Destaques
Imprensa,
crises e desafios
Por
Marcelo Beraba
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Folha de S.Paulo, 11.04.2004
"Difícil
dizer se esta é a maior crise da história das
empresas jornalísticas brasileiras. Mas é uma
crise enorme, daquelas que parecem que nunca vão acabar,
a maior, com certeza, que a minha geração de jornalistas
jamais vivenciou.
1.
Os dados são conhecidos, mas vale resumi-los: dívidas
estimadas em R$ 10 bilhões (a maior parte em dólar),
17 mil vagas de trabalho cortadas em dois anos, queda de circulação
de jornais e revistas.
2.
As razões de tamanha catástrofe ainda não
foram completamente estudadas, mas alguns elementos são
visíveis. A primeira metade da década de 90 foi
de pura euforia para as empresas de comunicação.
A circulação dos jornais aumentou ano após
ano. A espiral de crescimento, alimentada pela estabilização
e pelo fortalecimento da moeda, por investimentos em tecnologia
e pelas agressivas estratégias de marketing, parecia
não ter fim. As empresas acreditaram de fato nas previsões
de crescimento econômico e se endividaram pesadamente
em dólar para continuar a se expandir.
3.
Em janeiro de 99, elas foram pegas no contrapé com a
desvalorização do real e, na seqüência,
com a estagnação da economia e a queda de renda.
As dívidas em dólar se tornaram um pesadelo. E
as principais fontes de receita ficaram comprometidas: o bolo
publicitário diminuiu (e passou a ser mais disputado)
e caiu o número dos que compram em banca ou assinam jornais
e revistas.
4.
As conseqüências da crise estão expostas:
economia de papel, demissões, achatamento salarial, perda
de profissionais qualificados, fragilização das
Redações e retração total das empresas.
Passamos a viver parecidos com o Brasil: no sufoco para produzir
resultado (superávit) e pagar dívidas. Nada de
investimento. O estrago é visível a olho nu.
5.
Há quem diga que 2002 foi o fundo do poço e que
agora as coisas começam a mudar. De fato, o mercado publicitário
teve uma pequena reação, pequena: cresceu em 2003,
descontada a inflação, 2,9% em relação
a 2002. Mas a circulação dos jornais continuou
a cair: era de 7 milhões de exemplares por dia em 2002
e em 2003 foi de 6,5 milhões por dia, uma queda de aproximadamente
7%.
6.
O que interessa aos leitores de jornais é saber se a
crise afeta a qualidade do produto que recebe e sua independência
editorial.
7.
A maior ameaça à independência das empresas
de comunicação está nelas mesmas. A crise
se traduz em pressões pela flexibilização
dos procedimentos internos que protegem as Redações
de picaretagens e negociatas. A pressão aumenta com a
necessidade de resultados financeiros, mas a submissão
da Redação resulta em perda de credibilidade e
de prestígio. O barato sai caro. Otavio Frias Filho,
diretor de Redação da Folha, tocou no problema
recentemente em entrevista para o site No Mínimo. É
bom que os executivos de jornais discutam isso abertamente.
Frias Filho detecta um retrocesso: A famosa separação
entre Igreja e Estado, que é a gíria para designar
a separação entre Redação e publicidade
(...) que se cristalizou felizmente nos principais centros urbanos
do país na segunda metade dos anos 50 e no começo
dos anos 60, essa separação está sendo
enfraquecida.
8.
No capítulo independência, também será
importante acompanhar o pedido de socorro das empresas jornalísticas
ao governo federal. Algumas das maiores procuraram o BNDES em
busca de recursos públicos para pagar dívidas,
comprar papel e iniciar novos investimentos. Em tese, é
legítimo, um direito de qualquer segmento da economia.
O problema é como se dará essa operação.
Será um desgaste grande para as empresas se houver qualquer
sorte de privilégio ou se elas se submeterem aos desígnios
do governo. Em entrevista para o site do AOL, o publisher da
Folha, Octavio Frias de Oliveira, tocou no problema. Questionado
sobre as negociações com o banco estatal, ele
foi direto ao ponto: Eu tenho um receio muito grande.
Isso tende a interferir. Para falar claramente (...), o que
interessa ao governo é a mídia de joelhos. Não
uma mídia morta. Uma mídia independente não
interessa a governo nenhum. Dentro desse princípio é
difícil ver essa questão do BNDES. Por que criar
um sistema assistencial, preferencial para os jornais, para
a mídia?.
9.
Qualidade. As metas de excelência do jornal estão
definidas no seu Manual da Redação
e no seu Projeto Editorial de 1997, que está sendo revisado
e reescrito. Em linhas gerais, o jornal persegue um jornalismo
crítico, moderno, pluralista e apartidário. Esses
propósitos, que vêm desde o primeiro Projeto Editorial,
de 84, não são mais suficientes para definir um
jornal que seja indispensável, confiável e prazeroso,
com notícias precisas, contextualizadas e bem escritas,
com um cardápio diversificado, instigante e inteligente.
É necessário que a Folha, para firmar sua singularidade
e relevância, dê um salto de qualidade.
10.
O tamanho da crise e o imperativo da sobrevivência afastaram
as empresas jornalísticas e os jornalistas de questionamentos
importantes que outros países experimentam neste momento
sobre o papel da mídia e suas contradições.
Alguns casos recentes exigem reflexão. Nos Estados Unidos,
o New York Times e outros colossos da imprensa revisaram
seus procedimentos de apuração por conta da descoberta
de vários casos de fraudes jornalísticas, de reportagens
simplesmente inventadas. Ainda nos Estados Unidos e em países
da Europa, vários jornais e redes de TV foram submetidos
à lógica do patriotismo e abandonaram a independência
crítica por conta de pressões do governo ou do
repúdio espontâneo ao terrorismo e estão
todos hoje mais sujeitos às manipulações
oficiais.
11.
O grande desafio da Folha -e, de resto, de todos os jornais-
é superar a crise (pagar suas dívidas, voltar
a investir e a crescer) sem abrir mão de duas obsessões:
manter a independência crítica e dar um salto na
qualidade do jornal que entrega diariamente. O que está
em jogo é o principal patrimônio de um jornal,
a credibilidade.
O
mandato de ombudsman que ora se inicia coincide com este período
complicado da imprensa brasileira. Espero ajudá-la a
sair melhor e mais forte. Para isso, estou à disposição
dos leitores. E que a crise nos seja breve!
***
Converso
por telefone com Nei José Pereira, 49, leitor da Folha,
contador. Pergunto se confia na imprensa. "Confio, mas
com um pé atrás, desconfiando muito."
Fonte:
A Voz dos Ouvidores. Observatório da Imprensa, 13.04.2004
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