Destaques
A Geração Perdida
Por
Wilson Martins*

É
a história intelectual e sentimental de uma geração,
pontilhada no ritmo da ação pela música
e, sobretudo, pelas letras dos Beatles e de Bob Dylan: "Vista
aqui do caixão", diz "a voz do morto",
narrador complementar e crítico do autor, "posta
em contraste com os círculos espalhados pela sala [...]
de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John
Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos
de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos
e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós,
da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor
Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito
o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov,
meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo
o desperdício de um talento, nós que gostávamos
das tiras de Mafalda e Charlie Brown.
Pois
é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada
pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam
com este ambiente, nada têm a ver com a morte".
É
também o romance das ilusões perdidas, matéria
privilegiada dos grandes romances, "velório de uma
geração inteira, o sepultamento do sonho desta
turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar
direito das próprias intenções, por melhores
que fossem.
Aqui
não jaz meu corpo apodrecido pelo câncer. Aqui
jazem, de certa forma, ideais que ele abrigou e expôs,
burilou e perdeu, ao longo da vida. Aqui jazem algumas ilusões,
espremidas entre as flores neste caixão".
Pouco
importam, a essa altura, as racionalizações compensatórias
a que o morto se entrega: as vitórias e sucessos posteriores
dos personagens no plano mundano apenas encobrem o malogro essencial
que os acompanha como um remorso implacável. Eram todos
vitoriosos - à custa de sua autenticidade profunda. Em
brilhante derrota, tinha conquistado o mundo, mas perdido a
alma.
Eram
agora "o publicitário famoso, o cantor de sucesso,
o burocrata aplicado, a historiadora persistente, a psicanalista
analisada, todos enfim, até aquele que poderia ter estado
ali, mas ninguém cumprimentou nem por alguém foi
cumprimentado, embora alguém pudesse tê-lo notado".
Mas,
todos vencidos da vida, segundo Eça de Queiroz, em passagem
conhecida, definiu um desses grupos. Dominando a complexidade
da intriga e a estruturação cronológica
(exigindo, como é natural, ativa participação
do leitor), José Nêumanne Pinto assume o seu lugar
entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais
que tudo resulta de rigorosa planificação.
Percebe-se
que "a voz do morto" é, na verdade, um desdobramento
do autor, propondo os esclarecimentos necessários para
poder acompanhá-lo, enquanto simultaneamente toma consciência
do romance como obra de arte literária, história
mental da segunda metade do século 20, em torno do personagem
que "abandona a mulher (que conheceu na adolescência)
com os filhos e a amante casada, para arriscar um segundo casamento
com a primeira paixão da adolescência [...]. Sua
primeira idéia era fazer uma abordagem joyciana do texto
... mas o resultado final ficou tão ruim, a história
se perdia em tantos malabarismos que você resolveu desistir".
De
fato, a partir de Joyce, o romance não pode pretender
que Joyce não existiu, mas o romancista autêntico
não se dispõe a imitá-lo servilmente, mas
antes a prosseguir nas incontáveis direções
que sugeriu.
Um
dos sinais possíveis dessa emancipação
genética e o abandono da narrativa linear e progressiva
em favor da composição circular, própria
da civilização eletrônica (Marshall McLuhan
tem mais razão e viu mais longe do que imaginam os críticos
superficiais).
Cedendo
à vaidade inocente de nos fazer perceber o rigoroso planejamento
da intriga - diferenciando-se dos experimentalismos arbitrários
em que tantos se comprazem - o autor mais uma vez esclarece
pela "voz do morto": "eu bem que desconfiava
que sua tática de querer fazer tudo de uma vez ... tinha
tudo para malograr. [...] O problema é que você
foi espalhando migalhas no caminho da floresta e os passarinhos
se fartaram, agora você não tem pistas para voltar".
No
começo, diz o autor em confissão transposta para
a "voz do morto": "Lembra-se de quando começou
este projeto de traçar um inventário de sua geração
num romance-enciclopédia? Pois é, no começo
deste relato, no começo dessa delação,
você o situou em 1984. Primeiro, você tentou escrever
sobre um cara que abandona a mulher, amiga de infância,
e a amante, que não tinha nenhuma relação
com sua história de vida" romance convencional
que, como se vê, nada acrescentaria ao romance convencional.
Contudo,
Joyce havia existido, tornando obsoletos os romances convencionais
... fossem quais fossem as suas qualidades intrínsecas
enquanto romances. Em 1922 (ano prodigioso!), ele inaugurava
o século 20 literário, e o século 20 literário
passou a existir num mundo que, além dele, era mentalmente
configurado pelo cinema e por Bob Dylan, pelos Beatles e por
tudo que se incorporou à genética das idéias
e dos sentimentos.
Nisso
estava, justamente, o roteiro virtual do romance moderno, pós-balzaquiano
com tudo o que significava, isto é, o século 19
com russos e ingleses, franceses e italianos, portugueses e
brasileiros ...
As
ironias da história transfiguraram os jovens revolucionários
dos anos de 1960 (guiados, é preciso dizê-lo, pela
idéia mística, não realista, da revolução),
em conservadores desenganados, sem repudiar, bem entendido,
a aventura heróica que haviam vivido. Por esses processos,
o autor transmite o caráter caótico daqueles tempos
(como todos os tempos), condicionado, entretanto, por sua própria
lógica interna.
História
retrospectiva que introduz coerência no passado, enquanto
a atualidade dinâmica, no momento em que é vivida,
é sempre movida por suas "contradições
internas" como diria um esquerdista de manual. Ou a "voz
do morto", exprimindo as inquietações do
autor: "este romance está virando um samba de crioulo
doido.
Primeiramente
porque se já não tinha um espaço definido,
agora também se perde no tempo [...] se tinha um assunto
central, o inventário de uma geração de
repente, sem aviso nenhum ao leitor incauto, saltou para temas
que não lhe dizem respeito e que aparentemente com nada
se conectam".
O
que, precisamente, é a grande qualidade deste romance
como romance.
O
Silêncio do Delator
José Nêumanne
ISBN: 8589876519
Categoria: Ficção
Seção: Literatura brasileira
Ano Edição: 2004
Nº Edição: 1
Qtd. Páginas: 544
Fonte:
(Gazeta do Povo - Caderno G , página 4. 22.11.2004.
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