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"Notícias Diversas"
Apontamentos para a história
do fait divers no Brasil


Por Valéria Guimarães*

Às vésperas do Natal do ano de 1910, no dia 8 de dezembro, o leitor de um dos maiores jornais paulistanos, O Estado de S.Paulo, podia ler nas suas últimas páginas a notícia que segue abaixo transcrita.

Os Desesperados

Uma rapariga que tenta suicidar-se, ingerindo querosene e alvaiade [1]

Maria dos Santos é o nome de uma rapariga de cor preta, que reside à rua Joaquim Nabuco, 18. Maria há muito enamorara-se perdidamente de um caboclo espadaúdo, possuidor de fortes bigodes e cabeleira encaracolada. João - assim se chama ele - correspondeu durante alguns meses à afeição que lhe dedicava a rapariga e, diariamente ia visitá-la, acompanhando-a a diversos cinemas no bairro do Brás. Estavam as coisas neste pé, quando João conheceu outra rapariga, a quem principiou a cortejar. Maria soube do caso e enfureceu-se, fazendo-lhe ver o seu procedimento incorreto, enganando as duas mulheres ao mesmo tempo. João, que já se havia aborrecido dela, achou magnífico o pretexto para acabar com aquilo, e assim o fez. A infeliz Maria, desesperada com o procedimento do seu namorado, ficou muito triste e escreveu-lhe diversas cartas chamando-o, suplicando-lhe que não fosse tão ingrato, que tivesse pena dela, e que se não atendesse a seus rogos, matar-se-ia. João, seriamente preocupado com sua nova apaixonada, não ligou importância ao caso. Maria esperou debalde alguns dias e, vendo que ele não mais a queria, resolveu por em prática o que prometera. Assim é, que ontem à tarde, recolheu-se a seu quarto e encheu um copo de querosene. Em seguida, adicionou-lhe uma boa porção de alvaiade em pó, ingerindo tudo de um trago. Momentos depois principiou a gritar desesperadamente, alarmando os vizinhos, que correram a comunicar o que se passara à polícia do Brás, comparecendo ao local o capitão Ancede, primeiro subdelegado, acompanhado do sr. dr. Marcondes Machado que fez os primeiros curativos. Maria, cujo estado foi considerado grave, ficou em tratamento em sua casa. [2]

O título da reportagem salta aos olhos no meio de outras tantas notícias: "Os Desesperados".

Este era um dos títulos normalmente usados pelo O Estado de S.Paulo para notícias de suicídios por amor. O leitor familiarizado com o jornal tinha nele uma identificação imediata do assunto a ser tratado. Talvez ao percorrer as páginas do periódico seu olhar se detivesse nesta notícia, atraído pela manchete que, de antemão, revelava seu conteúdo: mais um suicídio por amor ocorria na cidade. Sendo atento, certamente sabia que com o passar dos anos estas notícias de suicídios por amor se tornavam mais comuns.

Era só ir folheando o jornal até chegar na seção Notícias Diversas colocada em destaque antes dos anúncios e depois das notícias de conteúdo informativo chamadas de Telegramas. Neste caso o drama era de Maria e João. No dia seguinte "Os Desesperados" seriam outros, como outros existiram nos dias anteriores.

A história da crônica acima é, em resumo, a história de Maria dos Santos que sofria pelo abandono e tentou se matar por amor. Levando em conta que a imprensa paulistana podia ser considerada um espaço para debates centrais na época estudada [3] e que o período escolhido no recorte é de definição das feições da República recém-instaurada, esta notícia deve trazer nas entrelinhas algo mais sobre a sensibilidade de uma época.

Uma história contada sempre em terceira pessoa, onde é sempre o outro que se mata, traçando uma linha imaginária que coloca o jornalista e quem lê de um lado e os suicidas ou "eles", "os desesperados", do outro - uma distância afirmada entre eu e ele, entre o aqui e o . [4]

Deste "outro", a primeira coisa destacada pelo cronista é a cor da pele: a "rapariga de cor preta". Esta menção não é gratuita. Designa o lugar que Maria ocupava na sociedade, denota a condição social de uma pessoa pobre, o que é confirmado pelo endereço dado a seguir, rua Joaquim Nabuco, na parte mais pobre do bairro do Brás. A distância social é traduzida na distância física imposta pela aparência do corpo e pela topografia da cidade, que separava negros e brancos, bairros de elite de bairros de pobres. Até meados do século XIX, o Brás não passava de um conjunto de chácaras, algumas pertencentes à gente abastada como a Marquesa de Santos.

Em 1874, na gestão do Presidente de Província João Teodoro Xavier (1872-1875), começa a ser arruado e a região, drenada. Mas, ainda em 1910, na época em que foi publicada a notícia sobre a tentativa de suicídio de Maria, o Brás era assolado pelas enchentes da Várzea do Carmo. Localizado na Zona Leste da capital, desde o final do século XIX era conhecido por ser área fabril. [5]

Entre 1900 e 1910 algumas de suas principais ruas foram pavimentadas, o que fazia parte dos preparativos para receber a energia elétrica, os novos bondes, também elétricos, e valorizar os loteamentos que deveriam ser vendidos com vantagem. [6]

Era separado do centro da cidade por esta área alagadiça conhecida como Várzea do Carmo, reduto de insalubridade, onde o mato crescia e o lixo era jogado. Mesmo com as reformas urbanas que começavam a ocorrer, os problemas das enchentes não se solucionavam. A principal avenida do Brás era a Rangel Pestana e, por este motivo, era um pouco mais tratada que o entorno. Por ela passavam os bondes elétricos que faziam ponto final no Brás, Belém e Penha e as linhas de trem da São Paulo Railway a cruzavam na altura da Várzea do Carmo.

E era justamente neste trecho em que morava a "preta" Maria, a poucos metros da Rangel Pestana, da rua do Gasômetro, que fazia ligação com o centro, e do Largo da Concórdia. Jacob Penteado que morava não muito longe dali, por volta de 1910, na rua Benjamim de Oliveira, lembra que "Qualquer pancada de chuva inundava-a (...) Muitas vezes, a água chegava até o peitoril da janela." [7]

A região da Várzea do Carmo era "então cheia de valetas, lagoas e mato bem alto. À noite era perigoso passar por ali, devido aos marginais que pernoitavam nas moitas." [8] Era toda uma área que não era bairro, embora pessoas dormissem ali, como testemunha o autor, pertencente a uma família italiana pobre. E isso caracterizou os arredores como lugar lúgubre, com habitações coletivas e improvisadas e sujeita a enchentes.

Enquanto isso o bairro do Brás era urbanizado tendo recebido imigrantes italianos em abundância. Esta zona de transição que incluía a rua Joaquim Nabuco continuava precária concentrando a população mais pobre, na sua maioria negros, trocadilho irônico com o nome da rua. Nele "construíram-se fábricas, chaminés por toda a parte, a forja, o malho, os teares, os motores, os dínamos." [9]

Isso fez com que o Brás ficasse conhecido como bairro italiano embora a presença de negros também fosse maciça. Após a abolição da escravatura em 1888, a cidade se mostrou destino possível, onde a demanda por serviços atraía essa população abandonada à própria sorte.

O Brás aos poucos passa a ser identificado com a modernidade da indústria, enquanto que a Várzea do Carmo é vista como bolsão de miséria que impede a cidade de ser moderna.

As imediações da Várzea eram ainda piores que lugares como o Brás, cujas ruas não tinham calçamento e onde, com exceção das vias principais, não havia fornecimento de energia elétrica ou outros serviços, eram habitados por este contingente cada vez mais numeroso que se dirigia à cidade em busca de alguma chance de sobrevivência. [10]

Abrigando casas modestas, não raro coletivas, avizinhadas de chaminés fumegantes e fumacentas que impregnavam o ar, este bairro tinha entre seus índices uma das maiores taxas de mortalidade infantil da capital do café. [11]

Suas ruas eram muito movimentadas, sobretudo nas proximidades da casa de Maria, que ficava ao lado da Central do Brasil [12] e próxima à hospedaria dos Imigrantes, motivo pelo qual havia várias pensões na região. [13]

Parece clara a intenção do cronista em traçar uma ligação entre a cor da pele, a pobreza e o lugar que Maria ocupava na cidade, como se estes fatores tivessem uma relação direta. Este é um dos traços característicos do jornal O Estado de S.Paulo: ser, assumidamente, o porta-voz das novas teorias da época que relacionavam os valores de progresso e civilização com o determinismo então corrente, o qual estabelecia uma ponte entre herança genética e traço de caráter, incluindo aí a posição social ocupada pela pessoa, conseqüência de sua inaptidão e inferioridade inatas. [14]

Na continuação de nossa crônica, a descrição de João não é menos instrutiva: ele é descrito como caboclo, o que equivalia a dizer que não era branco, era de uma "raça inferior". Assim como Maria, seu lugar na sociedade ficava calcado na qualidade de mestiço que lhe era atribuída.

O termo "caboclo" era empregado comumente, na época, como sinônimo de indígena, por sua vez vistos como o último lugar na escala racial, o protótipo do selvagem.

Por volta de 1840, o diplomata piemontês A. Alloat esteve na corte de D. Pedro II, no Rio de Janeiro, quando descreve "A Imagem dos Negros e dos Índios no Ambiente da Corte" e ao se referir ao processo de "civilização" dos índios Botocudos diz:

Alguns caboclos já foram empregados na Marinha Imperial, e creio que nela haveria um maior número se fossem mais bem tratados, mas acostumados aqui, a crer que o melhor tratamento é o chicote, ele é empregado indistintamente contra todos, o que é causa de que nenhum marinheiro estrangeiro queira se engajar; e assim, as equipagens da Marinha Imperial são compostas do rebotalho da sociedade, que é arrebanhado à força. [15]

Ele se refere aos indígenas como "caboclos" e "rebotalho da sociedade", obrigados ao trabalho duro da Marinha na base da violência física e do chicote, expediente corriqueiro no processo de "civilização" empreendido pelos colonizadores portugueses.

Euclides da Cunha em Os Sertões, cerca de um século depois ainda se referia aos indígenas e seus descendentes como caboclos. O termo "caboclo", portanto, equivalia a "índio", e não apenas "mestiço de branco e índio". Tinha um sentido extremamente pejorativo na época. [16]

João, "caboclo espadaúdo" - que quer dizer o que tem espáduas largas; largo de ombros - possuidor de fortes bigodes, ou seja, fisicamente forte e viril, traduz a imagem de um trabalhador braçal tal qual seus remotos antepassados. Ele podia ser o indígena aculturado que vinha para a cidade servir de mão-de-obra barata, engrossando a parcela dos baixos extratos sociais, ou mesmo um mestiço, cafuzo, visto sua "cabeleira encaracolada".

Um ou outro, índio ou mestiço, faziam parte de tudo aquilo que a alta sociedade repugnava como inferior ou selvagem. Ele era visto como sujeito sem caráter, sendo estabelecida uma relação entre sua aparência e as atitudes vis praticadas contra sua namorada, traindo-a. Sua condenação como degenerado será a marca das discussões sobre raça e nação nesta época, aliás, conceitos que se confundiam no pensamento erudito local.

Parte da opinião pública alimentava perspectivas bastante negativas com a mestiçagem, sobretudo até o 1900. Tomava-se como certo o resultado degenerativo desse processo para a constituição da população brasileira, onde o elemento negro dominaria, nos relegando definitivamente aos mais baixos degraus na escala da evolução. Aos poucos a discussão abre espaço para o otimismo que cercava a idéia de branqueamento, ou seja, para a possibilidade de uma mestiçagem regenerativa, que nada mais era que a tentativa de adaptação do racismo europeu às particularidades locais. [17]

Nesta e em outras crônicas publicadas em O Estado de S.Paulo estavam presentes várias facetas deste imaginário que fazia circular discussões e polêmicas sobre a questão da constituição da raça brasileira e suas implicações sociais, ainda que de maneira subliminar.

Continuando a narrativa, o cronista traz para o leitor um pouco de cenas cotidianas de intimidade: um namoro, o passeio nos cinemas, a traição de João, a fúria de Maria. Assim ele segue, sempre levando seu leitor a emoções sucessivas causadas pelo antagonismo dos sentimentos em jogo, como num folhetim, como num filme.

Quando ele diz que "João correspondeu durante alguns meses à afeição que lhe dedicava a rapariga" mostra que a relação entre o casal era algo passageiro, sem compromisso, tendo ido além da expectativa já que João dedicava afeição à "rapariga" e "diariamente ia visitá-la, acompanhando-a a diversos cinemas no bairro do Brás".

Não era um namoro. Maria e João tinham um "caso" e ir aos cinemas de bairros pobres como era o Brás queria dizer que João levava Maria a um lugar escuro, onde seus corpos poderiam ficar mais próximos do que a moral conservadora da época permitia, sujeitos à magia sensual da irradiação das imagens gigantescas na tela, lugar de lascívia e bolinação.

Os cinemas nesta época eram improvisados em barracões de zinco com "cadeirinha dobráveis, tipo cervejaria". [18] Jacob Penteado ia "assistir cinema, então, ainda grande novidade" no Teatro Colombo, no mesmo Brás que circulavam os personagens de nossa crônica de tentativa de suicídio por amor.

As películas ali apresentadas eram interessantes. À guisa de cinema sonoro, viam-se cenas onde aparecia um tenor, trajado a caráter, cantando trechos de óperas, mas a voz vinha de um fonógrafo, situado atrás da tela. Pagava-se duzentos réis, na "galinheiro", e quinhentos réis (adultos), na platéia. [19]

O mesmo memorialista comenta a inauguração de outro cinema, o Cinema Belém, no início da década de dez, como uma verdadeira festa pública "um acontecimento sensacional para a época". [20] Com a fachada do barracão de zinco decorada com "lâmpada multicores e uma estridente campainha ao alto, que trilava sem cessar", [21] uma "furiosa" tocando valsas para a "seleta assistência" que iniciou "furioso rebolado, ali mesmo, na calçada". [22]

As sessões eram corridas, com várias exibições de filmes na sua maioria franceses, de natureza variada: comédias, musicais, ficção científica como o "Viagem à Lua" de Melies, [23] filmes de amor como "Delírio de Amor", dramas e crimes. No cinema aconteciam também espetáculos circenses e de variedades.

O Cinema Belém não apresentava apenas filmes. Eram comuns os espetáculos de variedade, com artistas de toda espécie. Lembro-me de Pimpinella, "soubrette" (hoje seria vedeta) italiana que, com seu charme e trejeitos, levou à falência um jovem negociante sírio, estabelecido na esquina da Avenida Celso Garcia com a rua Dr. Clementino, o qual, por ela, fez loucuras e acabou falando sozinho. Amaram-se durante alguns meses e algumas dezenas de contos, como diria nosso velho Machado de Assis. [24]

Estes cinemas de bairro como os que Jacob Penteado e nossos João e Maria freqüentavam cobravam ingressos mais baratos que os cinemas do centro da cidade e que as entradas de grandes teatros, freqüentados em sua maioria pelos abastados. Apenas alguns destes, incluindo o Belém e o Colombo, tinham acompanhamento musical.

Tocava-se mazurca, para as fitas naturais; polca ou maxixe, para as cômicas, e uma valsa bem langorosa, triste, chorosa, para os dramas. [25]

Ir ao cinema, portanto, consistia em um programa muito popular. Seu encanto desbancou a fotografia e outras técnicas que o precederam com a intenção de recuperar a aparência de realidade da imagem vista em profundidade como a fotografia em três dimensões. Esta última havia virado moda, circulando, inclusive, em cartões-postais.

Neste caso, o uso de estereoscópios tornava a fotografia "3-D" muito inferior ao cinema, que dispensava qualquer tipo de intermediário entre o olho e o objeto visualizado, ale, é claro, da recuperação do movimento que a "fotografia animada" [26] proporcionava.

A imagem do cinema é, então,

Mais completa que a fotografia, pois tem aliados movimento e palavra, tem possibilidade de persuadir o público (...) [tem o] uso da mensagem dramática, captação de pequenos detalhes gráficos e desenhos animados; (...) câmera lenta; reprodução fiel das imagens, gestos, movimentos, sons, palavras, entonações; (...) alto índice de atenção devido à projeção em sala escura eliminando interferências. [27]

Assistir a um filme torna-se uma experiência que dá ilusão da própria experiência de realidade, [28] pois os objetos adquirem relevo e detalhe enquanto elementos subliminares "são utilizados pelos cineastas para produzir impactos afetivos". [29]

Percepção, imaginação e noção são tocados pela imagem fulgurosa da emanação de luz da tela a resplandecer na obscuridade da ambiente, um estímulo ultraluminoso que "de certo modo hipnotiza o espectador" estado que é facilitado pelo "desaparecimento de estímulos sensoriais concomitantes, relativos à vida real". [30]

O primeiro fator sugestivo que há que ter em conta é o ambiente escuro em que o espectador deve submergir para poder completar a imagem. A pouca luz produz um isolamento exterior e reconcentra o espectador, evitando-lhe toda a distração. Assim o espectador fica disponível e aberto para a influência que o cinema queira exercer sobre ele. [31]

O que não quer dizer que o espectador seja passivo, ao contrário, nesta situação ele "desenvolve uma grande atividade projetiva". [32]

Nicolau Sevcenko aponta com precisão o quanto este espetáculo tem de encantador, atestando seu poder sedutor e de mobilização das atenções.

...o cinema é uma arte feita para os olhos e o subconsciente, não para a razão ou a explanação verbal. É por isso que o cinema está mais próximo da mitologia que da narrativa ou da história, com sua estrutura orgânica e base verbal. [33]

E, de fato, esse poder que tem o cinema de transformar pessoas em "mitos", catalisadores da atenção das massas anônimas que neles procuram referências, sempre foi um dos seus maiores atrativos.

Mitos materializados na figura dos heróis ou da heroína, do mocinho ou da mocinha, que formavam o par romântico preenchendo o ambiente do cinema com cenas sensuais, muitas vezes explicitamente eróticas enquanto o espectador mergulhado na escuridão podia exercitar o próprio estado de excitação com a companheira ao lado. Era muito provável que o viril João compartilhasse cenas deste teor com Maria no escurinho do cinema do Brás para onde a levava "diariamente".

"Estavam as coisas neste pé quando João conheceu outra rapariga", outra "Maria" qualquer, e com ela deve ter continuado a gozar do ambiente de "intimidade das salas escuras do cinema" [34] e toda a bolinagem que a penumbra das salas, a proximidade dos corpos e as cenas de amor incitavam. [35]

São tipos condenados em todos os sentidos pela moral do cronista e, em conseqüência, pela moral da "boa sociedade" que ele representa. João, um caboclo que vivia às voltas com raparigas, um promíscuo; e Maria, uma prostituta talvez, se expondo às bolinagens nos cinemas da cidade.

Restava à mulher traída escrever cartas de amor e de súplicas ao objeto do desejo, fato digno de nota pelo cronista, afinal Maria era negra e pobre e seria mais aceitável neste contexto se fosse analfabeta. Resta-nos supor que esta afirmação do jornal era pura invenção ou que aí viesse implícita a insinuação de que ela fosse uma daquelas leitoras de perigosos romances que incitavam ao suicídio. Coisas da época.

De outro lado havia uma remota chance de que fosse alfabetizada, mas neste caso, sua escrita era tão condenável quanto ela, escrita que só servia aos desígnios ignominiosos deste amor vulgar e patético. A difícil vida de Maria dos Santos, moradora dos arredores da insalubre Várzea do Carmo, naquele trecho sórdido do bairro do Brás, sequer é citada pelo cronista. Para ele e seu leitor isso parece muito claro ao localizar sua casa, sua cor, sua classe.

Ao mesmo tempo, para os contemporâneos, o ato violento do suicídio não poderia resultar de causas relativas a questões sociais que assolavam a capital paulista com todo tipo de problemas, ou seja, um crescimento acelerado que acentuava a diferença entre ricos e pobres, sobretudo no usufruto das muitas novidades que simbolizavam os valores da civilização: e isso significava boa moradia, educação, saúde, luz elétrica, água encanada, remédios, utensílios domésticos, enfim, tudo que a modernidade já podia propiciar mas que poucos tinham acesso.

Estava implícito no discurso do jornalista ao seu leitor, estabelecendo uma cumplicidade entre os dois, algo que ligava o suicídio à cor da pele, à posição social dos retratados e, acima de tudo, ao desequilíbrio de uma paixão doentia e desesperada. Enfim, o suicídio vinha claramente vinculado à degeneração.

Para o leitor atual a narrativa pode apresentar um tom excessivamente dramático, dado pelos recursos literários que o cronista lança mão, e chega mesmo a fazer rir do lugar comum a que foram reduzidos os personagens, reais ou não.

A história tem então seu nó narrativo, seu ápice, com a tentativa de suicídio de Maria. A partir daí perde o andamento literário, meio romântico, meio naturalista, encerrando com dados formais como procedimentos oficiais e a informação do estado de saúde da moça.

Existia, contudo, uma designação precisa para este tipo de reportagem sensacionalista que teve seus primórdios em meados do século XIX e que tinha de péssima reputação entre a camada culta da nossa elite, sejam literatos, juristas ou profissionais da saúde, responsáveis por colocar em ação os planos de regeneração no início do século XX.

As primeiras questões formuladas então foram: o que era esta notícia? E qual sua classificação na história da imprensa?

Desgraça pouca é bobagem: o conceito de fait divers

Uma vez que foi apresentada a notícia no item anterior, é possível conceituá-la. Num primeiro momento, ela não passa de uma fórmula revelada muito eficaz para chamar a atenção dos leitores de jornais do início do século XX. Muito parecidos com a tentativa de suicídio de Maria, tantos outros suicídios por amor povoavam as páginas de periódicos nacionais e estrangeiros, sérios, mundanos ou jocosos.

Rápido sentimos o tom exagerado, extraordinário, romântico e dramático da narrativa. Na história de João e Maria, o caboclo e a negra, encontramos elementos do melodrama: o par enamorado, o amor não correspondido, a traição, a separação dos amantes, a carta de súplica e ameaça e, enfim, a tentativa de suicídio. Imagens sucessivas de gente desesperada, como diz o título, envolvida em verdadeiras armadilhas da vida, como se fossem personagens de um emocionante romance.

A esse "...relato romanceado do cotidiano real" chamamos de fait divers. [36]

Em um fait divers encontramos o tom mundano e indefinido do cotidiano. Não sabemos bem quem é a "infeliz Maria" ou o conquistador João. Sequer se foram pessoas reais, se existiram. Ainda que existissem - como tenta atestar a indicação do endereço - ou que a tentativa de suicídio tenha sido real, é possível que os personagens resumam qualidades de seres genéricos e anônimos na cidade que crescia.

A história contada com tantos e precisos detalhes só aumenta a incerteza e, por vezes, se tornam até cômicas as observações mais íntimas feitas por quem escreve. Vemos então aqui algumas das características do fait divers como a contradição, o patético e a presença da ficção.

Na notícia "desgraça pouca é bobagem", como diz Marlyse Meyer, não existe uma oposição rígida entre ficção e realidade. Sua fórmula reúne informação e invenção ao mesmo tempo, a ponto destas se confundirem, tênue linha separando real e imaginação.

Detalhes como saber a quais cinemas João levava Maria, que ele começou a cortejar outra moça antes de terminar com ela, que Maria se enfureceu e a que horas ela se recolheu para ingerir o veneno são informações que o bom repórter policial podia colher na delegacia ou no burburinho do diz-que-diz-que formado pelos próximos, vizinhos e conhecidos, no meio da confusão. Mas são por demais supérfluos para quem deseja apenas informar. Há muita chance de serem invenções com base na realidade.

Junto a outras notícias sobre os ocorridos de última hora, as seções de fatos diversos normalmente reservavam um espaço vago no jornal para tudo o que não se classifica ou, como diz Roland Barthes, o fait divers é "uma classificação do inclassificável". [37] São crônicas as mais variadas onde a narração de crimes é apenas um exemplo.

O fait divers com a tentativa de suicídio de Maria aparece na seção Notícias Diversas de O Estado de S.Paulo que é o nome usado pelo jornal para variedades. Nela o leitor podia encontrar diariamente manchetes como essas: "Mordido por um cão", [38] "Drama de sangue", [39] "Tentativa de Suicídio", "Queda e ferimento", "Amor Funesto", "Desastre", "O voto feminino", "Agressão num botequim", "Os Amigos do Alheio", "Polícia de Costumes", "Menor Espancado", "Carnaval", "Ódio e Sangue", "Loucura Fatal", "Os Desocupados", "João Cândido", entre outros.

Temos ainda a divulgação de boletins estatísticos, informações sobre recrutamento, campanhas higienistas, reportagens sobre greves, visitas ilustres, esportes, entretenimento, folhetim, enfim, o cotidiano em geral.

Essas chamadas exerciam um forte magnetismo sobre o leitor que se formou após a consolidação da imprensa industrial: [40] lá ele encontrava de tudo, de prodígios, monstros, acontecimentos fantásticos a crimes passionais, obituários, esquetes cômicos, a presença excepcional de autoridades na cidade e banalidades de todo tipo. [41]

Os leitores eram atraídos por temas comuns da cultura popular e por uma estrutura inovadora, que combinava escrita e fórmulas orais, permitindo o acesso à leitura por quem não tinha grande intimidade com a cultura do impresso.

O assinante, parte do modesto número de letrados, tinha ali notícias sobre um mundo que não lhe pertencia.

Diferenças ente a boa sociedade e a população em geral sempre existiram, mas aumentaram consideravelmente neste contexto de urbanização. A elite se tornava cada vez mais apartada ao convívio com seus subalternos e adotava signos europeus sintonizados com o que havia de mais sofisticado, ostentando distinção. [42]

Esse era um novo tipo de jornalismo que aos poucos substituía as folhas de cunho político, em geral efêmeras, abundantes durante o século XIX.

No Rio de Janeiro, a difusão da imprensa e destes novos gêneros foi anterior a São Paulo, ainda no Império. Em São Paulo é apenas em inícios do século XX que podemos falar em formação de um mercado consumidor de jornais nas maiores cidades do país, atingidas que foram pelos ventos da revolução científico-tecnológica. [43]

Havia a óbvia intenção de aumentar as vendas dos jornais com notícias como essas que o fait divers passa a ser um capítulo da história da Imprensa, já que, com sua escrita familiar reafirmava os estigmas tradicionalmente construídos e a separação entre o "eu" - um leitor pertencente à elite comprometida com o projeto conservador ou um leitor que tentava se tentava se equiparar a tal condição - e o outro - tudo aquilo de que as camadas ascendentes queriam se desvincular.

Ao mesmo tempo revelava um esforço dos editores em reconhecer que existia uma forma diferente de se relacionar com a escrita, que não a erudita, num esforço de "considerar que havia outra cultura na França, que a cultura dos leitores não era apenas a dos intelectuais, apenas a dos que iam às livrarias." [44]

Certamente ser alfabetizado era parte indispensável do status que ocupava um cidadão da alta roda. Em um país de maioria analfabeta [45] saber ler e escrever era sinal de distinção.

Mas, saber ler e escrever, articular o pensamento racionalmente, decifrar complexos códigos eruditos que exigem domínio da tradição, era muito mais que ser alfabetizado e leitor de Notícias Diversas. Era firme sinal de que se pertencia a uma restrita camada intelectual. O que não quer dizer que todos os intelectuais compactuassem com os projetos da elite conservadora.

As origens do fait divers

O fait divers foi engendrado na França, como seu nome atesta, e sua história se confunde com a do feuilleton-roman.

Embora estes nomes tenham sido traduzidos para o português, aparecendo nos jornais nacionais como Notícias Diversas, Fatos Diversos, Variedades ou Folhetim, em todos os compêndios compulsados se usa a expressão fait divers no idioma de origem. O uso da expressão no francês fez com que nós mantivéssemos o que parece ser uma convenção, apesar de usarmos a expressão Notícias Diversas quando nos referimos exclusivamente ao contexto brasileiro e do jornal O Estado de S.Paulo.

Resultado de uma combinação entre formas tradicionais de informação, com o melodrama e suspense do romance folhetim, o fait divers foi avidamente consumido no período do recorte desta pesquisa. [46]

Ele foi inventado bem depois do folhetim. O feuilleton, inicialmente, era apenas uma seção no rodapé do jornal dedicada a assuntos leves e variados. Daí que até podia levar a rubrica de "Variedade", que por sua vez é uma espécie de antepassado do fait divers. Ambos foram criados "pelo jornal e para o jornal", [47] são parte da história da imprensa de massas e por isso se confundem.

O folhetim é, em poucas palavras, um romance em capítulos avulsos, publicados diariamente em jornal, impedindo que o leitor leia a continuação da história no mesmo dia. Este fator aliado a um suspense da narrativa no final de cada episódio aguça a curiosidade do leitor e o leva, por assim dizer, a querer comprar o próximo número.

A idéia de tornar aquele espaço ao rodapé dos jornais uma seção fixa foi do impressor francês Émile de Girardin, por volta de 1830. Ele expôs publicamente sua intenção de expandir o público consumidor de jornais tornando mais democrático seu acesso. Era o nascimento da grande presse, com preços menores - em parte devido à utilização da publicidade - e assuntos mais leves.

Assim, a seção aos rodapés dos jornais passa a comportar a nova fórmula literária "continua no próximo número", e transforma-se em feuilleton-roman. As Variedades, então, espalham-se ao seu redor, fazendo par com o novo formato. [48]

Justamente para atingir esse público mais amplo que fora a viga-mestra da publicação em série, esta vai acabar suscitando uma forma novelesca específica, aquela precisamente com que o termo folhetim vai acabar se confundindo. [49]

A impressionante boa idéia de Girardin estabeleceu de imediato uma interação com o público nunca vista em tal escala, o que é ainda mais facilitado pela temática romântica: "o herói vingador ou purificador, a jovem deflorada e pura, os terríveis homens do mal, os grandes mitos modernos da cidade devoradora, a História e as histórias fabulosas etc." [50]

Como o gosto do grande público deveria ser satisfeito, incluindo "massas populares" e a "curiosidade das classes abastadas" [51] os homens de pensamento da época julgavam que havia nisso um necessário sacrifício da qualidade estética pelas regras do mercado, o que fez com que gerações de literatos classificassem o folhetim como má literatura.

Entre os autores que podem ser considerados os primeiros folhetinistas, em sua forma já consolidada, estão Eugène Sue e Alexandre Dumas. Depois deles, são inúmeros os autores: Paul Féval, Ponson du Terrail, Montépin, Balzac e outros.

Em suma, folhetim era um lugar no jornal para variedades e passa a designar exclusivamente uma nova maneira de se publicar ficção. E essa maneira de contar história influenciou a formação da crônica.

Alguns tipos de crônicas, porém, traziam mais que informação. Eram dramatizações da vida real chamadas de fait divers, como vimos, e que estavam em par com a ficção. Então, além da contradição, do patético, do tom ficcional que tornam a notícia inverossímil, temos no fait divers o extraordinário - no sentido pejorativo - a coincidência e o inesperado.

Isso faz dele um modelo que aparece sob uma forma pré-determinada, sugerindo uma eterna repetição.

O fait divers torna visível o que se crê invisível, ele traz o notável e o inexplicável, ele traz o sangue perturbador da ordem, [52] ordem esta rapidamente restaurada pela presença das autoridades.

Assim, "Os Desesperados" traz esse mundo do bas fond, de sangue e tragédias, onde é perfeitamente possível o "procedimento incorreto", a traição, a promiscuidade, a prostituição e os suicídios por amor.

O efêmero que o caracteriza, como jornal, permanece mesmo naqueles fait divers que perduram por dias ou pela falta de solução para o crime ou por um final que fica em aberto. [53] Quando isso ocorre são usados recursos como os do folhetim, o famoso "continua no próximo número".

Isso, no entanto, não anula seu caráter passageiro como abaixo.

Tentativa de Suicídio

A autoridade que estava de serviço na manhã de ontem na Repartição Central de Polícia, teve comunicação de uma tentativa de suicídio ocorrida na casa no 11 da travessa do Cemitério, onde uma moça de 17 anos de idade ingeriu uma solução de sublimado corrosivo.
Com a urgência reclamada, a autoridade transportou-se para a casa indicada, acompanhada do médico legista, sr. dr. Marcondes Machado.
A desesperada, a menor Maria Rodrigues, filha de Francisco Rodrigues, na noite anterior sofrera grande abalo com a notícia que recebera de um rapaz com o qual devia casar, o indivíduo Antônio Jorge, que a procurara para lhe declarar que o casamento não se realizaria mais, pois era forçado a abandonar esta capital e fugir para não ser preso pela polícia.
Pouco antes, referia ainda Antônio Jorge, estivera envolvido numa agressão que provocou na avenida Angélica, onde reagiu à prisão, evadindo-se, e a polícia já andava no seu encalço, mandando procurá-lo na casa em que reside, à rua da Bela Cintra, 86.
E, com essas palavras, o muito perturbado Antônio Jorge explicou apressadamente o que lhe sucedera, despedindo-se de Maria Rodrigues.
Esses fatos impressionaram o espírito da desventurada moça, de um modo a agravar-lhe a situação, porque a fuga do noivo, nas condições aludidas, concorreria para que ele não reparasse o mal que lhe havia feito e que o obrigaria a casar para não ser processado.
Com esses desenganos, a tresloucada comprou pela manhã diversos tablóides de sublimado corrosivo e depois de dissolvê-los num copo d'água, ingeriu o violento tóxico.
A família de Maria Rodrigues, descobrindo o desatino que a desesperada praticou, providenciou logo para socorrê-la.
O seu estado inspira cuidados. [54]

Agora é outra Maria que tentava o suicídio, mas esta tinha família e uma honra a preservar. De qualquer modo, mesmo sendo "moça de família" Maria Rodrigues era um tipo a se desconfiar afinal, sendo menor e solteira, manteve relações sexuais fora do casamento, situação completamente condenável nesta época como veremos um pouco mais à frente e, como se não bastasse, se envolveu com um criminoso e potencial fugitivo da polícia.

As duas histórias se parecem muito, a da "preta" Maria dos Santos e a da "moça" Maria Rodrigues. O cronista de O Estado mal muda os nomes, alterando um dado ou outro, inspirado pela realidade. Duas histórias de amor, duas expectativas frustradas, dois abandonos, duas tentativas de suicídio.

E, igualmente, a última frase que deixa em aberto uma expectativa: o que terá acontecido? No caso da primeira Maria, os jornais silenciaram: nada foi dito, se ela veio a falecer ou não. No segundo caso, da Maria Rodrigues, mocinha de família deflorada e abandonada pelo namorado (um tipo metido em confusões) a continuação aparece, doze dias depois, como se fosse o próximo e último capítulo de um folhetim.

Triste Desenlace

Há dias, como noticiamos, a menor Maria Rodrigues tentou suicidar-se na casa de seus pais, à travessa da Consolação, 11, ingerindo vários tablóides comprimidos de sublimado corrosivo.
A tresloucada moça havia sido procurada anteriormente por seu noivo, José Maria Jorge, que lhe declarara desistir do casamento, porquanto precisava fugir de São Paulo, visto ter se envolvido num conflito, e a polícia andar no seu encalço.
A infeliz moça, que já se havia deixado seduzir pelo rapaz, cometendo uma fraqueza que atingia a sua dignidade, ficou desesperada e cometeu o desatino que agora teve o seu triste desenlace, com a sua morte, após dolorosos padecimentos.
A polícia da Consolação que procedia a inquérito, para averiguar a responsabilidade de José Maria Jorge, na parte referente ao mal que o mesmo praticara, encerrou ontem o inquérito que será hoje remetido ao juízo criminal.
O acusado, comparecendo ontem, perante a autoridade declarou que se casou com a vítima na véspera do seu falecimento, tendo neste sentido exibido certidão legal para ser juntada ao inquérito, como foi feito. [55]

Além da repetição exaustiva de um modelo, temos outros pontos em comum com o folhetim, como o excesso melodramático, a identificação imediata do leitor com os "personagens" e a atemporalidade. Neste último caso, tanto fait divers como folhetins não requerem referências dadas de antemão ao leitor, não exigem um contexto. São narrativas que se encerram em si mesmas, tornando a crônica legível em qualquer situação, ainda que muitos anos se passem após o ocorrido. [56]

Em uma análise diacrônica encontramos algo parecido com que seria o fait divers presente nos jornais parisienses desde o início do novecentos (ou antes) com o epíteto de "variedades". Nestas seções eram publicadas notícias aparentadas com as nouvelles ou canards ou ainda, literatura de colportage "assim chamada porque o vendedor a carregava num tabuleiro que trazia pendurado no pescoço". [57]

As nouvelles eram notícias contadas por um nouvelliste em praça pública.

Seus ouvintes multiplicavam-se pela comunicação boca-a-boca modificando o conteúdo do que se ouvia ao passar a história para frente resultando em uma criação coletiva. [58] Quando impressas, as nouvelles chamavam-se canards ou ocasionelles que são quase tão antigos como a Imprensa, constando os primeiros registros de 1488. [59]

No século XVI os canards sanglants ou tragiques causavam furor. Eram várias notas juntas em um só folheto, uma abaixo da outra e bem curtas, em poucas linhas. Podemos ver a seguir a transcrição de um canard de 10 de maio de 1606. São "acidentes funestos" ou "deploráveis", como foi anunciado no Journal:

- Ce jour, la femme d'um boulanger, se voyant surpeise en adultère, se precipita du haut d'une fenêtre em bas et se tua.
- Un gentilhome sans jambes, comme sans Dieu, eut ce jour la tête tranchée en Grève, où il ne voulut ni prêtre, ni ministre, ni même invoquer Dieu une fois seulement, comme vrai athéiste qu'il était.
- Lê jeudi 11e de ce móis, lê fils de La Martinière, maître dês comptes, poignarda à Paris, de quinze coups, as propre sœur, femme du Chevalier du Guet grosse de six mois, l'étant allée voir lê matin pour lui Donner (ainsi qu'il disait) le bonjour; et l'ayant trouvée comme elle achevait se s'habiller, la salua de quinze coups de poignard. Histoire prodigieuse, mais pleine d'un merveilleux jugement de Dieu, et sur le père et sur le fils, et sur toute cette Maison, l'ignominie de laquelle ne se peut couvrir par silence. [60]

Às vezes vinham com ilustrações. Também havia canards em forma de folhetos ilustrados e com apenas uma notícia. [61]


Fig. 1
Gêmeos Siameses


Fig. 2
História Sangrenta

Vinham em edições bem simples, quase sem tratamento gráfico e com freqüentes erros tipográficos. Traziam histórias tão terríveis e sangrentas que fazem os fait divers parecerem tolos.

Pourvu que le crime soit bien sanglant et le monstre bien horrible, qu'importe l'emballage! [62]

O similar inglês era chamado de sheet ballad, o espanhol, hoja suelta e em português, folha volante. Era o "jornal dos pobres", de papel barato e impressão grosseira. [63]

Será preciso um dia fazer a análise desses relatos de crime e mostrar seu lugar no saber popular. [64]

Dizia Foucault, se referindo aos panfletos difundidos popularmente sobre o horrendo crime de parricídio e fratricídio do camponês francês Pierre Rivière.

Esses impressos de uma página, do início do século XIX, no formato de pequenos cartazes, circulavam pelos povoados franceses reproduzindo a sentença do tribunal do júri dada ao assassino e narrando o crime. Na imagem a seguir vemos o crime de Pierre Rivière contado de maneira ruidosa, com o claro fim de tornar o crime público e condenar sua figura.

 


Fig. 3
O crime de Pierre Rivière

Fatos, datas, detalhes eram inventados e distorcidos, misturados com histórias de outros crimes sangrentos, informações eram acrescentadas pelas diversas versões, tornando o crime de Pierre Rivière uma lenda de fundo moral.

Os tipos representados, a começar por ele, "ce monstre, indigne du nome d'homme", são degenerados. Seu pai era representado como um tolo, sua mãe, irascível. Uma família camponesa, o que equivale a dizer "selvagens" para os franceses das esferas do controle oficial da época.

Este folheto, cuja aparência ornamental supõe um público atraído mais pela forma que pelo texto, termina com uma poesia a ser cantada com os crimes de Pierre a vingar "les victimes respirent encore."

De fato, os canards ou occasionelles podem ser vistos como um dos mais autênticos antepassados do fait divers.

O uso do termo fait divers no lugar de canard, varietés, nouvelle, faits Paris ou chronique, no entanto, só apareceu na segunda metade do século XIX, em 1863, com Moïse Polydore Millaud em seu Le Petit Jounal. [65] Ele passa a ser um concorrente direto do folhetim do Segundo Império pois, baratíssimo, distribuído por toda a França e sem fins políticos ou literários, agradava à sociedade sedenta por entretenimento e absolutamente familiarizada com o formato.

Com tiragens imensas que chegavam aos 400 mil exemplares, Le Petit Journal estruturou suas vendas nos fait divers e folhetins, sempre que possível, ilustrados. Millaud conseguiu, inclusive, vencer as barreiras da capital, vendendo amplamente para as camadas rurais francesas.

No Brasil o fait divers e o folhetim chegam quase ao mesmo tempo em que se difundem pela Europa e encontram aqui pronta acolhida. Isso se deve a um ambiente receptivo tanto pelo fato de que já existia o hábito de leitura ou audição de romances franceses no Brasil antes mesmo de haver um romance brasileiro [66] quanto por de termos uma cultura predominantemente de base orais.

Donde se conclui que, tanto na França como no Brasil, se a fórmula de Girardin teve tal sucesso, foi porque já respondia a hábitos adquiridos de leitura ou audição de ficção. E se no Brasil o folhetim "pegou" tão bem foi porque encontrou terreno favorável: às leituras tradicionais tinham sucedido as galantes novelas todas traduzidas do francês. [67]

O folhetim nacional mais antigo é de 1836, do periódico O Chronista de Justiniano José da Rocha. A partir de 1838, com a publicação de Capitão Paulo, de Alexandre Dumas, no Jornal do Commércio, a moda pega definitivamente. [68] Daí em diante o folhetim se consolidou como sucesso de público.

Ainda no início do século XX eles estavam em voga, como verificamos em nossa pesquisa. Eram traduzidos do francês e também usados largamente como expediente de escritores brasileiros que queriam ver sua obra editada, visto que seu baixo custo atraía grande número de leitores e assinantes. [69]

Os fait divers também se encontravam cada vez mais numerosos com a virada do século e com a urbanização, onde levas de novos leitores se formavam. Esta produção correspondia, portanto, a uma demanda. Sendo assim, histórias como as de Maria e João serão exploradas durante muito tempo.

Tratarei em outro artigo questões pertinentes à recepção do fait divers em São Paulo antigo, pesquisa que realizo atualmente visando expandir o corpus documental assim como as formas de análise do material, sendo as conclusões até aqui publicadas resultado da minha tese de doutorado Notícias Diversas: suicídios por amor, "leituras contagiosas" e cultura popular em São Paulo nos anos dez.

Notas

[1] Alvaiade: [Do ár. al-abyaë, 'branco'.] S. m. Quím. Pigmento branco, seja de carbonato básico de chumbo (de composição variável), seja de óxido de zinco. s. m. do art. arab. al, e de beyde, branquear, lat. cerussa, hesp. alvayalde, (chim.) óxido branco do chumbo, dissolvido pelo acido acetoso. É absorvente, e serve para diversos usos na medicina.

[2] O Estado de S.Paulo, 08/12/1910.

[3] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro - jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX, SP: Cia. Das Letras, 2001, p. 15.

[4] Idem, p. 14.

[5] LEME, Marisa Saenz. Aspectos da evolução urbana de São Paulo na Primeira República, tese de doutoramento apresentada ao Departamento de História da USP, SP, 1984, p. 142.

[6] LEME, Ibidem; PORTO, Antônio Rodrigues. História Urbanística da cidade de São Paulo 1554-1988, SP: Ed. Cartago & Forte, 1992, p. 101.

[7] PENTEADO, Jacob. Belenzinho 1910 (retrato de uma época), SP: Carrenho Editorial/Narrativa Um, 2003, p. 45.

[8] Idem, p. 46.

[9] MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de outrora- evocações da metrópole, SP: Edusp, p. 302.

[10] LEME, Op. Cit., p. 146-148.

[11] Idem, p. 150.

[12] MOURA, Op. Cit., p. 302.

[13] LEME, Op. Cit., p. 152.

[14] SCHWARCZ, Op. Cit., p. 83.

[15] ISENBURG, Tereza (org). A Imagem dos Negros e dos Índios no Ambiente da Corte In: Naturalistas Italianos no Brasil, SP: Ícone Editora/ Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 90.

[16] CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002. Ver, por exemplo, o capítulo 8, Quarta Expedição.

[17] Cf. SCHWARCZ, Op. Cit.; VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, SP: Cia. Das Letras, 2000, p. 66.

[18] PENTEADO, Op. Cit., p. 122.

[19] Idem, p. 48.

[20] Idem, p. 171.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Idem, p. 173.

[24] Idem, p. 176.

[25] Idem, P. 172.

[26] AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). SP: Carrenho Editorial/Narrativa-Um/Carbono 14, 2004, p. 221.

[27] FARKAS, Thomaz. Cinema Documentário: um método de trabalho - tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Jornalismo e Editoração - ECA-USP. SP: 1972, p. 04.

[28] "Ilusão", pois no cinema perdemos a noção de proporcionalidade, do ritmo dos acontecimentos, do foco real e das cores, já que não "corrigimos" estes desníveis da percepção como faríamos na realidade. ESPINAL, Luís. Cinema e seu processo psicológico. SP: Lic Editores, 1976, p. 18.

[29] Idem, p. 22.

[30] Idem, p. 33.

[31] Idem, p. 43.

[32] Idem, p. 30.

[33] SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: SEVCENKO, Nicolau (org.), História da Vida Privada no Brasil. SP: Ed. Cia. das Letras, 1998, vol. 3, p. 600.

[34] SALIBA, Elias. A Dimensão Cômica da Vida Privada na República In: SEVENKO, Idem, p. 331.

[35] Ibidem.

[36] MEYER, Marlyse. Folhetim, uma história. SP: Ed. Cia. das Letras, 1996, p. 94.

[37] BARTHES, Roland. Estrutura da Notícia In: Crítica e Verdade. SP: Perspectiva, 1970, p. 57.

[38] O Estado de S.Paulo, 16/12/1910.

[39] Idem, 07/05/1911; 01/01/1913; 11/11/1910; 04/05/1911; 22/07/1910; 12/07/1917; 07/06/1910; 07/06/1910; 22/03/1917; 07/06/1910; , 22/02/1912; 16/10/1910; 04/02/1912; 06/02/1917; 28/02/1012, respectivamente.

[40] MARTINS, Wilson. A Palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. SP: Ed. Ática, p. 231.

[41] MEYER, Marlyse. Voláteis e Versáteis, de variedades e folhetins se fez a chronica in: Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade, vol.46, no 1-4, jan-dez/1985, p. 21 e 25.

[42] SCHAPOCHNIK, Nelson. Cartões-postais, Álbuns de família e Ícones da Modernidade In: SEVCENKO, História da Vida Privada..., Op. Cit., 440.

[43] Cf. DEL FIORENTINO, Terezinha A. Prosa de ficção em São Paulo: produção e consumo (1900-1920). SP: Hucitec, Secretaria de Estado da Cultura, 1992.

[44] MARTÍN-BARBERO, Jesus. América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social In: SOUSA, Mauro Wilton de (org). Sujeito, o lado oculto do receptor. SP: Editora Brasiliense, 2002.

[45] Cerca de 70% da população durante o período estudado - ver capítulo 3.

[46] E continuam lidos até nossos tempos, como atestavam o extinto Notícias Populares ou o atual Agora São Paulo, para só citar o caso de São Paulo. São ouvidos em programas do Gil Gomes ou Afanásio - cuja narrativa é de contador de história, auxiliada por pesada sonoplastia, grande responsável por criar o "clima" que enleva o ouvinte com sensações de atenção, curiosidade, apreensão e um previsível êxtase. Isso sem falar em programas de televisão exclusivamente sensacionalistas ou de telejornais que exploram a realidade de maneira extraordinária, seja um Cidade Alerta, seja um Jornal Nacional.

[47] MEYER. Folhetim..., Op. Cit. p. 30.

[48] Ibidem.

[49] Idem, p. 30 e 31.

[50] Idem, p. 31.

[51] ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. SP: Ed. Perspectiva, 1993, 5a edição, p. 190.

[52] MERLAU-PONTY, Maurice. Sur les Faits Divers In: Signes. Paris : Gallimard,s/d e BARTHES, Op. Cit., p. 60.

[53] BARTHES, Op. Cit., p. 62.

[54] O Estado de S.Paulo, 10/07/1910.

[55] O Estado de S.Paulo, 22/07/1910 - Continuação de 10/07/1910.

[56] MEYER. Folhetim..., Op. Cit., p. 99.

[57] HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. SP: T.A Queiroz/Edusp, p. 535.

[58] MEYER. Folhetim..., Op. Cit., p. 101.

[59] Cf. LEVER, Maurice. Canards sanglants: naissance du fait divers. Paris: Fayard, 1993.

[60] Journal, 10/05/1606 apud LEVER, Op. Cit, p. 9 e 10.

[61] Ilustrações Gêmeos Siameses e História Sangrenta In: LEVER, Op. Cit., p. 467 e 78, respectivamente.

[62] LEVER, Op. Cit, p. 12.

[63] HALLEWELL, Op. Cit., p. 535.

[64] FOUCAULT, Michel. Os assassinos que se conta. In: _______. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. 4a ed., RJ: Ed. Graal, 1991, p. 217.

[65] MEYER. Folhetim..., Op. Cit., p. 48.

[66] "Confirmava-se, pois, a presença avultada de novelas européias no Brasil numa época anterior à constituição do gênero entre nós...", MEYER, Op. Cit., p. 29.

[67] MEYER. Folhetim..., Op. Cit., p. 34.

[68] MEYER. Voláteis e Versáteis..., Op. Cit., p. 21.

[69] "Assim sendo, os periódicos eram mais procurados, mesmo porque eram mais baratos do que os livros.", FIORENTINO. Op. Cit., p. 123.


*Valéria Guimarães é historiadora e pós-doutoranda no COS-CEO-PUC-São Paulo.

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