Nº10 - Jul. 2008
Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 

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ENSAIOS
 


A aventura da notícia no filme "
Babel"

A produção da notícia, sua manipulação e os efeitos que provoca em escala global

Por Genira Chagas Correia*

RESUMO

Em Babel, filme dirigido pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu (Paramount Pictures, 2006), o foco da cobertura jornalística de um dos episódios da narrativa pode ser considerado um caso exemplar do modelo de jornalismo praticado internacionalmente, principalmente pelas grandes corporações de mídia. Na ficção são produzidas três matérias sobre o caso Susan Jones, que ilustram como ocorre a manipulação das notícias durante o seu processo de produção, em relação ao fato noticiado.

Fotos: Reprodução

Este texto discute quatro pontos que envolvem a construção daquelas matérias. São eles: a difusão do medo como catalisador de audiência; a lógica das empresas globais de comunicação que, entre outras coisas, estimulam a produção de notícias superficiais, em detrimento do conteúdo; desvio do foco da notícia pela falta de investigação e de contextualização; além da manipulação das vidas cotidianas.

Palavras-chave: Jornalismo Global / Notícia / Produção / Manipulação / Processos

1. Introdução

Resumo do filme — A narrativa de Babel envolve três episódios em que as ações se desenrolam simultaneamente em quatro países — Marrocos, Japão, Estados Unidos e México. Para essa análise está sendo considerado apenas o episódio central, ambientado em Marrocos, no norte da África. O roteiro conta a história de um casal de norte-americanos, Richard Jones (Brad Pitt) e Susan Jones (Cate Blanchett), integrantes de um grupo em excursão pelo deserto marroquino. Para realizar a viagem, o casal deixa seus dois filhos pequenos nos Estados Unidos, em companhia de uma babá de origem mexicana.

Dentro de um ônibus que cruza as áridas montanhas de um pequeno vilarejo, onde vivem grupos berberes, a protagonista Susan é alvejada por uma bala perdida,  disparada por Ahmed, um adolescente do vilarejo. Junto com Youssef, seu irmão mais velho, ele brincava impunemente com um rifle. A arma foi deixada no local por um executivo japonês, que esteve no deserto para uma caçada. Ao final do passeio, o executivo a presenteou ao seu anfitrião, um berbere de uma das aldeias encravadas entre as montanhas. Este, por sua vez, a vendeu ao pai dos adolescentes.

Sem saber manejá-la, nem suspeitar dos perigos que a arma representava, os garotos saíram para cuidar do rebanho de cabras carregando nas costas a arma de moderna fabricação. Enquanto cuidavam do rebanho e os protegia dos ataques dos chacais, os garotos experimentavam a potência do rifle, disparando balas a esmo. Até que uma delas acerta a turista americana. No cotidiano daquelas vidas simples, o rifle representava um luxo excessivo, uma peça aparentemente desnecessária, embora pudesse ser utilizada na rotina cotidiana.

Babel tem o cuidado de situar, no contexto de uma história que envolve duas grandes potências globais — Japão e Estados Unidos —, um vilarejo onde as pessoas vivem alheias aos fenômenos dos grandes centros urbanos. O cotidiano se resumia à labuta pela existência: as mulheres com seus afazeres domésticos, os homens pela busca de alimento e, entre eles, as crianças. Até que acontece o acidente e a ordem local se desestabiliza.

2. Apuração, manipulação e desinformação
 
A primeira notícia — Passada a primeira hora do filme, ouve-se a narração de uma notícia, aparentemente irradiada a partir do rádio do ônibus. Nesse momento, Susan ainda era socorrida, em meio a moradores que circulavam em torno do acidente, sem entender o acontecido. O enunciado narra: “Houve um acidente perto de Tazarine. Uma americana foi baleada. As autoridades dizem que pode ter sido um roubo. Mas o governo americano sugeriu envolvimento terrorista. O ministro Hassan Hazal disse que as células terroristas foram erradicadas em nosso país e que um ato vulgar de banditismo, seguido por avaliação superficial dos Estados Unidos, não pode arruinar nossa imagem e economia.”

Uma primeira apreciação acerca dessa notícia aponta para a agilidade do rádio como veículo transmissor de fatos ocorridos longe dos grandes centros. Uma crítica mais apurada, no entanto, dá conta de uma nota produzida apressadamente e, por isso mesmo, marcada pela manipulação do acontecido. Contudo, esta primeira notícia determinará os rumos da cobertura jornalística sobre o caso Susan Jones.

No contexto da história, a pressa pode ser medida com base no tempo entre a ação e a notícia ouvida pelo rádio — o ônibus ainda estava parado no local do acidente, a vítima recebia os primeiros socorros e o fato já era notícia. Sendo assim, não é demasiado afirmar que não houve apuração do fato nem a sua contextualização, prática que poderia diminuir as chances de uma notícia desequilibrada e tendenciosa.

Notícias superficiais e sem contextualização, ou seja, produzidas sem considerar a totalidade do próprio fato que noticiam, expressam uma tendência do jornalismo global.  Por saírem do foco e continuarem fora dele, em geral, elas não esclarecem e ainda produzem efeitos de sentido no ouvinte. Um desses efeitos pode ser o aguçamento da percepção do medo.

Sobre o jornalismo sem rumo Marcondes Filho (Hacker Editores: 2000. p. 36) diz: “Jornalismo tornou-se um disciplinamento técnico, antes que uma habilidade investigativa ou lingüística. Bom jornalista passou a ser mais aquele que consegue, em tempo hábil, dar conta das exigências de produção de notícias do que aquele que mais sabe ou que melhor escreve.”

Levando em consideração o enunciado da reportagem, os ouvintes que habitam a aldeia sabem que não houve roubo, como sugeriram as autoridades marroquinas de origem árabe. Nem terrorismo como alegam os americanos. Mesmo assim o acontecido ganha contornos diplomáticos e ideológicos que remetem ao conflito entre as duas nações (Árabe e Norte-americana). O que se verá na seqüência do filme é, por um lado, a repetição de notícias falsas e em escala global. Por outro, na investigação policial do acidente, a ação violenta da polícia.

O filme mostra que, na procura pelos autores do crime, os policiais também não investigaram. Eles cometem outros crimes, talvez motivados pela interpretação da notícia, que aponta como vítima uma americana indefesa em viagem de turismo. O agressor é um atirador árabe, supostamente terrorista.

Para Thompson (Cf. 1995, p. 406) “As maneira de receber as mensagens comunicativas são maneiras de agir”. Na medida em que o ouvinte interage com a notícia e se apropria dela pela interpretação, ele cria significados simbólicos que podem estabelecer ou reafirmar relações de dominação.

Tal apropriação pode ser notada quando os policiais aparecem na aldeia onde moram os jovens dispostos a dar uma solução para o caso. Eles chegam ameaçando os moradores. Quando descobrem que eram os garotos pobres os portadores da arma, já chegam atirando. Alvejado, o mais velho morre nos braços do pai. O mais novo se entrega. A família enlutada e destruída não aparece mais no filme, a não ser por uma cena em que o jovem sobrevivente é mostrado lembrando dos momentos vividos ao lado do irmão.

A segunda notícia — Em contraste com a suposta ação terrorista anunciada no rádio, na região do acidente havia uma rede de solidariedade para salvar a vida de Susan. Um jovem da aldeia que sabia falar inglês encaminhou a acidentada para um local onde pudesse ser socorrida, ainda que precariamente, até a chegada de um helicóptero que a levasse para um atendimento médico seguro.  

Passadas 2h05mim do filme, o helicóptero chega a um hospital em Casablanca, cidade mais próxima ao local do acidente. Alguns jornalistas já aguardam a vítima para dar prosseguimento à primeira notícia — no jargão jornalístico, eles fariam uma suíte do caso Susan.

No heliporto do hospital uma rede de televisão grava uma matéria em que a jornalista diz o seguinte texto: “As fontes de ataque ainda não são conhecidas. Mas está claro que as autoridades marroquinas e americanas darão segurança a todos os cidadãos na área”. A matéria prossegue identificando a vítima — “Susan Jones, americana, mãe de duas crianças” —, enquanto a câmera mostra o embaixador americano em Marrocos falando ao marido dela — “Senhor Jones, sou Ken Clifford, embaixador americano, acharemos essas pessoas sejam quem forem. Obrigado. É só o que temos a dizer agora.”

Com base na primeira notícia que relaciona o fato a uma ação terrorista, a segunda é exibida totalmente deslocada de seu contexto original e já sem a contestação do ministro Hassan Hazal, que tentou não relacionar o acidente a terrorismo, como então sugeriam as autoridades americanas. O que se vê na matéria para a televisão é o desaparecimento da situação de acidente. O foco jornalístico passa a ser totalmente centrado no terrorismo e, a partir daí, a notícia ganha contornos globais.

O enunciado da notícia, agora para televisão, passa a evidenciar uma certeza e não mais uma suposição quando diz que “as fontes de ataque ainda não são conhecidas” e que “as autoridades marroquinas e americanas darão segurança a todos os cidadãos da área”. Ela também abre espaço para que o telespectador entenda que há uma ação criminosa em curso, situação que o coloca em estado de alerta. Com esta primeira reportagem televisiva sobre o caso Susan Jones, os veículos de comunicação de massa envolvidos na cobertura constroem uma notícia centrada no medo do terrorismo. A respeito dos proferimentos, Bourdieu diz: “Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência” (Cf. 1997, p. 26).

A exploração do medo como mecanismo de amplificação de audiência tornou-se uma prática comum no jornalismo. Ao deslocar o fato de seu contexto original e dar e ele contorno ideológico embasado em um falso caso de terrorismo, os jornalistas  manipulam a emoção do telespectador. Sem qualquer objetividade, a notícia cria uma suposta situação que pode colocar vidas em risco. Como o terrorismo não respeita fronteiras, o medo vai se espalhando.

Em Cultura do medo Barry Glassner cita que “os telejornais sobrevivem com base em manchetes alarmistas. Nos noticiários locais, onde os produtores vivem à custa da máxima ‘se tem sangue, não tem pra ninguém’, histórias sobre drogas, crimes e desastres constituem a maioria das notícias levas ao ar.” As notícias sobre terrorismo têm alcance mundial e constantemente ganham destaque.

A terceira notícia — Nos minutos finais de Babel (2h12mim), a terceira reportagem sobre o caso é exibida no contexto de um bar em Tóquio. O policial japonês envolvido na apuração da história do rifle deixado em Marrocos, ao sair da casa do executivo investigado, entra no referido bar. Enquanto toma um drink, ele vê uma apresentadora narrando a notícia. “Susan Jones, ferida num ataque terrorista, teve alta do hospital em Casablanca de manhã, hora local.

Os americanos tiveram um final feliz após cinco dias de muitos telefonemas e nervosismo.” Naquele momento, o agente policial parece não se dar conta de que a notícia que acabava de ouvir tinha relação com o caso por ele investigado. Ele não esboça qualquer reação e volta-se para seu drink.

3. Comentários finais

O desfecho do caso Susan Jones é também o final de uma cobertura jornalística que se perde do fato que a originou e termina por não fazer mais sentido enquanto notícia. Mas a desinformação gerada nos cinco dias de cobertura deixou marcas pelo caminho.

Seguindo os passos da construção das três notícias veiculadas em Babel, nota-se a falta de atenção para o que talvez fosse o ponto central da apuração que não houve.

A pergunta deixada de lado é: como uma arma ultramoderna foi parar em um lugar tão distante e sem indícios de que tenha sido adquirida para fins terroristas? Uma explicação possível seria que, ao desviar o foco da notícia para uma ação terrorista, a produção faz desaparecer um fio condutor que poderia colocar em pauta o debate sobre o armamento da população civil, em nível mundial. Na ficção ou na realidade essa pauta não é interessante, nem para a indústria bélica nem para as empresas de comunicação.

Por um lado, a indústria bélica é uma das fontes de riqueza das grandes potências. Por outro, os conglomerados de comunicação são aliados que se beneficiam do armamento mundial, na medida em que as ações violentas resultam em altos índices de audiência. A sinergia entre as duas indústrias, jargão do mundo globalizado para expressar a junção de esforços, rende também o medo, que retro-alimenta as duas indústrias. 

Bourdieu (Cf. 1997, p. 28) assinala que “os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam de o efeito de real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização.

Ela pode fazer existir idéias e representações, mas também grupos. As variedades, os incidentes e os acidentes cotidianos podem estar carregados de implicações políticas, éticas, etc. capazes de desencadear sentimentos fortes, freqüentemente negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo-ódio do estrangeiro e a simples narração, o fato de relatar, to record, como repórter, implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização).”

A ação jornalística em Babel exemplifica os descaminhos da produção de uma notícia. Acontece um acidente comum. Escolhido entre tantos para ser noticiado, ele não é investigado, em vez disso, é transformado em atentado terrorista, deixando de lado o foco da questão: a facilidade de compra e porte de armas de fogo. A notícia de uma ação terrorista, então, vai determinar os rumos da investigação policial. O desfecho da cobertura mostra o final feliz da americana Susan Jones.

Mas não menciona a destruição de uma família inteira de aldeões. Essa ação mostra, ainda, como os veículos de comunicação operam e como o resultado da operação manipula opiniões. A esse mecanismo Bourdieu chama de violência simbólica, uma vez que ela ocorre com a cumplicidade de ouvintes e telespectadores. 

O pouco tempo para a produção de uma notícia, a política editorial da empresa e os espaços exíguos de que dispõem rádio e televisão para a sua veiculação estabelecem uma espécie de censura na redação do texto e na escolha das imagens que a compõe. O resultado é um produto final que mais confunde do que informa.

E, ainda por cima, pode causar pânico. A respeito da produção para televisão Bourdieu (Cf. 1997, p. 19) comentou: “...a limitação do tempo impõe ao discurso restrições tais que é pouco provável que alguma coisa possa ser dita.”

Informações técnicas sobre o filme:

Título Original: Babel
País de Origem: EUA/ México
Ano de Lançamento: 2006
Estréia no Brasil: 19 jan. 2007
Direção: Alejandro González Iñárritu
Site Oficial: http://www.paramountvantage.com/babel

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

GLASSNER, B. Cultura do medo. São Paulo: Editora Francis, 2003.

MARCONDES FILHO, C. Comunicação e Jornalismo: a saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000.

MORAES, D. “O capital da mídia na lógica da globalização”. In: MORAES, D. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização, cultural e poder. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.

THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.

_____________. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

*Genira Chagas Correia é doutoranda pela PUC/SP, jornalista e editora de conteúdo do Portal UNESP, da Universidade Estadual Paulista.

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Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]