Destaques
Jornalismo,
voz ou
espaço da democracia?
Carlos
Chaparro
O
XIS DA QUESTÃO Há quem acredite e propague
que o encantamento do jornalismo está numa pretensa vocação
investigatória, ou justiceira, que torne até dispensáveis
as instituições da democracia. O jornalismo seria
a voz e a vida da democracia. Trata-se de um falso encantamento.
À democracia, e ao seu aperfeiçoamento, o que
interessa não é o que os jornalistas dizem, mas
o que os cidadãos e as instituições da
cidadania podem dizer e fazer, no espaço público
do jornalismo.
1.
De encantamentos...
Coincidência...
Eram nove horas, liguei o computador para escrever o artigo
desta semana, já com o tema definido na mente e a introdução
redigida de véspera. Mas o ritual matinal de há
muito me impõe o dever de ofício de,
em primeiro lugar, olhar os e-mails chegados. Foi o que fiz.
E lá estava o seguinte recado de Sílvia, que,
por ser amiga, capricha nas obrigações de leitora
crítica:
Hoje
não escreva sobre política. Escreva sobre encantamentos.
A vida anda muito pesada para todos, ninguém agüenta
mais falar sobre as bobagens do Lula, os reversos da economia,
a falta de caráter dos políticos. Escreva sobre
encantamentos. Como disse o poeta grego Menandro, "é
doce algumas vezes perder a razão". Isso foi citado
por Sêneca na Tranqüilidade da Alma, que estou lendo
e gostando muito.
O
e-mail produziu perturbações. Como escrever sobre
encantamentos em tempos de desencanto? Que encantamentos? Para
esquecer que desencantos? E o que fazer com o tema para o qual
me havia preparado e até aprontado a introdução?
Ah!
Sílvia, você me pagará!
Mas
como é doce algumas vezes perder a razão,
tentarei escrever sobre um certo mar de encantamentos pelo qual
todos nós navegamos, em embarcações do
imaginário. Os encantamentos do jornalismo. E começarei
pelo aproveitamento da introdução já pronta
- que a vida não está para desperdícios,
nem de tempo nem de trabalho feito.
Ainda
não sei como amarrar a introdução, já
escrita, aos encantamentos propostos por Sílvia. Espero,
porém, que não me falte a cooperação
e a criatividade dos leitores, na empreitada de tecer nexos
entre coisas e idéias que talvez pareçam desconexas.
Comecemos
pelo seguinte acordo: esqueçam o e-mail de Sílvia
e a conversa introdutória por ele motivada. Porque o
artigo, propriamente dito, começará no próximo
parágrafo. Rumo aos tais encantamentos do jornalismo.
2.
De tristeza e sonolências...
Nas
edições dominicais dos grandes diários
aparecem com alguma freqüência, embora atualmente
em pequenas doses, reportagens que o jargão jornalístico
costuma rotular de investigativas. Como exemplo,
recortei duas matérias da Folha de S. Paulo, de domingo
passado (2 de maio de 2004), ambas enviadas de Brasília.
Numa delas, sob o título União paga viagens
de ministros para casa, revela-se que o governo federal
gastou, em 2003, R$ 1,26 milhão com viagens de fins de
semana e feriados de 15 dos seus ministros, para deslocamentos
às suas cidades de origem. A reportagem usa dados reunidos
e interpretados por deputados federais da oposição,
no cumprimento de suas obrigações de fiscalizar
o governo. Na outra matéria, desvenda-se um meritório
trabalho dos Tribunais Regionais Eleitorais de 26 Estados, do
qual resultou a cassação ou o afastamento de 72
prefeitos eleitos em 2000, por práticas de corrupção
eleitoral.
As
duas matérias da Folha me trouxeram à memória
um texto já antigo, de março de 1999, escrito
por Josias de Souza na mesma Folha de S. Paulo. Vivia-se, àquela
época, um clima de enorme euforia jornalística,
com páginas e páginas de empolgadas reportagens
sobre a descoberta e o desmonte de uma surpreendente teia de
corrupção na administração municipal
de São Paulo, envolvendo fiscais, técnicos e administradores
regionais.
Eles
compunham uma quadrilha oficial (a gang dos fiscais) chefiada
por vereadores o povo elegera para cuidarem do bem público.
A descoberta, o desmonte e a prisão da quadrilha tornaram-se
um enorme escândalo, com noticiário alimentado
pelas ações bem sucedidas da Polícia e
do Ministério Público.
Foi,
sem dúvida, um dos mais depuradores momentos da democracia
brasileira, nos últimos anos. A partir da denúncia
corajosa de uma cidadã que estava sendo vítima
de extorsão pelos fiscais da Prefeitura, a Polícia
e o Ministério Público, em atuação
exemplarmente articulada, produziram provas que levou gente
graúda e miúda aos tribunais e à prisão.
E enquanto as coisas aconteciam, a repercussão jornalística
dos fatos criou na sociedade um sentimento de alegria cívica,
num momento em que os mecanismos de defesa da democracia funcionaram.
Pois,
apesar de toda essa festa cívica, ou aproveitando-a,
Josias de Souza lamentou que os jornalistas tivessem despertado
tarde. Quando abriram os olhos, escreveu ele, os
vereadores já haviam saqueado tudo, das jóias
aos cinzeiros da casa.
A
frase encerrava um parágrafo melancólico, de metaforista:
Épocas são como festas. Não se começa
uma nova era antes de recolher os detritos da anterior. O jornalista
é testemunha da farra. O historiador, faxineiro. Ele
vem depois, para pôr as coisas no lugar. (...) Mais tarde,
quando forem aspirar os tapetes, os faxineiros da nossa época
notarão que este foi o ano em que a imprensa acordou
para uma orgia que se desenrolava diante do seu nariz: a roubalheira
na Prefeitura de São Paulo. Os jornalistas despertaram
tarde.
Mais
adiante, a frase essencial: É pena que a realidade
insista em desfazer a aura de encantamento que envolve a profissão.
3.
De falsos encantamentos...
A tristeza com que Josias de Souza lamentava as sonolências
do jornalismo, em relação à descoberta
da escandalosa teia de corrupção então
desmontada na Prefeitura de São Paulo, poderia significar
(pelo menos, assim a entendi) que, para a sociedade, teria sido
mais interessante se a sonolência fosse da Polícia
e do Ministério Público, em vez de ter atacado
os jornalistas. E isso, em nome do tal encantamento que
envolve a profissão.
Aplicando
o raciocínio às matérias da Folha de domingo
passado, poderíamos então admitir que, para a
democracia e para a sociedade, teria sido melhor se, em vez
do Congresso e dos Tribunais Regionais, tivesse sido a vigilância
jornalística a flagrar a corrupção eleitoral
dos prefeitos e os abusos ministeriais na utilização
das verbas de viagens.
Ora,
se vasculharmos os jornais dos tempos em que nem a Polícia
nem os Tribunais Eleitorais funcionavam como instituições
zelosas dos deveres de vigilância e repressão,
no combate à corrupção, e quando nem Ministério
Público existia, verifica-se que a sonolência
dos jornalistas era muito maior e mais grave que a de hoje.
Porque pouco ou nada era investigado e denunciado. Em vez disso,
os jornalistas (evidentemente, com as honrosas exceções)
aceitavam empregos públicos, benesses fiscais, gratificações
e favores de vários tipos e ninguém se
escandalizava.
Esse
encantamento que envolve a profissão, o encantamento
de uma pretensa vocação investigatória,
que torne dispensáveis as instituições
da democracia, é um falso encantamento, gerador de crenças
que não ajudam nem a entender nem a fazer jornalismo.
À
democracia, e ao seu aperfeiçoamento, o que interessa
não é o que os jornalistas dizem, mas o que os
cidadãos e as instituições da cidadania
podem dizer e fazer, no espaço público do jornalismo.
Que
tal agregar ao jornalismo novos e verdadeiros encantamentos?
aqueles que inserem o jornalismo no sucesso dos processos
democráticos, enquanto linguagem e ambiente dos conflitos.
Inclusive, para dar voz discursiva aos que ainda não
conquistarem o direito e o poder de dizer.
Fonte: Comunique-se, 07/05/2004
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