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ARTIGOS

Cultura pós-moderna e comunicação
O jornalismo científico em foco

Por Claudio Bertolli Filho*

Inicio este artigo invocando uma situação corriqueira para quase todos nós, especialmente nas noites de domingo:


'Zapear' pelos canais de televisão abertos ou a cabo em busca de algum programa que preencha as horas que precedem ao sono e ao início de mais uma semana de trabalho.

Reprodução

Sem grandes dificuldades, podemos nos deparar com um daqueles programas de variedades ou especializado em informações sobre a ciência que, aproximando jornalismo e entretenimento e repetindo em larga dose o que já havia sido informado pela mídia impressa, combinará dois eixos temáticos.

O primeiro deles provavelmente versará sobre uma novidade científica, apresentando uma nova hipótese, uma tecnologia ou um produto já disponível no mercado como algo que 'em breve' deverá salvar a vida de um grande número de pessoas que até aquele momento estavam fadadas a viver sob grandes padecimentos ou mesmo chegar a óbito em curto prazo.

O outro eixo discorrerá sobre a utilização irresponsável ou manutenção precária de uma usina atômica ou de qualquer outro item tecnocientífico que, por isso, poderá gerar um desastre de grandes proporções, resultando em agravos à saúde que possivelmente colocará em risco a vida de vastos contingentes populacionais, se não toda a espécie humana.

Talvez mesmo sem que percebamos com suficiente clareza, nosso espírito e nosso corpo reagirão a tais informações, experimentando, com a primeira matéria, uma sensação de bem-estar, segurança e confiança na Ciência para, com a matéria seguinte, enveredarmos por um estado de desconforto físico, angústia e desassossego em relação ao saber e a prática científica, reproduzindo algo parecido com a experiência registrada por Kerckhove (1997) frente às imagens que lhe foram apresentadas através de um aparelho de televisão.

Após o encerramento do programa, cada um de nós ponderará: não serei eu uma das possíveis vítimas do flagelo profetizado pelo cientista entrevistado e corroborado pelo semblante tenso e um tanto cínico do apresentador do programa que acabamos de assistir?

Frente ao verdadeiro horror pelo qual somos tomados na intimidade de nossas salas, que faz esquecer inclusive a 'boa notícia' anunciada minutos antes, buscamos acalmar nossos corpos e apaziguar nossos espíritos ponderando sobre a própria condição de existência da mídia.

Afinal, a maior parte, se não todos os produtos elaborados pelos meios de comunicação de massa buscam chamar a atenção do público e vender mercadorias e idéias, recorrendo aos enfoques sensacionalistas e, nesse processo, apelando para o espetacular, os instintos primários, o irracional. Se alguma verdade houver no que foi anunciado, empenhamos em nos convencer de que a nova doença ou os efeitos de um acidente nuclear nunca chegarão até nós, pois a Ciência certamente encontrará uma resposta eficiente para controlar o desastre prometido.

Consolamo-nos com esses pensamentos e assim conseguimos alcançar o sono relativamente tranqüilo, tentando acreditar que o dia seguinte se desenrolará sem surpresas e sem sustos, no qual tudo se repetirá como sempre, com o conforto e a segurança usuais.

A experiência registrada acima se revela, sem que tenhamos consciência clara disso, como um fato corriqueiro e inscrito em um novo tempo, pautado menos por rupturas do que pela ampliação do escopo das intervenções científicas e a proliferação de renovadas tecnologias, desdobrando-se na multiplicação de questionamentos acerca da vida sócio-institucional. A partir disso, detecta-se um misto de expectativas ufanistas e declarações niilistas que, em conjunto, contaminam os diversos setores da vivência humana e favorecem seminais releituras do pretérito e do presente, assim como instigam projeções sobre o porvir individual e coletivo.

Sob a rubrica da pós-modernidade, alta modernidade ou ainda modernidade tardia, define-se um contexto propenso mais a amálgamas do que a sínteses, alimentando contínuas e persistentes ambigüidades e também um indisfarçável mal-estar que se infiltra em todas as instâncias do cotidiano e em suas expressões culturais e midiáticas. A busca por explicações sobre quem somos e para onde rumamos tem gerado uma vasta bibliografia que tenta decifrar a problemática que, flutuando entre as perorações sobre a segurança que o 'progresso' nos proporciona e os novos riscos que a 'vida moderna' produz, instruem nossos pensamentos e nossas ações no âmbito da conjuntura atual.

Nesse contexto acredita-se na possibilidade de que, com certa antecedência em relação aos saberes científicos, a mídia tenha desenvolvido um esquema de percepção que tem permitido vislumbrar um presente crivado de riscos reais e potencialmente comprometedores da vida no futuro. Isto porque foi somente a partir da década de 1970 e especialmente a partir do decênio seguinte é que as Ciências Sociais buscaram teorizar sobre a existência de uma sociedade e de uma cultura de risco, tendo como uma de suas expressões pioneiras o livro co-assinado pela antropóloga Mary Douglas e pelo sociólogo Aaron Wildavsky (1983).

A partir de então, proliferaram os enfoques acadêmicos tematizados pelas circunstâncias de risco na sociedade, destacando-se entre eles os estudos de Beck (1992), Adam, Beck e Van Loon (2000) e Giddens (2002), autor sobre o qual apoia-se o enfoque adotado neste texto.

Coube a Giddens tecer uma das mais vigorosas interpretações sobre os impasses contemporâneos, sugerindo que os encaminhamentos disponíveis tanto no plano global, quanto no nacional, regional e local passam concomitantemente por dois circuitos extremos. Tais rotas, apesar de antagônicas, complementam-se, sendo uma delas modelada pela concepção de segurança e a outra pela de risco em relação à sociedade e suas instituições.

O primeiro desses caminhos articula-se com o esforço de legitimação de tudo ou pelo menos de boa parte do universo considerado próprio da pós-modernidade; o cultivo, não sem críticas e reticências, da sensação de segurança enfatiza a positividade dos novos laços de sociabilidade, a autonomia e relativa acuracidade das decisões político-econômicas, os resultados benéficos da presença maciça da Ciência e da Tecnologia no dia-a-dia, enfim, busca instigar a adesão às instituições ao mesmo tempo produzidas e produtoras da realidade social.

O segundo roteiro, em oposição, recobre-se de cautelas, enfatizando a noção de risco tanto nas avaliações sobre o presente quanto nas projeções do futuro; nessa operação, confere-se caráter potencialmente danoso a uma série de instituições, agentes sociais e saberes que em épocas anteriores não eram alvos de tão intensos receios, expondo as desconfianças e temores em relação às estruturas basilares da sociedade. A vida contemporânea flui, pois, pendente entre um e outro pólo perceptivo, conferindo contornos próprios aos novos esquemas de sociabilidade e aos suportes articulados no plano da cultura.

A 'cultura da segurança', sinônimo quase perfeito da alta dose de confiança depositada nas grandes estruturas da sociedade e em seus produtos culturais, viabiliza comportamentos sociais produtivos porque promotores da pronta revisão e imediata circulação de idéias e mercadorias, nutrindo esperanças de que aquilo que serve para hoje perderá total ou parcialmente sua utilidade amanhã; nessa via, defende-se que a contínua e rápida renovação favorece o aperfeiçoamento humano, social, político e econômico.

Rumando em sentindo contrário, a 'cultura de risco' tem enfatizado os perigos do progresso acalentado, já que o universo e seus personagens humanos são analisados como potencialmente capacitados para minar a existência, conduzir a calamidades que, se não prometem o próprio apocalipse, pelo menos acenam com a possibilidade do afloramento de problemas de difíceis, se não de impossíveis soluções.

Giddens (2002:25) também defende o suposto segundo o qual o período que ele próprios insiste em declarar como sendo uma fase tardia da modernidade busca apresentar-se essencialmente como 'uma ordem pós-tradicional' no sentido que, ao redefinir as orientações espaço-temporais, 'afasta a vida social da influência de práticas e preceitos preestabelecidos'. A apologia implícita na presunção de que 'tudo que é sólido desmancha no ar', preconizada em meados do século XIX por Marx e Engels (1996) e retemperada por Berman (1986), no entanto, conta com limitações claras, as quais são assumidas pelo sociólogo britânico.

Isto porque a teia cultural do tempo presente buscar romper possíveis determinismos impostos pelo processo histórico, reaproveitando o legado do pretérito mediante mesclas e combinações que abrigam em seus interstícios o 'tradicional' e o 'moderno', o que expõe às claras o momento de transição que todos nós experimentamos, não sem uma boa dose de aflição.

A ânsia pelo eternamente novo situa quase que automaticamente a Ciência e suas derivações tecnológicas como elementos constitutivos de uma das principais instituições que caracterizam a problemática pós-moderna, abrigando em seu bojo as noções de segurança e de risco e, através disto, permitindo formulações polifônicas sobre como tais setores estão articulados no processamento do presente e na construção do futuro humano.

Assim, por um lado, a herança positivista, ainda incontestavelmente vigorosa nas falas dos pesquisadores, continua a reiterar que as expressões científicas, neste texto emblematizadas pelos saberes e práticas institucionais de escopo médico-biológico, produzem suportes encaminhadores do progresso, sustentando que a Ciência como um todo acalenta como objetivo maior o aperfeiçoamento da existência humana, quer em sua dimensão biológica quer no plano social (Bernard, 1998).

Em outra direção, apregoa-se que a cultura pós-moderna é moldada pelo desencantamento em relação ao poderio científico: o conhecimento forjado nos laboratórios e nos debates travados entre os especialistas corre o risco de condenar a todos a um futuro sombrio, mencionando-se como exemplo favorito a 'nova eugenia' que, em uma de suas pontas, reviveu o velho pesadelo de uma humanidade tecnificada e condenada a privilegiar os 'biologicamente mais aptos' (seja lá o que este rótulo possa significar) em detrimentos dos 'fracos' (Black, 2003).

As análises no campo da Ciência que postulam que 'jamais fomos modernos' (Latour, 2000) coadunam-se com a desconfiança de que as instituições científicas estão mais aptas a destruírem do que a glorificarem a vida, alegando-se inclusive que o 'berço simbólico' da pós-modernidade conta com dia e hora impostos pelos cientistas: 8h15 da manhã do dia 6 de agosto de 1945, instante em que o primeiro artefato nuclear foi detonado sobre uma coletividade humana (Santos: 1986:20) [1].

É nesse cenário algo nebuloso que a idéia de sina, mesmo que destituída de sua dimensão fatalista, aflora como um dos elementos persistentes nas expressões pós-modernas, constituindo-se em um dos itens fundantes das negociações das identidades contemporâneas e das estratégias mobilizadas para a intervenção no presente e nos apregoamentos sobre o porvir.

A ampla autonomia conferida aos sujeitos sociais em suas tomadas de decisões permite o delineamento de um contexto alimentado pela 'reflexividade', isto é, de uma sociedade na qual se percebe que 'as condições que vivemos são cada vez mais o resultado de nossas próprias ações e, inversamente, nossas ações visam cada vez mais administrar ou enfrentar os riscos e oportunidade que nós mesmos criamos' (Giddens & Pierson, 2000:20; Giddens; Beck & Lash, 1997), colocando em tela a especificidade ética dos indivíduos, dos agrupamentos sociais e dos arranjos institucionais. Em continuidade, não é exatamente o saber da Ciência que se torna objeto de novas suspeitas, mas sim o que os cientistas, institucionalmente organizados ou não, e seus patrocinadores podem fazer com o conhecimento e com o poder que detêm.

Fala-se, portanto, na tecitura de uma nova relação entre a sociedade, a Ciência e a Tecnologia na qual a concepção de risco mostra-se um crivo significativo. Nesses termos, a confiança e os risco detectados na Ciência apresentam-se como faces de uma mesma moeda, sendo que ainda é Giddens quem alerta para a seguinte questão:

"É preciso distinguir risco de perigo. Risco diz respeito à análise ativa das contingências futuras; é uma noção que se torna tanto mais difundida quanto mais a sociedade se volta para o futuro, procurando construí-lo ativamente. Com o advento da modernidade, o conceito de risco se generaliza, assim como a idéia de seguro. Seguro e segurança são o outro lado do risco" (Giddens &Pierson, 2000:77).

Pós-modernidade e mídia

Entendidas como 'propriedades estruturantes' (Giddens, 1979:64) que criam uma vinculação particular de tempo e espaço no contexto dos sistemas sociais, as culturas de segurança e de risco são, já faz um bom tempo, endossadas nas tramas conteudísticas da mídia, lembrando que para Giddens (2002:29), 'a modernidade é inseparável de sua própria mídia'.

Reiterando o que outros analistas já tinham ponderado, para o pensador britânico a maior parte da multiplicidade de experiências contemporâneas chegam até nós através da mediação dos canais de comunicação que veiculam mensagens que se caracterizam, sobretudo, pelo efeito de colagem, através do qual ocorre a justaposição de enredos de diferentes matizes que acabam por gerar representações peculiares dos eventos pretensamente retratados, interferindo decisivamente nas possíveis interpretações dos acontecimentos, e ainda a intrusão de eventos distantes na consciência cotidiana, desterritorializando os fatos e, com isso, criando a sensação de que cada um de nós constitui-se em cidadão do mundo.

Em resultado, 'nas condições da modernidade, os meios de comunicação espelham realidades, mas em parte as formam', instruindo a falsa percepção da inexistência de um 'outro' em prol da composição de um 'nós' idealizado e de consistência frágil frente às especulações mais aprofundadas (Giddens, 2002:13), o que certamente acrescenta novas dificuldades na constituição das identidades e das alteridades (Hall, 1997).

Em outras palavras, o Homem se (re)descobriu e se perdeu numa trama que o situa em um mundo mediado pelos dispositivos comunicacionais. Esses, por sua vez, redimensionaram a importância das notícias e da difusão do conhecimento que, mais do que nunca, ganharam a dimensão de mercadorias em um panorama no qual a realidade concreta e suas implicações no cotidiano tornaram-se fugidias e subordinadas às versões midiáticas dos acontecimentos (Lyotard, 1986).

Nesse sentido, é importante destacar que a popularização das recentes 'conquistas' da Ciência e de suas implicações na percepção da segurança e do risco encontra na mídia e especialmente no jornalismo científico um canal privilegiado de expressão e a Comunicação, dentro dos limites possíveis, exerce o papel de mediadora e de questionadora da Ciência e da Tecnologia e também dos resultados sociais da inserção das instituições científicas no cotidiano grupal, interferindo nos processos decisórios individuais e coletivos (Moura, 2003).

Buscando refletir sobre as questões até aqui expostas, o objetivo deste texto é focar a faceta pós-moderna representada pelas culturas de segurança e de risco, elegendo para análise as matérias que têm sido produzidas pela mídia impressa sobre Ciência e Tecnologia, contando para isso com o olhar assumido pelo jornalismo científico.

Tal opção deve-se sobretudo à centralidade ocupada pela Ciência e seus desdobramentos no cenário atual, corporificando uma instituição instigadora tanto de discursos midiáticos entusiásticos quanto de falas moderadas ou mesmo pessimistas, já que apontam para os riscos potenciais que a atividade científica comporta (Allan, 2002). A posição de destaque que a Ciência ocupa no ambiente cultural contemporâneo reflete-se em tudo o que é oferecido pela mídia, a qual tem destinado novos e amplos espaços para a veiculação de notícias sobre o tema.

A profusão de fontes impõe a necessidade de alguns recortes; primeiramente, optou-se pela análise de conteúdo das matérias instruídas pelo campo das ciências médico-biológicas voltadas para o entendimento e tratamento do corpo humano, já que a perfectibilidade corpórea, a saúde plena e a pretensão à vida que se quer eterna compõem uma tríade que se mostra persistente na 'ideologia' pós-moderna (Leal, 2001; Oliveira, 2003). O segundo recorte refere-se às fontes analisadas, adotando-se como corpus para estudo o Caderno FolhaCiência inserido no paulistano Folha de S.Paulo, restringindo-se ao período de julho de 2001 a julho de 2002 [2].

Antes de se proceder a análise do material indicado, no entanto, torna-se necessário discorrer sobre os atuais compromissos do jornalismo científico e suas implicações no relacionamento entre os cientistas e os comunicadores.

O tarefa do jornalismo científico nas sociedades democráticas

Espelhando a tendência dominante nos países centrais, no início da década passada a American Association for the Advancement of Science (AAAS) elaborou uma minuciosa pesquisa que recebeu o título de Science for all Americans.

Nesse estudo, empregou-se o termo 'instrução científica' como algo que em certos momentos se confunde com a noção de 'divulgação científica', sendo que, com algumas variações, a maior parte das ponderações constantes no relatório norte-americano tem sido repetidas pelos profissionais da comunicação como compromissos básicos que devem ser assumidos pelos jornalistas científicos, ganhando várias traduções, inclusive em língua portuguesa (Rutherford & Ahlgren, 1995).

Essa obra, originalmente destinada ao enfoque das necessidades da parcela mais jovem da população dos Estados Unidos em relação ao acompanhamento dos progressos científicos e tecnológicos, estabeleceu uma série de direcionamentos que, em parte, ajustam-se à prática do jornalismo científico.

Nesse sentido, aponta-se que os conteúdos a serem abordados devem levar em consideração as seguintes orientações: a utilidade prática do conhecimento para a sintonia do indivíduo com a modernidade, facilitando assim que cada um seja capacitado para a tomada mais conseqüente das decisões pessoais, o incentivo à responsabilidade social, permitindo que o cidadão participe e se posicione de 'forma inteligente' na tomada das decisões sociais e políticas que envolvam matérias de Ciência e Tecnologia, o valor intrínseco do conhecimento como valor cultural universal e constitutivo da história humana e, finalmente, a dimensão filosófica capacitadora das pessoas para que adquiram uma nova percepção da realidade e ponderem sobre o significado da vida e da morte, do bem individual e do bem-estar coletivo, da certeza e da dúvida (Rutherford & Ahlgren, 1995:13-14).

A postura norte-americana - crivada de princípios imperialistas que sub-repticiamente sugerem que a Ciência e a prática científica dos Estados Unidos devem servir como parâmetros avaliadores de tudo que acontece no resto do mundo - passou a impregnar pesadamente as pontificações dos jornalistas científicos, defendendo-se também uma certa continuidade entre o ensino formal básico e médio e os conteúdos que são divulgados pela mídia.

Em entrevista, o jornalista científico Marcelo Leite, que inclusive freqüentou cursos de especialização em divulgação científica tanto nos Estados Unidos quanto na Alemanha, assim definiu o papel da especialidade que pratica na imprensa:

"Me parece que ao menos a pesquisa faz parte da integral da educação. A divulgação científica é mais um apoio e um complemento, sobretudo de atualização, porque a produção científica é hoje mais copiosa e rápida. Os livros didáticos e mesmo muitos professores não têm as condições de acompanhar esses desenvolvimentos que se sucedem, então os jornais e revistas acabam sendo uma forma de se manter atualizado (por isso nos preocupamos muito com fornecer as fontes das pesquisas publicadas, em particular na internet, para que as pessoas interessadas em se aprofundar possam obter mais material)" (Leite, 2003a).

Em caminho próximo ao de Marcelo Leite, vários outros estudiosos nacionais têm ressaltado o caráter didático e complementar dos conteúdos disseminados pelo jornalismo científico - termo frequentemente utilizado como sinônimo de divulgação científica - ao que foi aprendido nas escolas de ensino fundamental e médio. Caminho paralelo foi adotado por Bueno (2003a) quando enfatizou que o jornalismo científico conta entre outras funções com a de 'despertar vocações' entre os jovens, especialmente no referente às ciências básicas, mencionando neste setor Química, Física, Biologia e Matemática.

Apesar da hegemonia da avaliação norte-americana para o jornalismo científico, é possível deparar-se com outras posições complementares ou mesmo concorrentes. Dentre estas, ganha destaque no cenário nacional os ensinamentos do espanhol Manuel Calvo Hernando.

Reverenciado como um dos principais jornalistas em atividade, Calvo Hernando desempenhou e continua desempenhando a estratégica missão de politização da prática do jornalismo científico, observando que esta especialização constitui-se em um compromisso do profissional da imprensa para com a cidadania.

Para ele, o jornalismo científico revela-se ao mesmo tempo como resultado e como agente incentivador das sociedades democráticas. Neste encaminhamento, o jornalista espanhol postula que só há realmente democracia nas sociedades que têm patrocinado dispositivos disseminadores de conhecimento e de informações que permitam a participação consciente de todos na tomada de decisões coletivas. A partir desse suposto, novos compromissos são cobrados dos jornalistas científicos:

"Frente ao terceiro milênio, as sociedades do nosso tempo carecem de medidas políticas, econômicas, sociais e culturais que instiguem ou ampliem a popularização da ciência através dos meios de comunicação de massa. O grupo que participou do Primeiro Congresso de Comunicação Social da Ciência (realizada em Granada, Espanha, em março de 1999) representa um fenômeno que não é novo, mas que ganha uma nova dimensão nas portas do século XXI: pessoas de diferentes procedências e ambientes culturais estão trabalhando em harmonia em algo que, pelo menos por enquanto, é considerado um problema menor, mas que está se tornando agora de interesse de um crescente número de pessoas e sociedades. A popularização da ciência, do jornalismo científico e da comunicação pública da ciência está hoje tentando responder aos desafios do nosso tempo" (Calvo Hernando, 2003).

A influência das idéias de Calvo Hernando no Brasil já conta com uma história, inclusive porque coube a ele ministrar, na década de 1970, um curso pioneiro na área do jornalismo científico junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Seus ensinamentos têm contribuído para a formação de uma nova geração de divulgadores da Ciência e mesmo uma parcela dos cientistas interessados em discutir publicamente o significado social das pesquisas de ponta.

Os jornalistas Ricardo Bonalume Neto, Wilson da Costa Bueno, Dalira Lúcia Cunha Carneiro e Ulisses Capozoli são alguns dos profissionais que têm se empenhado em ampliar o território de compromissos dos profissionais da comunicação, equacionando a problemática do jornalismo científico em termos políticos.

A defesa de um jornalismo que expõe os fatos, mas também que os interroga, condição essencial para um jornalismo científico mais conseqüente, tem alimentado múltiplos conflitos entre os divulgadores da Ciência e os empresários da Comunicação inebriados pela ideologia neoliberal (Ivanissevich, 2005). Nesse contexto, cabe a pergunta: para que serve o jornalismo científico? Uma resposta possível é a seguinte:

"O jornalismo científico não pode simplesmente fechar os olhos à realidade e sair por ai, como muitos cientistas têm feito, proclamando aos quatro ventos que não adianta divulgar a ciência porque a população não tem condições de entendê-la. Pelo contrário, deve, como missão, buscar torna-la suficientemente clara, com o objetivo de democratizar o conhecimento e permitir, gradativamente, que as pessoas comuns participem do processo de tomada de decisões com respeito aos grandes temas de ciência e tecnologia" (Bueno, 2003b).

Buscando colocar em prática este novo posicionamento, novos focos de conflito ganharam vez na relação entre os cientistas e os jornalistas.

Mais de um documento dirigido aos pesquisadores assinala a importância da existência de um bom relacionamento com a mídia pois esta desempenha o papel mediador da Ciência com a sociedade, servindo como agente legitimador das atividades desenvolvidas no laboratório e das verbas recebidas e também como canal popularizador das novas itens colocados no mercado. No entanto, mais de um cientista mostrou-se surpreso e também algo indignado quando o jornalista que o entrevistou 'ousou' questionar as possíveis implicações deletérias para a sociedade de suas pesquisas.

Nestes casos, segundo o depoimento de alguns jornalistas entrevistados pelo autor desse texto, a cortesia e a paciência de um renomado cientista foi substituída por um certo desconforto e irritação, chegando um deles a proferir uma daquelas frases que marcam a prepotência elitista: 'você sabe com quem está falando?'

Assim, uma nova cultura do jornalista científico deve contar em contrapartida com também um novo posicionamento dos cientistas; a antiga autonomia de ação dos pesquisadores deve ser limitada pela importância e repercussão social de seus estudos, o que nem sempre acontece quando este se vê questionado por alguém que não pertence à restrita comunidade daqueles que produzem Ciência.

Frente às declarações de princípios dos comunicadores e das reações dos cientistas aos questionamentos acerca de suas atividades, cabe agora focar a produção atual dos jornalistas científicos.

O jornalismo científico na FolhaCiência

A proposta de enfoque do jornalismo científico coloca em primeiro plano a idéia, ainda corriqueiramente invocada, de que tal especialidade jornalística corresponde sobretudo à tarefa de 'tradução' dos jargões empregados pelos cientistas para que o leitor leigo tenha condições plenas de entendimento das reportagens.

Postula-se que, bem mais do que isso, o trabalho de divulgação dos mecanismos de produção, aplicabilidade e consumo dos resultados dos saberes e das realizações científicas exige a recorrência a estratégias específicas, gerando um discurso original, mesmo que baseado nos pronunciamentos arquitetados no interior do campo científico. Nesse sentido, o jornalista científico não é apenas um mero 'tradutor', mas sim o autor de versões midiáticas de 'fatos' científicos, situação que implica inclusive em posicionamentos questionadores (Zamboni, 2001).

Esse conjunto de procedimentos que leva a informação a ganhar a formatação de notícia, é importante que se ressalte, está inscrito no território da cultura.

Se ganhou o sentido de regra enfatizar que o jornalista deve sempre pressupor que seus leitores estão imersos nas malhas culturais e que essa circunstância pode levar à ocorrência de 'ruídos' no processo comunicativo (Bueno, 2003c), ainda pouca atenção foi concedida ao fato de o próprio profissional da comunicação cooptar nas matérias que produz com os postulados culturais predominantes na sociedade em que está inserido. Se a comunicação é tida como 'condição matricial da cultura' (Schudson, 1996; Rocha, 2004), julga-se que também é necessário se observar o reverso desta situação: a cultura é também formuladora das teias de comunicação e de seus produtos.

Nesse sentido, o texto jornalístico pode ser avaliado como um espelho do momento em que é produzido não só no plano ideológico, como ensina a Teoria Crítica, mas sobretudo como um produto cultural. Se aceita esta ótica, pode-se inclusive conferir um novo campo de atuação por parte da antropologia da comunicação.

A partir desses supostos é que se busca analisar as matérias veiculadas pela FolhaCiência, Caderno inserido na Folha de S.Paulo a partir de meados da década de 1980, momento no qual o jornal experimentou uma profunda reforma gráfica e editorial nos moldes do jornalismo empresarial norte-americano (Silva, 1988 e 1991).

Nesse processo, a Folha passou a reivindicar para si o papel de porta-voz privilegiada da pós-modernidade, inclusive no espaço reservado ao Caderno aqui analisado, tornando-se uma espécie de modelo para outros órgãos da imprensa diária do estado de São Paulo e do país [3]. No plano formal, a proposta do diário para seu Caderno especializado é oferecer ao leitor 'notícias sobre as últimas descobertas e pesquisas mais recentes e importantes no Brasil e no mundo, com especial atenção para o didatismo e para o uso de recursos visuais na explicação de assuntos complexos' (Folha de S.Paulo, 2004).

No período indicado para estudo, a FolhaCiência contou com 342 números que veicularam um total de 748 matérias, sendo que aproximadamente 95% delas apontaram como fontes iniciais de informação instituição científicas, pesquisadores, revistas especializadas ou de divulgação científica e ainda jornais estrangeiros, quase todos eles sediados nos Estados Unidos e na Europa Ocidental e isto mesmo quando, ironicamente, as situações, experimentos, instituições e personagens retratados estivessem localizados no Brasil ou em outras regiões do planeta que não as das agências noticiosas contratadas pela Folha.

No mesmo sentido, quase 60% das matérias foram indicadas como sendo da editoria do Caderno, o que sugere que os textos que serviram de base para as matérias foram fornecidos exclusivamente por agências noticiosas ou colhidos em outras fontes - especialmente os periódicos Nature, Science e Science Now - e apenas adaptados, se não simplesmente traduzidos para o leitor brasileiro.

Ainda em relação ao conjunto de matérias, aproximadamente 95% delas apresenta um caráter predominantemente informativo, situação que se mostra contrária à proposta do novo espírito do jornalismo científico, o qual apregoa a necessidade de o profissional da comunicação posicionar-se frente aos fatos retratados, 'dialogando' com o leitor com o objetivo não só de favorecer a 'alfabetização científica', mas também contribuir para a constituição de consciências cidadãs (Capozoli, 2002).

Nesse âmbito, do total de matérias apresentadas pelo Caderno, 204 (27,2% do total) correspondem a iniciativas que articulam as ciências médico-biológicas e as questões suscitadas pelo corpo humano. A intensa presença desse tema na FolhaCiência, revela-se um fato comum em publicações divulgadoras da Ciência e da Tecnologia, já que se postula que nada mais chama tanto a atenção do leitor que as informações científicas ou simplesmente tidas como 'curiosas' acerca do que lhe é mais íntimo: seu próprio corpo, território que frutificam esperanças e temores minimizados ou exponenciados pela intensa intervenção da medicina e seus desdobramentos (Burkett, 1990:175).

É nesse espaço midiático pendular entre as noções de segurança e risco que se torna cada vez mais claro que a máxima cartesiana 'penso, logo existo' está sendo substituída no plano da cultura pelo princípio cunhado pela fenomenologia segundo o qual 'tenho corpo, logo existo'. Um corpo que, como se verá, assumiu novas conotações em conseqüência das recentes avanços científicos, destacando-se nesse cenário as recentes propostas fornecidas pela biologia molecular.

A ciência do corpo na FolhaCiência

Apesar do empenho do jornalismo científico incorporar dentre de seus compromissos a proposta de análises holísticas dos fatos científicos, no referente ao corpo humano nota-se ainda o predomínio da perspectiva cartesiana. Em conseqüência, o corpo é apresentado sobretudo como um conjunto de mecanismos dotado de uma racionalidade própria e que se encontra em contínuo processo de aperfeiçoamento para responder, com relativa autonomia, tanto às suas próprias disfunções quanto às agressões externas a ele.

Acompanhando esta idéia, a evolução humana tem como ponto fulcral o aperfeiçoamento ou complexização do cérebro que, por sua vez, não se refletiu apenas na anatomia, mas também na psicologia dos nossos ancestrais. Nesse sentido, ganhou espaço destacado na imprensa a tese de um pesquisador australiano que assevera que, a partir de um certo momento evolutivo, datado de aproximadamente 135 mil anos, o Homem reuniu elementos culturais que conferiram nova e mais rápida dinâmica à sua evolução, dentre eles a domesticação dos cães. Segundo uma das matérias sobre o assunto, os efeitos da 'coabitação' com os caninos acarretou profundos efeitos psicológicos no Homem, alterando suas estratégias de caça e também seus liames na vida social.

Ainda em coerência com esta tese, o hominídeo teria aprendido com os cães a marcar presença no território, a se acasalar com alguém de idade próxima a sua e inclusive a desenvolver o sentimento de amizade e de formação de alianças e coligações com outros seres humanos.
A localização do Homem na esfera da cultura impõe os limites da autonomia corporal, condenando-o a uma dependência cada vez mais acentuada de recursos oriundos da Ciência e da Tecnologia, constatação implícita na mídia e que abre as portas para a exaltação da própria Ciência e de seus produtos.

Adotando este suposto, multiplicam-se as matérias que informam o leitor sobre novas descobertas da medicina que podem promover o aperfeiçoamento da estrutura corpórea, corrigir os defeitos e disfunções orgânicas, eliminar a dor e o desconforto físico e, em última instância, prolongar a vida por um tempo que seria impossível creditar apenas à existência que não tenha sido submetida à manipulação científica.

O afã em anunciar a positividade da medicina chega às raias de o Caderno especializado veicular notícias avaliadas pouco depois como pseudociência, sem que, no entanto, o jornal informasse aos leitores sobre tal conclusão. Em um dos casos, a FolhaCiência noticiou como fato comprovado a estratégia apregoada por alguns clínicos europeus de que, para combater a insônia crônica, bastava que o indivíduo lançasse por alguns minutos raios de luz emitidos por uma lâmpada comum na região anterior do joelho.

O primado da medicina no aperfeiçoamento da vida ganhou destaque maior no período focado mediante a exaltação descomedida dos recentes avanços da biologia molecular. Vistoriando as quase duas décadas de publicação do Caderno, nenhum tema ganhou tanto destaque como a genética e suas derivações, quer pela extensão de cada uma das notícias quer pela freqüência de enfoque dos trabalhos de decodificação do genoma humano e seus desdobramentos, assunto que desde 1998 e até o momento tem sido imperante na publicação.

Nesse sentido, é possível afirmar que a 'ideologia médica', pensada como o predomínio de um determinado paradigma científico ou de uma temática (Canguilhem, s.d.) contaminou a imprensa, determinando que a terminologia própria da 'nova genética' esteja presente, mesmo como metáfora, em um grande número de matérias, centradas ou não em temas médico-científicos.

Nesse encaminhamento, se a biologia molecular tem suscitado tanto furor entre os cientistas, ela também se tornou motivo de verdadeiro culto pela maior parte da comunidade dos jornalistas, inclusive devido ao empenho das instituições de pesquisa em envolver rotineiramente os profissionais da comunicação em suas atividades (Davies, 2001), chegando a ponto de alguns deles se transformarem em porta-vozes não oficiais de alguns laboratórios de biologia molecular, criando assim a falsa sensação de transparência e isenção jornalística.

Acredita-se que foram raras as vezes que uma situação científica gerou tanto fascínio entre os profissionais da mídia, sobretudo porque fica patente nos enredos autorizados pelo jornalismo científico que a genética representa a face da Ciência que mais tem contribuído para a firmação do sentimento de segurança, tanto para o momento presente quanto para o futuro vislumbrado.

O sequenciamento do genoma humano foi saudado por cientistas e divulgadores científicos como a chave para o conhecimento da vida; nesse processo, James Watson e Francis Crick, os arquitetos da 'dupla hélice' no início da década de 1950, foram resgatados da semi-penumbra pública para serem alçados à condição de heróis - ou santos - da pós-modernidade.

A FolhaCiência, tão reticente em discorrer sobre a biografia dos 'grandes cientistas', utilizou várias matérias para apresentar ao leitor a trajetória de vida de ambos os pesquisadores, suas dúvidas existenciais, as obras raras existentes em suas bibliotecas particulares e suas vinculações com os setores acadêmicos e empresariais.

Especialmente no referente a Watson, o jornal preferiu oferecer ao seu público uma imagem expurgada, deixando de lado as severas críticas orquestradas por outros cientistas sobre o fato de o personagem em questão estar comprometido com interesses de laboratórios comerciais e usar sua influência para convencer o governo norte-americano a destinar imensas verbas aos projetos científico-empresariais que ele próprio liderava.

Nas expressões idealizadoras da mídia impressa, praticamente todos os infortúnios gerados pelo aparato biológico humano já foram ou estão prestes a serem solucionados pela engenharia genética. São muitas as matérias que versam, com sofreguidão, sobre a localização dos cromossomos responsáveis por patologias que a todos causam pesadelos inconfessáveis, do câncer ao mal de Alzaimer, da esquizofrenia à cegueira congênita, do infarto do miocárdio ao acidente vascular-cerebral e a depressão psicológica.

Isto sem esquecer que os vírus e bactérias causadoras de várias doenças infecto-contagiosas que ainda não encontraram soluções plenamente eficientes pela medicina, tais como os micróbios da AIDS, do Ebola, da influenza pandêmica, das febres do Nilo e de Llassa, ganharam projeção no momento em que foram objetos de sequenciamento genético total ou parcial, ficando a sensação de que, em breve, as patologias a eles creditadas comporão uma página virada na história epidemiológica da Humanidade.

O desdobramento lógico para muitas perorações midiáticas é que a Ciência já localizou ou está prestes a identificar a parte do genoma humano ou os mecanismos químico-biológicos do envelhecimento e da morte. Ainda não se chegou ao extremo de se fazer a apologia da morte como um fenômeno superado pela intervenção médica, mas algumas matérias pontificam que, em uma ou duas décadas, a genética estará capacitada para instruir uma medicina preditiva que deverá detectar os genes responsáveis pelas patologias antes que elas se pronunciem no organismo humano e que a engenharia genética intervirá no corpo para retardar os mecanismos do envelhecimento, fazendo o tempo médio de vida estender-se para 120 anos.

Várias matérias versam sobre o novo campo de ação da criogenia; se a morte ainda não pode ser evitada, nem mesmo nas projeções mais otimistas sobre o porvir, a preservação do corpo ou apenas do cérebro em câmaras de congelamento representa a esperança de que em algum momento, a vida poderá vir a ser, de fato, eterna.

O apregoamento jornalístico que, explícita ou implicitamente, versa sobre um mundo sem doenças, sem dores e potencialmente sem mortes, e também sobre a perfectibilidade do corpo graças à intervenção especializada parece inesgotável nas mensagens emanadas pelo jornalismo científico. Mesmo que de maneira fragmentária, a representação imperante na mídia divulgadora da Ciência é que os segredos e mecanismos do corpo humano já são suficientemente conhecidos pela medicina e suas derivações imediatas.

Tal presunção gera dois tipos de comportamentos jornalísticos: o primeiro deles é que tudo que é identificado como obstáculo para o avanço médico tem perdido interesse e espaço nas páginas da FolhaCiência. A AIDS, por exemplo, quase não aparece como desafio ainda não resolvido pela Ciência, sendo o tratamento do assunto quase todo deslocado para outros cadernos do jornal, sobretudo o Mundo e o Cotidiano.

O outro comportamento refere-se à produção de matérias entusiasmadas sobre o potencial regenerador do corpo através da recorrência clínica às células-tronco. Pouco as matérias discorrem sobre as dificuldades e riscos na utilização dessas células no 'reparo' do organismo humano, preferindo os jornalistas enfatizarem o sucesso dos experimentos laboratoriais que foram realizados com cobaias e sugerirem que, dentro em pouco, tais recursos estarão à disposição dos enfermos.

O aperfeiçoamento do corpo biológico desdobra-se também na versão midiática de uma Ciência desveladora e potencialmente reparadora dos verdadeiros ou falsos desfuncionamentos que, supostamente localizados na concretude individual, colocam em questionamentos a lógica, a ética, a moral e até os princípios estéticos adotados pelo tecido coletivo.

Especialmente a partir do ano de 2000, quando se festejou o sequenciamento genético humano, ganharam posições de manchetes os textos que veiculam notícias sobre a 'descoberta', dentre outros, dos cromossomos determinantes dos instintos, da homossexualidade, da seleção de parceiros para reprodução, da hipersexualidade, da preguiça, da beleza (?!), dos comportamentos passionais, da agressividade, do instinto materno, da necessidade de muitas horas de sono diário, do suicídio e do consumo da cocaína, aventando-se também a localização dos genes determinantes de várias habilidades, como a da inteligência, do canto, da música e do esporte, da facilidade de solução dos problemas matemáticos e do aprendizado de línguas estrangeiras.

Nesse ponto, alguns jornalistas postulam que, graças à aplicação do conhecimento produzido pelas pesquisas na área da genética, é possível alcançar-se uma sociedade mais perfeita e concatenada, perfazendo uma operação que 'biologiza' o social e, consequentemente, exclui boa parte das responsabilidades individuais e coletivas dos processos de funcionamento e potenciais desajustes que persistem no âmbito grupal.

Nesse cenário repleto de esperanças na biologia molecular à serviço da Humanidade sob a forma de engenharia genética, confidências de verdadeiro encantamento impregnam as matérias jornalísticas analisadas.

Uma dessas matérias, assinada por um dos mais destacados comunicadores científicos do país, ao comemorar a localização do gene responsável pela esquizofrenia, incorporou ao lide da notícia a seguinte afirmação: 'poucas empreitadas científicas foram tão desacreditadas quanto a caça ao gene, ou genes, da esquizofrenia', conferindo uma dimensão epopéica à descoberta creditada a uma equipe de cientistas norte-americanos.

O deslumbramento midiático também aposta no porvir, como no caso das células-tronco, incitando um jornalista a predizer que estas células 'estão entre as vedetes da medicina do futuro', enquanto que outra matéria informa precipitadamente que as mesmas células podem se tornar 'a mais importante descoberta da Ciência', já que podem se transformar 'em qualquer tecido no corpo humano'.

Ainda uma outra matéria, que foca os primeiros sucessos de um incipiente experimento laboratorial com ratos, visando a obtenção de um tratamento eficaz para as vítimas da hepatite B, concluiu-se que 'apesar de não haver ainda previsão de quando começam os testes em humanos, os cientistas acreditam que serão obtidos resultados semelhantes'.

Frente a esses posicionamentos, os pesquisadores do setor médico-biológico que buscam relativizar a importância das explicações fornecidas pela biologia molecular, tal como o cientista Crodowaldo Pavan, de regra são tratados com um certo toque de desprezo nas páginas da Folha, sendo rotulados automaticamente como 'geneticistas da velha-guarda'.

As avaliações otimistas sobre o potencial da prática médica no presente e no futuro contou com um reparo arguto, através do pronunciamento de um dos raros cientistas convocados para publicar um texto na FolhaCiência. Sérgio Danilo Pena, geneticista e professor da Faculdade de Medicina da UFMG, assinalou no artigo intitulado 'O novo dualismo da genômica', publicado em 4 de outubro de 2001, os limites do saber produzido pela biologia molecular e a fragilidade das abordagens triunfalistas sobre esse ramal da Ciência, avaliando o sequenciamento genético do Homem como ainda sendo apenas um 'rascunho' e não como uma tarefa já totalmente finalizada, como sugerem várias matérias jornalísticas analisadas.

O caráter contundente do artigo, que rema em sentido contrário ao posicionamento dos jornalistas atuantes no diário sob análise, merece ser reproduzido em parte:

"A publicação recente do primeiro rascunho do genoma humano fortaleceu a noção errônea de que ele constitui a verdadeira essência da natureza humana. Como expressou o bioeticista Alex Mauron, o genoma passou a ser visto como o equivalente secular da alma e tornou-se sinônimo da nossa própria humanidade. Tenho genoma, logo existo.
Esse enfoque 'genomocêntrico' é enganoso e perigoso. Enganoso por sua simplicidade atraente. Perigoso porque, como o cavalo de Tróia, carrega em seu ventre um inimigo: o conceito nocivo do determinismo genético. Torna-se indispensável, então, entender o real significado do nosso genoma para 'nós mesmos' (...).
Por toda a nossa vida, o nosso fenótipo ('nós mesmos') depende da interação do genoma com o ambiente atual e com a seqüência dos ambientes passados, isto é, a nossa biografia".

É necessário se observar que, distante das páginas da imprensa diária, parece que os próprios jornalistas assumem avaliações mais moderadas, apontando os 'avanços' proporcionados pela medicina genética, ressaltando porém os limites de uma Ciência que, se procedeu à decodificação básica do genoma humano e que tem se empenhado na identificação dos cromossomos que podem estar associados a enfermidades e comportamentos, até o momento elaborou poucas estratégias comprovadamente eficientes de intervenção na saúde humana.

Mais do que isto, alguns livros assinados por profissionais da imprensa, inclusive que atuam ou atuaram na FolhaCiência, dedicam algumas páginas para, não sem um certo sentimento de autocrítica, a qual é estendida também à comunidade científica, registrarem a dimensão parcialmente fantasiosa de muitas matérias tematizadas pela genética que são disseminadas pelos meios de comunicação de massa (Leite, 2003b; Teixeira, 2000).

Claudio Tognolli (2003), por sua vez, certamente é o jornalista que mais tem rejeitado o saber e as práticas genômicas, dedicando um livro integralmente para denunciar a 'falácia genética' que tem dominado o discurso da imprensa.

A sensação de segurança inspirada pelo novo poderio da biologia molecular convive com a percepção de risco sobre o alcance intervencionista das instituições científicas. Um novo alento tem ganhado as vozes que discorrem sobre o possibilidade dos envolvidos nas atividades científicas em comportarem uma 'dupla personalidade', incorporando ao mesmo tempo o espírito de Dr. Jekyll e o de Mr. Hyde, relembrando a trama composta por Robert Louis Stevenson.

No referente aos novos conhecimentos oferecidos pela biologia molecular, mais do que as menções sobre a existência de uma multidão de excluídos que não terá como obter os dispendiosos tratamentos personalizados que deverão ser disponibilizados pela genética e a possibilidade, também no futuro, da instalação de um autoritarismo social em nome da eugenia, o indício de risco mais acalentado pela mídia tem um nome: clonagem.

As pesquisas voltadas para a clonagem foram inicialmente avaliadas como mais um triunfo da engenharia genética, ganhando maior visibilidade na mídia em 1996, quando o biólogo britânico Ian Wilmut apresentou ao mundo o primeiro animal clonado da história, a ovelha batizada com o nome Dolly [4].

Somente em meados de 2001, momento de veiculação das primeiras notícias que tratavam da possibilidade da clonagem humana, a FolhaCiência abriu espaço para, em nome da bioética, inserir na sua pauta os receios de que a genética poderia desviar-se do caminho de ciência auxiliadora do Homem e, inebriada com sua própria potencialidade, 'produzir' seres humanos segundo uma estratégia que colocaria em risco a dignidade não só de tais criaturas, mas de toda Humanidade.

Mesmo que de maneira fugidia e ocupando espaços bem menores do que aqueles destinados à celebração da genética, ganhou destaque quase que permanente o médico italiano Severino Antimori que desde abril de 2001, mesmo contra a legislação de seu país e da ameaça de perder o direito de exercer a profissão, passou a declarar que iria sim clonar um ser humano.

Nas páginas especializadas da Folha, os textos que tratam do assunto ganham um certo ar de indignação nem sempre escamoteada, inclusive porque, ainda segundo o jornal, 'o futuro chegara' e ele poderia reavivar os pesadelos das práticas nazistas, já que o cientista italiano declarava que sua 'produção' seria 'biologicamente perfeita'. Em resposta, alguns artigos anunciavam que, segundo pesquisadores norte-americanos, se a clonagem humana fosse realmente tentada, levaria ao surgimento de seres aberrantes, já que os recursos biotecnológicos disponíveis resultariam em uma intervenção genética imperfeita, incapaz de impedir a morte do feto ou ainda o nascimento de 'monstros', alcunhando Antimori de 'Dr. Ética maluca".

Percebendo a ambigüidade de apoiar as propostas da 'nova genética' e ao mesmo tempo mostrar-se temeroso frente à duplicação humana com fins reprodutivos, o Caderno especializado novamente quebrou sua rotina ao publicar em 15 de novembro de 2001 o artigo 'Clonar ou não clonar, eis a questão', assinado pela bióloga e professora da USP Lygia da Veiga Pereira.

O texto conta com o propósito de explicar aos leitores, mesmo que caricaturalmente, o processo de clonagem e desaprovar a proposta de clonagem reprodutiva, acusando os que ousassem lançar mão dessa prática como sendo 'pseudocientistas' que poderiam causar um 'grande mal' à Humanidade. A pesquisadora, no entanto, defendeu a clonagem terapêutica, com a utilização de células-tronco extraídas de embriões de até cinco dias de existência, advogando que 'a proibição cega [da clonagem com fins terapêuticos] leva ao atraso da ciência e da melhora da qualidade de vida'.

Pouco tempo depois, a mesma postura foi reiterada por cientistas nacionais e estrangeiros, sendo adotada por praticamente todas as matérias científicas veiculadas pelo jornal. Não obstante, notícias de ocorrência de clonagem reprodutiva em local incerto da Europa Oriental, Estados Unidos, China e Emirados Árabes Unidos foram veiculadas e nunca desmentidas, criando a sensação de que, em algum lugar, estava em curso a gestação de um ser que poderia colocar em xeque os próprios fundamentos éticos, morais e religiosos da Humanidade [5].

Nesse cenário, a Folha estampou no Caderno aqui analisado parte do pronunciamento do filósofo Roberto Romano, realizado no âmbito de um encontro de bioética, que serve de alerta aos próprios jornalistas: 'para ter ética científica, é necessário entender que o cientista está fazendo, sem condená-lo a priori'.

Mesmo assim, em abril de 2002, quando Antinori informou que havia secretamente clonado um embrião humano e o implantado no útero de uma mulher, o qual já contava com oito semanas de vida, a FolhaCiência, sem levar em consideração a possibilidade de a informação ser mentirosa, avaliou que o anúncio 'surpreendeu e horrorizou a comunidade científica', negando ao experimento qualquer positividade.

Pouco depois, outra matéria estampada no Caderno, de forma surpreendente e pouco usual no jornalismo científico, assim se referiu ao médico italiano:

"Chamar o embriologista italiano Severino Antinori de cientista parece exagero, na opinião de muitos acadêmicos. Cientistas, afinal, costumam pautar sua conduta pela publicação de seus resultados e pela submissão de seus trabalhos ao crivo de seus pares".

Para reafirmar sua opção, nos dias seguintes às primeiras notícias sobre a clonagem humana, o jornal reproduziu trechos das ponderações do presidente norte-americano. Mesmo que Bush se declare contrário a qualquer modalidade de clonagem, parece que a Folha concorda com alguns itens constantes na exposição do político, principalmente quando ele afirma que "a vida é uma criação, não um bem de mercado. Nossos filhos são dádivas e devem ser amados e protegidos, e não produtos a serem projetados e manufaturados".

As discussões motivadas pela clonagem humana colocaram a Folha de S.Paulo e seus jornalistas frente a um dilema. Por um lado, o jornal se auto-apresenta como o diário mais afinado com tudo que merece o rótulo de pós-moderno e, por isso, assume as inovações científicas como arquitetas privilegiadas do presente e do futuro. Em outra via, a possibilidade de produção de clones humanos aponta para a negação - real ou imaginária - dos valores mais caros da civilização ocidental.

O receio de o jornal assumir uma posição que poderia colocá-lo como alvo fácil de críticas certamente levou o Caderno científico a dar destaque a uma interrogação sobre as pesquisas na área da clonagem, formulada pelo senador democrata norte-americano Tom Daschle, que os jornalista da Folha (e de nenhum outro meio impresso) não ousaram responder: "vamos impedir o progresso em algumas das doenças mais terríveis conhecidas pelo homem ou vamos permitir que a pesquisa vá em frente?'.

Considerações finais

O convívio com as novas concepções de segurança e risco é uma das marcas - ou uma das maldições - da cultura pós-moderna. Deslocados para o contexto da mídia, tais valores quase que imperceptivelmente impregnam as matérias veiculadas, sendo que aquelas que versam sobre os saberes e as atividades científicas constituem apenas um indício do processo que está conferindo formatação específica a todos os produtos elaborados pelos meios de comunicação de massa.

O 'admirável mundo novo', perversamente prometido por uma parcela considerável da comunidade científica e adotado com maior ou menor intensidade pela imprensa, representa uma versão/avaliação possível dos acontecimentos, preservando nas entrelinhas as angústias e esperança de um tempo que ainda nos parece indecifrável, porque de transição.

Nem sempre o caminho de análise aqui adotado é aceito, especialmente pelos pesquisadores biomédicos. Um respeitável cientista brasileiro, que ocupa posição estratégica no gerenciamento de uma das principais instituições médicas nacionais que inclusive desenvolve pesquisas na área de biologia molecular, confidenciou recentemente ao autor deste artigo que evita tanto conceder entrevistas a jornalistas quanto saber que suas exposições em eventos científicos foram registradas pela mídia porque, ainda segundo ele, seus pronunciamentos são corriqueiramente alterados, criando dificuldades em seu ambiente de trabalho.

Para ele, as distorções perpetradas pelo jornalismo devem-se exclusivamente ao preparo deficiente dos profissionais que cobrem o momento científico.

Acredita-se que, bem mais do que a capacidade de o profissional da comunicação em entender os temas especializados e elaborar matérias para serem consumidas pelos leigos, são as lentes culturais que ele mobiliza que, em última instância, definem os conteúdos que assina.

Nesse encaminhamento, funde-se num mesmo texto paixão pelas novas conquistas científicas e temor pelo que elas podem proporcionar à Humanidade. Além disso, a inclusão de notícias científicas diversas em uma mesma página e a frágil informação sobre quando e onde exatamente ocorreram os fatos reportados acabam por produzir uma sensação de 'deslocamento' espaço-temporal que, experimentada pelo leitor, também não se mostra estranha ao praticante do jornalismo, interferindo em tudo que redige e na auto-avaliação que faz de seu trabalho.

A apologia do progresso tutorado pela Ciência e pela Tecnologia inevitavelmente flui para as especulações sobre o tempo futuro. Na maior parte das vezes de forma fugidia, os textos elaborados ou reproduzidos pela Folha voltam-se para o porvir, abrigando entusiasticamente em suas mensagens a sensação de segurança e, de forma desolada, a de risco e, com isto contribuído, mesmo que dentro de limites específicos, para a constituição de uma consciência crítica e comprometida com as questões contemporâneas.

Nessa senda, as interrogações propostas pelo tempo presente se disseminam e se intensificam em relação ao futuro, sem contudo encontrar possibilidades para respostas convincentes, colocando às claras a mídia atual ao mesmo tempo como produto e produtora de um momento cultural no qual confiança e medo mostram-se como as duas faces de uma mesma moeda.

Frente ao que foi comentado, voltamos ao ponto inicial deste texto. Os sistemas de segurança e de risco inspirados pela Ciência fazem de todos nós aquele telespectador que se defronta com duas notícias, uma apontando para o fato de a Ciência ter solucionado mais um problema relativo à saúde humana e outra que se reporta a uma nova situação de risco para toda a Humanidade.

Como cidadãos-consumidores que encontramos na mídia o principal, se não o único, canal de informação sobre o movimento científico-tecnológico, devemos comodamente ponderar como fez nosso personagem - como todos nós geralmente fazemos - que a tragédia nunca chegará até nós? Ou, pelo contrário, levando em consideração tudo que a polifonia midiática anuncia, agirmos para assim contribuirmos para que haja esperanças no final do nosso percurso?

Notas

[1] No dia 7 de agosto de 1945 as notícias de primeira página do New York Times deixavam claro o posicionamento do jornal sobre o uso da tecnologia nuclear para fins bélicos. As manchetes foram as seguintes: "First atomic bomb dropped on Japan", "Missiles is equal to 20,000 tons of TNT" e "Truman warns foe of 'rain of ruin'". As manchetes, também de primeira página, do dia 10 de agosto, dia seguinte à eclosão da segunda bomba atômica sobre uma cidade japonesa foram as seguintes: "Atom bomb loosed on Nagasaki", "2nd. Big aerial blow" e "Result called good".

[2] A maior parte das análises sobre as matérias da FolhaCiência foram extraídas de uma pesquisa anterior realizada pelo autor (Bertolli Filho, 2003).

[3] Apesar de atualmente ocupar um pequeno espaço no jornal, a FolhaCiência é apresentada pelo Manual de Redação (Folha de S. Paulo, 2001) patrocinado pelo diário como sendo um caderno temático, sendo esta designação aqui adotada. Vale ressaltar que, quando ele surgiu, contava com duas ou três páginas, geralmente inseridas no final do Caderno Mundo. No decorrer dos anos, porém, o espaço dedicado à divulgação científica foi sendo restringido, ocupando atualmente a média de uma página, sendo metade dela tomada por propagandas. Diferentemente de outros cadernos do jornal, percebe-se que o espaço destinado à Ciência varia conforme a existência ou não 'matérias quentes', referentes ou não à temática científica. Assim, no dia 12 de setembro de 2001, quando se apresentou detalhes sobre os ataques terroristas em Nova Yorque e Washington, o noticiário científico ficou restrito a aproximadamente ¼ de página, enquanto que em agosto do ano seguinte, a FolhaCiência estendeu-se por até cinco páginas para cogitar junto aos leitores sobre os possíveis motivos técnicos que levaram a ocorrência do acidente na base de Alcântara, quando um foguete lançador de satélites explodiu ainda na plataforma de lançamento, causando a morte de vários técnicos e ameaçando de cancelamento o projeto espacial brasileiro. Lembra-se ainda que, desde seu surgimento e até julho de 2000, a sessão de ciência da Folha fazia parte do Caderno Mundo, sendo que a partir desta última data, que coincide com a apresentação pública do primeiro rascunho completo do genoma humano, a temática ganhou um caderno exclusivo, o que deixa implícito a nova importância conferida às notícias científicas por parte da direção do jornal.

[4] Apesar de este artigo dedicar-se exclusivamente à análise conteudística dos textos jornalísticos, chama-se a atenção para o fato de, desde a apresentação pública da ovelha Dolly, a FolhaCiência já estampou pelo menos uma dúzia de fotos do animal, tornando-o símbolo maior do processo de clonagem. Ressalta-se também que, no plano das imagens, o Caderno segue uma regra comum das páginas especializadas em Ciências, estampando preferencialmente fotos do "imensamente grande", como uma galáxia, ou do "infinitamente pequeno", tendo-se como exemplo o fragmento de um cromossomo.

[5] A descontinuidade das notícias, mesmo de um 'tema quente', não permitiu que o leitor da Folha fosse imediatamente alertado que nenhuma das iniciativas de clonagem chegou a termo, sendo que transcorreram alguns meses para se informar, quase casualmente, que coube aos chineses alcançarem o maior sucesso no processo de clonagem, produzindo um feto que, ao morrer, contava com cerca de duas centenas de células.

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*Claudio Bertolli Filho é Doutor em Ciências (História Social) pela Universidade de São Paulo; especializado em história e filosofia da ciência pela Indiana University (EUA) e em saúde coletiva pelo Instituto de Saúde (SP). Docente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação e no Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru. E-mail: cbertolli@uol.com.br.

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