Nº 9 - Dez. 2007 Publicação Acadêmica de Estudos sobre Jornalismo e Comunicação ANO V
 
 

Expediente

Vinculada
à Universidade
de São Paulo

 
 

 

 


 

 

 

 

 

 


ARTIGOS
 

Um dado a ver:
Articulações entre jornalismo e estudos dialéticos da exclusão


Por
Mônica do Amaral Britto Arouca*

Reprodução

M. Hager, "Inclusion/Exclusion",
pintura sobre madeira, 2004.
RESUMO

Este texto pretende verificar como os sujeitos nomeados como excluídos são apresentados em reportagens sobre exclusão social. O corpus deste trabalho faz uma análise do discurso por meio do qual os sujeitos são simbolicamente construídos para assumirem um lugar no imaginário público.

PALAVRAS-CHAVE: Reportagem / Discurso / Exclusão Social

Os conceitos para tal análise partem dos estudos que envolvem as Ciências da Linguagem, as Representações Sociais e a dialética exclusão/inclusão.

Estar desocupada, e de repente, parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa sorridente e idiota – como se chama o que se sentiu? A única forma de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só se conseguiu nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? E este é o nome (Clarice Lispector, "Para não esquecer", 1999).

Este artigo pretende identificar como os sujeitos entendidos como excluídos sociais são apresentados em duas reportagens veiculadas na revista-laboratório Primeira Impressão, cuja capa traz o título Retratos da exclusão [1]. Apublicação é vinculada à disciplina de Projeto Experimental em Jornalismo do curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul.

Primeira Impressão, de acordo com seu editorial, foi inspirada na extinta Realidade, uma das mais respeitadas revistas do País, que apesar de viver apenas 10 anos, de 1966 a 1976, ganhou, pela qualidade das reportagens, nove prêmios ESSO, o mais importante do jornalismo brasileiro.

“As reportagens respiram, trazem o cheiro das coisas. Portam as tintas do cotidiano, sem os tons pastéis que se convencionou chamar de objetividade. Carregam o gosto doce ou amargo, de imprimir à profissão tanta intensidade quanto à própria vida” [2]. Com essa orientação editorial, a revista Primeira Impressão privilegiou pautas de personagem, ou seja, na edição analisada, o perfil de um alguém socialmente excluído tornou-se o fio condutor das narrativas. O recorte das matérias contempla relatos da exclusão numa visão multidimensional sobre o tema: loucura, discriminação racial, preconceito, solidão e pobreza.

Nossa análise, no entanto, limita-se a observar o sujeito excluído a partir do discurso no qual ele é simbolicamente construído e de onde, e simultaneamente, assume um lugar na ordem do imaginário coletivo. Para tanto, recorremos aos conceitos advindos da Teoria das Representações Sociais, de Serge Moscovici, dos estudos sobre a dialética da exclusão e das teorias constituintes dos estudos sobre linguagem e, dentro destes, aqueles que recobrem os enunciados e a produção de sentido.

Os conceitos que elegemos nos servem como suporte teórico porque partimos do pressuposto de que o jornalismo é produção de linguagem, antes de qualquer coisa, “um fato de língua” (Cf. GOMES, 2000: p.19) e que sua práxis coloca em ação um modo de ver o mundo e de inscrever seus sujeitos a partir de normas estabelecidas, que incluem também a rotinização da produção da informação que faz da notícia uma sistemática construção da realidade (Cf. TUCHMANN, 1999).

Isso nos leva a afirmar que apesar de o jornalismo ser circunscrito por categorias como objetividade, verdade e imparcialidade, antes mesmo disso, ele é escolha, lugar da palavra outorgada a outrem (o repórter) que escolhe o que dizer, como dizer e o porquê de dizer, uma vez que de posse da palavra emprestada (o repórter fala por alguém) e legitimada, é visto de lugares discursivos específicos: do saber e do poder.
Nesse sentido, longe de desvendar ou de dar a ver a realidade, o jornalismo ele próprio cria a realidade por meio de seu discurso dando a ela um sentido.

No campo das Representações Sociais interessa-nos a noção da representação do sujeito social mediada pela cultura e radicada na esfera pública, onde as apropriações e as construções de identidades se fazem e se alinhavam por alteridade, condição fundamental para o desenvolvimento simbólico de um eu e de um Outro. Demarcado tal suporte teórico, passamos a privilegiar neste trabalho as palavras nas quais o discurso sobre o excluído está ancorado e que significados evoca.

Reportagem: narrativa e prática que orientam um modo de ver o mundo

A reportagem é um gênero privilegiado no jornalismo: não está presa à técnica engessada do lead clássico que reclama respostas para o quê, quem, quando, onde, como e por que, convencionalmente usadas para abrir um texto jornalístico meramente factual e informativo.

Relato humanizado, na concepção de Lage (1998), a reportagem permite ao repórter o uso de adjetivos, de palavras que ora descrevem, ora narram na intenção de melhor exprimir o que se registra in loco. Nessa medida, uma reportagem pode ser vista como um relato autoral em que o jornalista é autorizado a contar ao seu modo uma determinada história.

Tanto é assim, que o esquema textual de uma reportagem é dos que mais se aproxima da estrutura narrativa, o que nos permite crer que concebe a noção de que o texto forma-se por três níveis estruturais distintos: o fundamental, plano mais superficial de onde “se afloram os significados mais concretos e diversificados”, o intermediário “onde se definem valores com que os sujeitos entram em acordo ou desacordo” e o profundo de onde se extraem “os significados mais abstratos que se opõem entre si e garantem a unidade do texto inteiro” (Cf. FIORIN, 1995: p.37).

Temos em Barros (1994: p.07-09) que o texto por seu plano de conteúdo “que faz dele [texto] um todo de sentido, como objeto de significação que se estabelece entre um destinador e um destinatário” extrai numa etapa mais simples, a significação semântica mais literal; depois, num plano intermediário faz surgirem os valores das oposições encontradas no nível primeiro, de onde “organiza-se a narrativa do ponto de vista de um sujeito” e o discursivo, plano de onde fala o sujeito da enunciação e de onde se articula discurso e, portanto, ideologia.

“O sujeito da enunciação faz uma série de escolhas, de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e conta ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa enriquecida por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (Cf. BARROS, 1994: p.53).

A reportagem, narrativa por excelência, é dentre os gêneros jornalísticos, o que mais permite uma análise textual a partir do sujeito da enunciação porque o narrador pode assumir posição como tal na perspectiva da primeira pessoa (eu), da terceira pessoa (nós) ou ainda e com mais freqüência (em nome de uma “objetividade”) lançar a perspectiva em “ele”, “ela”, lançando à narração um pseudodistanciamento e parece, dessa forma, que o repórter apenas reporta a realidade. 

Essa noção é especialmente potencializada se verificarmos que a práxis jornalística implica vários pressupostos de verdade, atualidade, acurácia, isenção, principalmente para quem não participa dos meandros da produção de uma dada informação que ascende ao status de notícia. O jornalista torna-se, assim, fonte única e oficial, portanto, autorizada, ou melhor, sempre entendida como não-arbitrária.

No entanto, há que se considerar que a coleta individual da informação é arbitrária, na medida em que o que for nomeado pelo repórter ordena apenas algum sentido de mundo, dentre vários sentidos possíveis. Assim, o lugar de onde fala o repórter na reportagem é o do sujeito da enunciação, ou seja, o sujeito neste lugar privilegiado detém o poder de escolher, de sugerir valores no discurso.

O repórter, de posse da palavra autorizada, fala em nome de alguém e o faz deste patamar discursivo, como sujeito que enuncia. Ao reportar, nomeia e ao nomear demarca, isola um campo que evoca significados. Ora, se partimos, como já dissemos, que o jornalismo está implicado na linguagem e esta é um sistema de signos, vemos que a apresentação de mundo oferecida em uma dada narrativa jornalística necessariamente não fará a correspondência exata entre o significado (conteúdo), o significante (representação psíquica) e o referente (materialidade), faces do signo. Haverá sempre um deslocamento impeditivo da perfeita associação do que se diz e do que se entende, entre o que o algo nomeado e sua significação.

Haverá sempre algo que foge, que falta para que essa equação se feche.

Se tomarmos a palavra mesa, em sua forma, e pensarmos seu referente, ou todos os objetos que eventualmente possam cair sob sua nomeação, surge de antemão um distanciamento que diz respeito ao fato de que a forma da palavra mesa não apresenta nenhuma ligação intrínseca e necessária com seu objeto de referencialidade: qualquer outra forma poderia ter sido aplicada, e ainda pode vir a sê-lo, com o mesmo efeito (Cf. GOMES, 2000: p.10).

O exemplo acima válido para a relação entre significante e referente é possível de ser visto também na relação entre significante e significado:

Se tomarmos a mesma palavra e a considerarmos em termos da idéia contida em confronto com a forma que é suporte para esta idéia, obteremos a mesma relação de não aderência. (...) Tomemos a palavra ‘jornal’. Se a relação entre forma e conteúdo fosse uma ‘intrinsicalidade’, ‘jornal’ teria até hoje a significação que lhe foi atribuída no século XIII, ‘pagamento de um dia de trabalho’ (Apud: CUNHA, 1997) (Idem).

Tais condições de não-simetria mostram que para ser algo o objeto nomeado deve existir a partir de um sistema de diferenças, isto é, ele só pode vir a ser por oposição a outra coisa. Esse isolamento de campo (de ordem simbólica) é determinante para a construção de uma apresentação de mundo, que nomeamos realidade. Esta, portanto, antes de ser uma representação, existe como apresentação e é dentro desta arena simbólica que vão emanar os discursos (não apenas os jornalísticos) e suas condições de produções de verdades.

A exclusão social sob sua perspectiva dialética

Antes da análise das narrativas que são objetos deste trabalho, faz-se pertinente estabelecer de onde vemos a questão da exclusão.  De acordo com Mariângela Belfiore Wanderley, em seu artigo Refletindo sobre a noção de exclusão [3], atribui-se a René Lenoir a invenção dessa noção em 1974. Foi esse autor que expandiu as reflexões em torno das concepções que engendram o tema, retirando-o de uma dimensão individual para inseri-lo na ordem social “cuja origem deveria ser buscada nos princípios mesmos do funcionamento das sociedades modernas” (Cf. WANDERLEY, 1999: p.16-17). Dentre as causas para o surgimento da exclusão social, Lenoir destacou o crescimento desordenado dos centros urbanos, “a inadaptação e uniformização dos sistemas escolares, o desenraizamento causado pela mobilidade profissional, as desigualdades de renda e de acesso aos serviços” (WANDERLEY, Apud: LENOIR, Op. Cit.).

A fluidez do tema e a capacidade que a noção tem de abrigar variados conceitos sob esta rubrica faz com que muitos estudiosos desse objeto concordem que do ponto de vista epistemológico é difícil delimitá-lo. Num recorte ocidental, afirma Wanderley, citando Xiberras (1993: p.21) que “excluídos são todos aqueles que são rejeitados de nossos mercados materiais ou simbólicos, de nossos valores”.

Embora não seja novo dizer que concepções e apresentações de mundo determinam exclusões das mais variadas ordens: culturais, geográficas, políticas, dentre outras, que acontecem à proporção que os valores intrínsecos a cada uma dessas categorias não são reconhecidos no sistema de trocas simbólicas, é importante notar que é apenas a partir da década de 1990, de acordo com Wanderley, a idéia de exclusão destaca-se no debate intelectual e político.

O panorama político-social e histórico sobre a exclusão mostra que as sucessivas e definitivas mudanças no mundo – da globalização à política neoliberal que reduz o dever social do Estado – contribuem para a dificuldade de constituir identidades individuais e coletivas, entendidas como a crise do sujeito (Cf. ROSANVALLON, Apud: WANDERLEY, 1999: p.18).

O excluído, sujeito sem poder e sem representação social, insere-se no sistema econômico sob a tutela de um Estado-providência que transformou direitos em favores; pelo menos é assim que as políticas públicas estão estabelecidas no Brasil. Dessa forma, os cidadãos em situação de exclusão somente são reconhecidos se filiados a um mecanismo socioeconômico (como as políticas públicas e programas de inclusão), isto é, “o Estado, por sua vez, faz com que a participação concreta dos indivíduos na vida coletiva se realize e seja, primordialmente, reconhecida através de dois eixos: trabalho e proteção social” (Cf. CARRETEIRO, 1999: p. 92).

Não causa estranheza, portanto, a afirmação de Carreteiro (1999) de que muitas pessoas aceitam o “projeto-doença” para serem reconhecidas como cidadãs, sua filiação dá-se, portanto, por meio da “dimensão subjetiva do sofrimento” (Cf. SAWAIA, 1999: p.08).

Expostas essas observações, percebemos que de alguma maneira aquele que é nomeado como excluído é veladamente incluído, pois tem seu lugar na ordem econômica e lhe é útil à medida que a sustenta. Daí entendermos e concordarmos com os estudos sobre exclusão social orientados por Sawaia (1999) que concebem o tema a partir da sua perspectiva dialética, a saber, “sua transmutação em inclusão perversa”. 

A sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica que o caráter ilusório da inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no circuito reprodutivo das atividades econômicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e das privações, que se desdobram para fora do econômico (Cf. SAWAIA, Op. Cit., p. 08).

É com essas reflexões teóricas e interdisciplinares que partimos para a análise do nosso objeto.

Minha vida é longa e triste. Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: Minha vida daria um romance. (...) Foge polida, mas rapidamente dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: minha vida daria um romance! Todas as vidas dariam um romance, pois o romance é só o jeito de contar  uma vida.  
(Paulo Mendes Campos, Para Maria das Graças, 1979).

Modos de contar histórias

Nossa análise recobre duas das onze matérias publicadas na revista Primeira Impressão. A escolha aleatória limita-se à relação exclusão social/pobreza, dispensando enfoques que relacionam exclusão com saúde mental, solidão, AIDS e outros temas afins. Ao considerarmos os significados e sentidos projetados além das frases como produtoras de discurso [4], apontamos alguns momentos da narrativa em que os enunciados, as palavras, as construções discursivas, as escolhas do repórter vão ao encontro do que discutimos até aqui.

Matéria 1. [5]
Mesmo preenchida pelo vai-e-vem de idosos, crianças e doentes, a vida em um asilo é solitária. Os pesadelos do passado e do presente acompanham cada história, mas não impedem que os sonhos existam. Esquecidos, os personagens desta reportagem são protagonistas de uma peça inacabável graças ao descaso não só do governo, mas de toda a sociedade.

Logo de partida, a chamada para a matéria opera, nos eixos da enunciação, uma orientação implicada nos subentendidos. Somos inexoravelmente levados a inferir que a história narrada é permeada por tristeza e abandono. No entanto, logo em seguida, o título: “Vestígios de esperança”leva-nos a operar outro tipo de implícito, o pressuposto: de alguma forma há um Bem atrelado ao que será contado e este vem em oposição ao Mal que é viver “no inferno”.  A idéia de esperança determina um modo de entender o enunciado, transforma-se em algo que se espera “presenciar” no que virá no decorrer do relato.

Na dupla antitética Bem x Mal, o enunciado tem significados ancorados (na visão da Representação Social – RS a partir de agora), ou seja, trazidos “para categorias e imagens conhecidas” (Cf. UARESCHI, 1995: p.201), ou seja, esperança x tristeza.  Assim, os sujeitos excluídos são delineados nos entornos dessas categorias.

Em seguida, o texto revela que a esperança também diz respeito ao nome do lugar, Asilo Esperança. “A sensação de que se tem ao chegar no (sic) Asilo Esperança, em Sapucaia do Sul/RS, é de estar no inferno. O lugar não combina com o nome. Um cheiro forte de urina espalha-se pelos corredores. Não parece uma casa”.

O jogo com a palavra esperança na oposição conotação/denotação, nos mostra como a seleção de palavras feita pela repórter evoca significados para apresentar o lugar onde se encontram as pessoas em situação de exclusão: a palavra esperança da chamada da reportagem não possui o mesmo sentido daquela empregada no título: a primeira, denotativa, remete ao referente, à materialidade, mas que tem seu efeito no imaginário, uma vez que o conceito de esperança lança o referente para esta ordem; a segunda, conotativa, remete ao sentido, no caso, ao sentido que vai percorrer toda a narrativa. Este jogo com a esperança será levado até o final da matéria, como um happy end, e será mantido destacado como uma a redenção possível em meio à miséria, ao abandono, ao descaso social e político.

A idéia de redenção pela via religiosa perpassa quase todas as reportagens, figurando como o trampolim para o enfrentamento da dor para um sucesso que virá sempre a posteriori. A própria iniciativa de erguer um lugar para colocar os excluídos foi uma ordem divina, de acordo com a dona do asilo, Dona Sueli. Chamou-nos à atenção que o sonho descrito é todo revestido de palavras que evocam imagens de um Deus e de provas forjados no imaginário e que mais parecem uma re-apropriação de discursos já conhecidos e legitimados dentro de uma determinada plataforma cultural, sem a qual não seria possível formar o contexto onde inserir os nomeados excluídos e identificá-los como tais.

Deus estava me chamando. (...) Uma mulher [em sonho] me deu uma chave grande e pesada [grifo nosso] e disse que era para eu abrir o cativeiro das pessoas que sofrem. Olhei para um local trancado por grades e [grifo nosso] as pessoas de acotovelavam. Algumas não tinham um olho e eu me assustei. Mas a mulher disse: eles são lindos.

A descrição continua e alude à idéia de que é preciso olhar para a beleza que está dentro deles.

O que se verifica é que as representações dadas até aos contextos de inserção dos apresentados como excluídos precisam ser reduzidas a categorias para fazer o estranho, tornar familiar. Este eixo, aliás, a razão de ser das RS: “o propósito de todas as representações é o de transformar algo não familiar, ou a própria não familiaridade em algo familiar” (Cf. MOSCOVICI, 1984: p.23-24).

Em uma matéria 2, [6] o enunciado mostra que de algum modo os excluídos estão inseridos na tecido social, ainda que precariamente, como vimos nos estudos dialéticos sobre exclusão.

Quem passa sobre a ponte do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, não imagina que mais de dez famílias de índios vivam ali embaixo numa situação de total precariedade (...).

Vivem precariamente, indignamente, mas vivem.  Lá montaram barracos, fazem comida em meio à sujeira. Disfarçados de excluídos tornam-se perversamente incluídos por meio da precariedade.

O texto abre com a frase: “Ao primeiro olhar são confundidos com favelados”. Isso nos diz muito. Mais uma vez isolou-se um campo pela diferença. Os sujeitos apresentados são sempre signos erigidos e se tornam significantes em todos os relatos. A questão não é delinear a qual categoria pertencem, se favelados ou índios, mas o que os une como humanos. No entanto, é preciso fazer uma associação com os favelados para que a apresentação dos índios não fique anacrônica. No imaginário socialmente instituído, índio está inserido em outro referencial que não o da pobreza, ainda que isso não seja verdade.

Na estrutura da reportagem, os enunciados parecem “isolados da situação de enunciação”, como se as palavras que o constituem formassem universos autônomos e não houvesse um sujeito enunciador que fala em nome de ou a partir de um patamar discursivo que significa o lugar da escolha, ainda que da escolha inconsciente.

As associações promovidas pelos significados evocados nas palavras nos levam a dizer que a imagem criada para descrever ou narrar o que é visto pelo repórter (sempre na redução de categorias) e sempre aquela que faz uma referência direta ao imaginário com efeito na ordem simbólica, a partir da qual todo humano atua e troca.

Considerações finais

Invariavelmente, os nomeados sob a etiqueta da exclusão são inserido nas narrativas jornalísticas por meio do seu sofrimento. Afinal, é assim que são entendidos como tal.  Uma vez identificados a partir de um recorte de campo que os isola em categorias, estes sujeitos se instauram na ordem simbólica, portanto, na linguagem. Assim constituídos os sujeitos tornam-se significantes para os outros sujeitos, antes mesmo de serem concebidos como sujeito. Assim é posta a alteridade na arena simbólica.

Recortados em categorias, os excluídos são apresentados no jornalismo de um modo que este entende sua função: de provedor de verdades (e de poder) instaladas no mundo. Essas vontades no jornalismo funcionam, como nos alerta Gomes (2000), com um dispositivo disciplinador (no sentido foucaultiano). Sawaia (1999: p.107), afirma também que as reflexões de Foucault “servem de referência à concepção de exclusão como processo dialético de inclusão”, uma vez que aquele autor vê na idéia de inclusão social “um processo de disciplinarização dos excluídos, portanto, um processo de controle social e manutenção da ordem na desigualdade social”.

Embora as reportagens escolhidas para este trabalho se esmerassem na técnica do script bem feito “com as cores”, “com as tintas do cotidiano” "para dar voz ao que não tem voz”, as narrativas são sempre ancoradas na perda, no dano e na possível redenção. Num plano primeiro da extração semântica mais literal, poderíamos entender que se trata apenas disso: o esforço do sujeito excluído, amparado pela existência de um Outro, seja o que não é denominado como excluído, seja o Estado-providência, revelará que exclusão daquele é uma condição transitória, temporária. A análise numa etapa mais profunda, no nível discursivo das narrativas propõe o contrário: o que está em jogo são exatamente esses valores de saber e poder para manter este estado de coisas, a saber, de manter a exclusão como sistema que ampara ordem social.

Nas reportagens em questão, o repórter tenta retratar o sujeito excluído como um não estranho, descrevendo-o como um alguém que - como todo humano - tem dores, sonhos, medos e espera encontrar uma recompensa no final de tanto sofrimento e contrição. No entanto, ao fazê-lo reproduz discursos circulantes no imaginário coletivo: o sujeito de quem se fala (importa notar que não é um eu-enunciador que fala, portanto as situações retratadas e os significados e os sentidos dado a ela parecem não ser escolhas, mas uma realidade pré-existente revelada pelo jornalista) é alguém estranho a nós, não excluídos, mas que por meio de algumas palavras cujos significados são evocados na perspectiva de uma materialidade (sonhos, desejos, vontades, esforço, esperança) os sujeitos parecem figuras menos apartadas do social. É no conceito fluído desses significados que se busca uma materialização, o referente.

Os conceitos (significados), por sua vez, remetem o referente para a ordem do imaginário (onde se dão as [re]apresentações dos sujeitos) com efeito na ordem simbólica, onde se dão as trocas subjetivas e onde agimos conforme o efeito. E esta é uma das muitas possibilidades de identificar o sujeito em sua condição de excluído.

Não haverá um esgotamento dessas possibilidades porque o sujeito sob a rubrica da exclusão poderia ser sempre uma coisa outra.

Não será de se estranhar, portanto, que novas equipes de jornalistas voltem aos mesmos lugares em São Leopoldo para nos reportar o que já conhecemos, agora com um novo nome.

NOTAS

[1] Edição de mai./jun. 2001, n° 14.

[2] Editorial por Marta Cioccari. Edição de mai./jun. 2001, n° 14, p. 03.

[3] Wanderley. M. B. In: SAWAIA, B. (Org.). As Artimanhas da exclusão – Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 1999.

[4] Tomamos a noção de discurso sobre a etiqueta da Pragmática. Assim, privilegiamos a idéia de que o discurso é organizado e situado para além da frase e deve ainda ser considerado no interdiscurso. (MAINGUENEAU, D. Análise de textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2004. p. 52-55).

[5] ADOLPHS, A. “Vestígios de esperança”. In: Revista Primeira ImpressãoRetratos da exclusão. São Leopoldo/RS, N°.14, mai./jun. 2001, p. 17-20.

[6] SHÜLER, Cristiana. MORAES, Cristina. “Donos de que terra?”. In: Revista Primeira Impressão Retratos da exclusão. São Leopoldo/RS, N°14, mai./jun. 2001, p. 34-37.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, D. L. P. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1994.

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

FIORIN, J. L. Para entender o texto. São Paulo: Ática, 1995.

GOMES, M. R. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo: Hacker, 2000.

__________. Poder no jornalismo. São Paulo: Hacker, 2003.

GUARESCHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. (Org.). Textos em Representações Sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.

LAGE, N. Técnicas de reportagem e entrevista. São Paulo: Ática, 1998.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos em comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.

SAWAIA, B. (Org.). As artimanhas da exclusão – análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001.

*Mônica Arouca é jornalista e professora da FAAP/SP e da PUC/PR.


Revista PJ:Br - Jornalismo Brasileiro [ISSN 1806-2776]