Nenhum arrependimento. Todos os que matei mereciam  morrer. (Coordenada)Em sete  homicídios só uma condenação
 Mariel Moryscotte de Mattos foi acusado de sete  assassinatos, além de envolvimento com uma quadrilha de estelionatários que  extorquia turistas estrangeiros em traveller’s  checks no chamado “golpe do suadouro”.
 Embora seus inimigos lhe atribuam a responsabilidade  por centenas de mortes, na Justiça ele foi impronunciado nos processos que  apuram as mortes de Arlindo Rodrigues Coelho, o “matador da bandeira dois”; do  assaltante Antonio de Tal, em 1969, e  de Agnaldo Ferreira, em 1975. Mariel foi absolvido pelo 3° Tribunal  do Júri dos assassinatos de Carlos Alberto dos Santos, Nelson Mena e Josias  Vieira Tavares, o Maranhão.
 Dos sete assassinatos, só foi sentenciado — a 19  anos de detenção, mais dois como medida de segurança, pelo juiz Martinho  Álvares da Silva Campos, do 2° Tribunal do Júri — pela morte de  Odair de Andrade Lima, o Jonas, em  1970. Foi também condenado a 14 anos de prisão por crime de estelionato — a  pena foi reduzida para oito anos. Indulto Para que possa obter liberdade até julho de 1980, o  ex-policial espera a anulação da sentença de condenação pelo crime dos traveller’s checks e já escreveu ao  presidente João Figueiredo pedindo a inclusão do seu nome na lista dos presos a  serem indultados no próximo Natal. (Coordenada)“Sob minha  guarda ninguém sofre atentado”
 Mariel Moryscotte de Mattos define-se politicamente  como “um revolucionário”. Nessa linha, em suas memórias, que já têm mais de 300  páginas, ele relata os serviços que prestou aos organismos de segurança no  período mais agudo de combate “aos movimentos subversivos”, como faz questão de  afirmar. É um admirador incondicional do ex-presidente Emílio Médici, em quem  diz que votaria no caso de uma eleição direta.  Para ele, o delegado Sérgio  Paranhos Fleury foi um exemplo de policial competente e dedicado. Mariel também se proclama favorável à abertura  política do atual governo. Para ele, “lugar de brasileiro é no Brasil;  portanto, o presidente Figueiredo está certo em permitir a volta dos exilados  políticos”. Por estes afirma não ter nenhuma antipatia.
 — Eu sou um profissional. Trabalhei na segurança do  ministro Mário Andreazza, mas também trabalharia na do Luiz Carlos Prestes, se  ele me contratasse. Posso garantir que quem estiver sob a minha guarda e  responsabilidade não sofrerá atentado algum enquanto eu estiver vivo. Mariel  revolucionário 
                                      No dia 31 de março de 1964,  eu estava no Palácio Guanabara empunhando minha arma em defesa da Revolução; o  governador Carlos Lacerda mandou que se dessem lenços azuis a todos os que ali  se encontravam, para uma rápida identificação. Posteriormente, como policial  especialmente designado, fui infiltrado nos sindicatos para colher informações  para os órgãos de segurança, correndo o risco de ser assassinado pelos  opositores do novo regime. O trecho citado faz parte da autobiografia de  Mariel, a ser editada oportunamente. Sobre eleições, ele não esconde seu voto  no caso de um pleito direto para presidente da República:
 — Votaria no presidente Figueiredo. Não votaria na  legenda, mas sim no homem. A última vez em que pude votar, votei no delegado  José Aliverti, para deputado. Fui voto vencido, mas não me preocupei com isso.  Gostei muito da administração Médici. Se ele estivesse concorrendo com o  presidente Figueiredo, seria uma parada difícil para resolver. 
 — Quanto ao combate à subversão, eu participei sim,  mas nunca torturei ninguém. Dizem isso mas não têm provas. Também, nunca estive  ligado aos órgãos de segurança como o DOPS ou o DOI/CODI. O regime ideal  Para Mariel Moryscotte, o regime ideal “é o que está  se formando agora, depois da abertura política: com a volta dos banidos, com a  formação de partidos de direita e de esquerda, como o presidente Figueiredo  está fazendo”:
 — Só espero que não me entendam mal; que não pensem  que esteja dizendo que a liberdade de falar seja a baderna. Mas, se esse regime  for bem conduzido, em menos de dez anos teremos uma nação com um poderio de  invejar a qualquer país desenvolvido. Falam que o Brasil é o paraíso do tóxico,  uma coisa e outra. Mas estive lá fora e vi que a juventude dos Estados Unidos,  por exemplo, está minada, estragada pelo tóxico. Então eles querem que a nossa  juventude também entre na mesma e ficam facilitando e passando tóxico para cá,  para que a nossa juventude também se perca e que os homens que vão dirigir o país  amanhã, que são a juventude de hoje, fiquem escravos. Na verdade, eles têm é  medo.
 Mariel não sabe responder qual seria a melhor  solução política para o Brasil. Diz que conhece apenas o que ouve de críticas e  elogios.
 — Acho que o brasileiro ainda não está emancipado  para se conduzir. Ele ainda tem que ser conduzido, guiado. Ele não é um  idealista. Vejam, o povo só quer saber de futebol e carnaval. Se no dia da  Revolução de 31 de março tivesse um Fla-Flu, ela certamente seria adiada, seria  transferida para o dia seguinte. O brasileiro vai na valsa. Quer que alguém  conduza a nação. Ele não quer dirigir, quer ser dirigido. É um comodista.
 Mariel fala também de Luiz Carlos Prestes. “Não compactuo com todas as suas idéias, mas admiro  um homem que diz o que pensa e ele é um desses”. Sobre os parlamentares do MDB,  tem a seguinte opinião:
 — Eu respeito todos e tenho amizade por alguns  deles. Muitos deles vêm até aqui e conversam com a gente. O Dr. Ulysses  Guimarães, por exemplo, sempre, nos dias de Natal, me envia cartões de Boas Festas. Por falar nisso, tenho uma  mágoa do ministro Mário Andreazza, que também acredito seja meu amigo. O Natal  é a época em que devemos esquecer os nossos ressentimentos. Todo Natal eu envio  cartão para o ministro, mas até hoje não recebi uma resposta. NOTAS [1] O seqüestro de Carlos Ramirez, o Carlinhos, foi  praticado na noite de uma quinta-feira, 2 de agosto de 1973. Chefiava a reportagem  do Globo o jornalista Ely Moreira. Os  pais do menino: João Mello e D. Maria da Conceição Ramirez da Costa estavam em  litígio, embora vivessem sob o mesmo teto. [2] Mariel explicou tempos depois aos jornalistas que, após ter sido  ameaçado de morte, resolveu fugir da Ilha Grande a nado, proeza essa  materializada graças ao seu preparo físico e experiência como ex-guarda-vidas.  O problema é que alem da forte correnteza as águas são infestadas de tubarões e  barracudas. Posteriormente foi difundida a informação segundo a qual o  ex-policial fora resgatado em uma das praias ou   na localidade denominada Cais do Abraão, pelos tripulantes de uma lancha  do tipo voadeira, que o deixaram em algum ponto da  chamada Costa Verde, provavelmente  Mangaratiba ou Bracuhy, de onde seguiu para outro destino previamente  combinado.
 Fato emblemático aconteceu na manhã seguinte à  publicação daquela ampla e minuciosa reportagem. Enquanto repórter do Globo credenciado junto às Delegacias  Especializadas o autor chegava à redação por volta das 9h30min, lia e anotava  as indicações da pauta geral e saía para dar início aos trabalhos de campo.  Assim, no momento exato em que entrei no amplo salão onde ficava a redação e me  aproximei da mesa da chefia de reportagem o telefone tocou. Era Mariel. Ele  soube com exatidão que eu acabara de chegar e quis demonstrar a sua  “onipresença” por intermédio de um informante plantado no interior do jornal. Embora eu ainda tenha algumas  suspeitas a respeito do nome dessa pessoa, prefiro não cometer injustiças. De  todo modo ele foi objetivo e cortês.
  — Argolo, você(s)  foram decentes e escreveram exatamente o que eu disse. Não mudaram nada. A  descrição do ambiente foi correta. Muito obrigado. Estou e estarei sempre à  disposição. Não se esqueçam disso. E desligou o  aparelho.
 [3]  Waldemiro Gomes Teixeirafoi um dos  amigos que, emocionado, carregou nos ombros o caixão com o corpo de Mariel  Moryscotte Araújo de Mattos até a sepultura deste, no Cemitério de São Francisco  Xavier, no Caju (Zona Norte do Rio). Entre as 17 anotações em sua ficha  criminal, consta a de ter participado do assassinato de Odair de Andrade Lima,  o Jonas, no Parque do Flamengo. Pelo  que ficou apurado no processo, ele teria sido o autor do desenho de uma caveira  com duas tíbias cruzadas (símbolo do Esquadrão  da Morte) amarrado ao pescoço da vítima com fios de náilon.  Além de  estrangulado, Jonas levou vários  tiros. Segundo policiais que participaram das investigações, na casa de Cromado foi encontrada a outra metade  rasgada da folha de cartolina que ele utilizou para fazer o desenho. Esta e  outras provas consubstanciaram a denúncia do Ministério Público. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARGOLO, J. A.;  WAMBIER, T. M. “As confissões de Mariel Moryscotte — Não me arrependo. Todos os  que matei mereciam morrer”. O  Globo, Rio de Janeiro, 4 nov. 1979, p. 24. ARGOLO, J. A. Arquivo pessoal: documentos e  anotações inéditas. ___________. As  luminárias do medo: vida, paixão e morte da reportagem policial no eixo Rio  de Janeiro-São Paulo. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008. 162 p. ___________. Para  uma didática da reportagem policial. Rio de Janeiro, inédito. 240 p. BECKER, H. Uma teoria da ação coletiva. Rio de  Janeiro: Zahar, 1977. 233 p. GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da  identidade deteriorada. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. 158 p. MARKUM, P.;  RODRIGUES, E. A máfia manda flores – Mariel,  o fim de um mito. São Paulo: Global, 1981. 189 p. MORRIS, T. Desvio e controle – A heresia secular.  Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 170 p. MORYSCOTTE, M.  S/r, Revista Manchete, 17 maio 1978. ______________.  S/r. O Dia, 28 out. 1979.
 
                                      
                                        *José Amaral Argolo é advogado, jornalista, doutor em Comunicação e  Cultura, pós-doutor pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da  Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e professor  da Escola de Comunicação da UFRJ.
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