ARTIGOS
Cultura
pós-moderna e comunicação
O jornalismo científico em foco
Por
Claudio Bertolli Filho*
Inicio este artigo invocando uma situação
corriqueira para quase todos nós, especialmente
nas noites de domingo:
'Zapear' pelos canais de televisão abertos ou a
cabo em busca de algum programa que preencha as horas
que precedem ao sono e ao início de mais uma semana
de trabalho.
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Reprodução

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Sem
grandes dificuldades, podemos nos deparar com um daqueles programas
de variedades ou especializado em informações
sobre a ciência que, aproximando jornalismo e entretenimento
e repetindo em larga dose o que já havia sido informado
pela mídia impressa, combinará dois eixos temáticos.
O
primeiro deles provavelmente versará sobre uma novidade
científica, apresentando uma nova hipótese, uma
tecnologia ou um produto já disponível no mercado
como algo que 'em breve' deverá salvar a vida de um grande
número de pessoas que até aquele momento estavam
fadadas a viver sob grandes padecimentos ou mesmo chegar a óbito
em curto prazo.
O
outro eixo discorrerá sobre a utilização
irresponsável ou manutenção precária
de uma usina atômica ou de qualquer outro item tecnocientífico
que, por isso, poderá gerar um desastre de grandes proporções,
resultando em agravos à saúde que possivelmente
colocará em risco a vida de vastos contingentes populacionais,
se não toda a espécie humana.
Talvez
mesmo sem que percebamos com suficiente clareza, nosso espírito
e nosso corpo reagirão a tais informações,
experimentando, com a primeira matéria, uma sensação
de bem-estar, segurança e confiança na Ciência
para, com a matéria seguinte, enveredarmos por um estado
de desconforto físico, angústia e desassossego
em relação ao saber e a prática científica,
reproduzindo algo parecido com a experiência registrada
por Kerckhove (1997) frente às imagens que lhe foram
apresentadas através de um aparelho de televisão.
Após
o encerramento do programa, cada um de nós ponderará:
não serei eu uma das possíveis vítimas
do flagelo profetizado pelo cientista entrevistado e corroborado
pelo semblante tenso e um tanto cínico do apresentador
do programa que acabamos de assistir?
Frente
ao verdadeiro horror pelo qual somos tomados na intimidade de
nossas salas, que faz esquecer inclusive a 'boa notícia'
anunciada minutos antes, buscamos acalmar nossos corpos e apaziguar
nossos espíritos ponderando sobre a própria condição
de existência da mídia.
Afinal,
a maior parte, se não todos os produtos elaborados pelos
meios de comunicação de massa buscam chamar a
atenção do público e vender mercadorias
e idéias, recorrendo aos enfoques sensacionalistas e,
nesse processo, apelando para o espetacular, os instintos primários,
o irracional. Se alguma verdade houver no que foi anunciado,
empenhamos em nos convencer de que a nova doença ou os
efeitos de um acidente nuclear nunca chegarão até
nós, pois a Ciência certamente encontrará
uma resposta eficiente para controlar o desastre prometido.
Consolamo-nos
com esses pensamentos e assim conseguimos alcançar o
sono relativamente tranqüilo, tentando acreditar que o
dia seguinte se desenrolará sem surpresas e sem sustos,
no qual tudo se repetirá como sempre, com o conforto
e a segurança usuais.
A
experiência registrada acima se revela, sem que tenhamos
consciência clara disso, como um fato corriqueiro e inscrito
em um novo tempo, pautado menos por rupturas do que pela ampliação
do escopo das intervenções científicas
e a proliferação de renovadas tecnologias, desdobrando-se
na multiplicação de questionamentos acerca da
vida sócio-institucional. A partir disso, detecta-se
um misto de expectativas ufanistas e declarações
niilistas que, em conjunto, contaminam os diversos setores da
vivência humana e favorecem seminais releituras do pretérito
e do presente, assim como instigam projeções sobre
o porvir individual e coletivo.
Sob
a rubrica da pós-modernidade, alta modernidade ou ainda
modernidade tardia, define-se um contexto propenso mais a amálgamas
do que a sínteses, alimentando contínuas e persistentes
ambigüidades e também um indisfarçável
mal-estar que se infiltra em todas as instâncias do cotidiano
e em suas expressões culturais e midiáticas. A
busca por explicações sobre quem somos e para
onde rumamos tem gerado uma vasta bibliografia que tenta decifrar
a problemática que, flutuando entre as perorações
sobre a segurança que o 'progresso' nos proporciona e
os novos riscos que a 'vida moderna' produz, instruem nossos
pensamentos e nossas ações no âmbito da
conjuntura atual.
Nesse
contexto acredita-se na possibilidade de que, com certa antecedência
em relação aos saberes científicos, a mídia
tenha desenvolvido um esquema de percepção que
tem permitido vislumbrar um presente crivado de riscos reais
e potencialmente comprometedores da vida no futuro. Isto porque
foi somente a partir da década de 1970 e especialmente
a partir do decênio seguinte é que as Ciências
Sociais buscaram teorizar sobre a existência de uma sociedade
e de uma cultura de risco, tendo como uma de suas expressões
pioneiras o livro co-assinado pela antropóloga Mary Douglas
e pelo sociólogo Aaron Wildavsky (1983).
A
partir de então, proliferaram os enfoques acadêmicos
tematizados pelas circunstâncias de risco na sociedade,
destacando-se entre eles os estudos de Beck (1992), Adam, Beck
e Van Loon (2000) e Giddens (2002), autor sobre o qual apoia-se
o enfoque adotado neste texto.
Coube
a Giddens tecer uma das mais vigorosas interpretações
sobre os impasses contemporâneos, sugerindo que os encaminhamentos
disponíveis tanto no plano global, quanto no nacional,
regional e local passam concomitantemente por dois circuitos
extremos. Tais rotas, apesar de antagônicas, complementam-se,
sendo uma delas modelada pela concepção de segurança
e a outra pela de risco em relação à sociedade
e suas instituições.
O
primeiro desses caminhos articula-se com o esforço de
legitimação de tudo ou pelo menos de boa parte
do universo considerado próprio da pós-modernidade;
o cultivo, não sem críticas e reticências,
da sensação de segurança enfatiza a positividade
dos novos laços de sociabilidade, a autonomia e relativa
acuracidade das decisões político-econômicas,
os resultados benéficos da presença maciça
da Ciência e da Tecnologia no dia-a-dia, enfim, busca
instigar a adesão às instituições
ao mesmo tempo produzidas e produtoras da realidade social.
O
segundo roteiro, em oposição, recobre-se de cautelas,
enfatizando a noção de risco tanto nas avaliações
sobre o presente quanto nas projeções do futuro;
nessa operação, confere-se caráter potencialmente
danoso a uma série de instituições, agentes
sociais e saberes que em épocas anteriores não
eram alvos de tão intensos receios, expondo as desconfianças
e temores em relação às estruturas basilares
da sociedade. A vida contemporânea flui, pois, pendente
entre um e outro pólo perceptivo, conferindo contornos
próprios aos novos esquemas de sociabilidade e aos suportes
articulados no plano da cultura.
A
'cultura da segurança', sinônimo quase perfeito
da alta dose de confiança depositada nas grandes estruturas
da sociedade e em seus produtos culturais, viabiliza comportamentos
sociais produtivos porque promotores da pronta revisão
e imediata circulação de idéias e mercadorias,
nutrindo esperanças de que aquilo que serve para hoje
perderá total ou parcialmente sua utilidade amanhã;
nessa via, defende-se que a contínua e rápida
renovação favorece o aperfeiçoamento humano,
social, político e econômico.
Rumando
em sentindo contrário, a 'cultura de risco' tem enfatizado
os perigos do progresso acalentado, já que o universo
e seus personagens humanos são analisados como potencialmente
capacitados para minar a existência, conduzir a calamidades
que, se não prometem o próprio apocalipse, pelo
menos acenam com a possibilidade do afloramento de problemas
de difíceis, se não de impossíveis soluções.
Giddens
(2002:25) também defende o suposto segundo o qual o período
que ele próprios insiste em declarar como sendo uma fase
tardia da modernidade busca apresentar-se essencialmente como
'uma ordem pós-tradicional' no sentido que, ao redefinir
as orientações espaço-temporais, 'afasta
a vida social da influência de práticas e preceitos
preestabelecidos'. A apologia implícita na presunção
de que 'tudo que é sólido desmancha no ar', preconizada
em meados do século XIX por Marx e Engels (1996) e retemperada
por Berman (1986), no entanto, conta com limitações
claras, as quais são assumidas pelo sociólogo
britânico.
Isto
porque a teia cultural do tempo presente buscar romper possíveis
determinismos impostos pelo processo histórico, reaproveitando
o legado do pretérito mediante mesclas e combinações
que abrigam em seus interstícios o 'tradicional' e o
'moderno', o que expõe às claras o momento de
transição que todos nós experimentamos,
não sem uma boa dose de aflição.
A
ânsia pelo eternamente novo situa quase que automaticamente
a Ciência e suas derivações tecnológicas
como elementos constitutivos de uma das principais instituições
que caracterizam a problemática pós-moderna, abrigando
em seu bojo as noções de segurança e de
risco e, através disto, permitindo formulações
polifônicas sobre como tais setores estão articulados
no processamento do presente e na construção do
futuro humano.
Assim, por um lado, a herança positivista, ainda incontestavelmente
vigorosa nas falas dos pesquisadores, continua a reiterar que
as expressões científicas, neste texto emblematizadas
pelos saberes e práticas institucionais de escopo médico-biológico,
produzem suportes encaminhadores do progresso, sustentando que
a Ciência como um todo acalenta como objetivo maior o
aperfeiçoamento da existência humana, quer em sua
dimensão biológica quer no plano social (Bernard,
1998).
Em
outra direção, apregoa-se que a cultura pós-moderna
é moldada pelo desencantamento em relação
ao poderio científico: o conhecimento forjado nos laboratórios
e nos debates travados entre os especialistas corre o risco
de condenar a todos a um futuro sombrio, mencionando-se como
exemplo favorito a 'nova eugenia' que, em uma de suas pontas,
reviveu o velho pesadelo de uma humanidade tecnificada e condenada
a privilegiar os 'biologicamente mais aptos' (seja lá
o que este rótulo possa significar) em detrimentos dos
'fracos' (Black, 2003).
As
análises no campo da Ciência que postulam que 'jamais
fomos modernos' (Latour, 2000) coadunam-se com a desconfiança
de que as instituições científicas estão
mais aptas a destruírem do que a glorificarem a vida,
alegando-se inclusive que o 'berço simbólico'
da pós-modernidade conta com dia e hora impostos pelos
cientistas: 8h15 da manhã do dia 6 de agosto de 1945,
instante em que o primeiro artefato nuclear foi detonado sobre
uma coletividade humana (Santos: 1986:20) [1].
É
nesse cenário algo nebuloso que a idéia de sina,
mesmo que destituída de sua dimensão fatalista,
aflora como um dos elementos persistentes nas expressões
pós-modernas, constituindo-se em um dos itens fundantes
das negociações das identidades contemporâneas
e das estratégias mobilizadas para a intervenção
no presente e nos apregoamentos sobre o porvir.
A
ampla autonomia conferida aos sujeitos sociais em suas tomadas
de decisões permite o delineamento de um contexto alimentado
pela 'reflexividade', isto é, de uma sociedade na qual
se percebe que 'as condições que vivemos são
cada vez mais o resultado de nossas próprias ações
e, inversamente, nossas ações visam cada vez mais
administrar ou enfrentar os riscos e oportunidade que nós
mesmos criamos' (Giddens & Pierson, 2000:20; Giddens; Beck
& Lash, 1997), colocando em tela a especificidade ética
dos indivíduos, dos agrupamentos sociais e dos arranjos
institucionais. Em continuidade, não é exatamente
o saber da Ciência que se torna objeto de novas suspeitas,
mas sim o que os cientistas, institucionalmente organizados
ou não, e seus patrocinadores podem fazer com o conhecimento
e com o poder que detêm.
Fala-se,
portanto, na tecitura de uma nova relação entre
a sociedade, a Ciência e a Tecnologia na qual a concepção
de risco mostra-se um crivo significativo. Nesses termos, a
confiança e os risco detectados na Ciência apresentam-se
como faces de uma mesma moeda, sendo que ainda é Giddens
quem alerta para a seguinte questão:
"É
preciso distinguir risco de perigo. Risco diz respeito à
análise ativa das contingências futuras; é
uma noção que se torna tanto mais difundida
quanto mais a sociedade se volta para o futuro, procurando
construí-lo ativamente. Com o advento da modernidade,
o conceito de risco se generaliza, assim como a idéia
de seguro. Seguro e segurança são o outro lado
do risco" (Giddens &Pierson, 2000:77).
Pós-modernidade
e mídia
Entendidas
como 'propriedades estruturantes' (Giddens, 1979:64) que criam
uma vinculação particular de tempo e espaço
no contexto dos sistemas sociais, as culturas de segurança
e de risco são, já faz um bom tempo, endossadas
nas tramas conteudísticas da mídia, lembrando
que para Giddens (2002:29), 'a modernidade é inseparável
de sua própria mídia'.
Reiterando
o que outros analistas já tinham ponderado, para o pensador
britânico a maior parte da multiplicidade de experiências
contemporâneas chegam até nós através
da mediação dos canais de comunicação
que veiculam mensagens que se caracterizam, sobretudo, pelo
efeito de colagem, através do qual ocorre a justaposição
de enredos de diferentes matizes que acabam por gerar representações
peculiares dos eventos pretensamente retratados, interferindo
decisivamente nas possíveis interpretações
dos acontecimentos, e ainda a intrusão de eventos
distantes na consciência cotidiana, desterritorializando
os fatos e, com isso, criando a sensação de que
cada um de nós constitui-se em cidadão do mundo.
Em
resultado, 'nas condições da modernidade, os meios
de comunicação espelham realidades, mas em parte
as formam', instruindo a falsa percepção da inexistência
de um 'outro' em prol da composição de um 'nós'
idealizado e de consistência frágil frente às
especulações mais aprofundadas (Giddens, 2002:13),
o que certamente acrescenta novas dificuldades na constituição
das identidades e das alteridades (Hall, 1997).
Em
outras palavras, o Homem se (re)descobriu e se perdeu numa trama
que o situa em um mundo mediado pelos dispositivos comunicacionais.
Esses, por sua vez, redimensionaram a importância das
notícias e da difusão do conhecimento que, mais
do que nunca, ganharam a dimensão de mercadorias em um
panorama no qual a realidade concreta e suas implicações
no cotidiano tornaram-se fugidias e subordinadas às versões
midiáticas dos acontecimentos (Lyotard, 1986).
Nesse
sentido, é importante destacar que a popularização
das recentes 'conquistas' da Ciência e de suas implicações
na percepção da segurança e do risco encontra
na mídia e especialmente no jornalismo científico
um canal privilegiado de expressão e a Comunicação,
dentro dos limites possíveis, exerce o papel de mediadora
e de questionadora da Ciência e da Tecnologia e também
dos resultados sociais da inserção das instituições
científicas no cotidiano grupal, interferindo nos processos
decisórios individuais e coletivos (Moura, 2003).
Buscando
refletir sobre as questões até aqui expostas,
o objetivo deste texto é focar a faceta pós-moderna
representada pelas culturas de segurança e de risco,
elegendo para análise as matérias que têm
sido produzidas pela mídia impressa sobre Ciência
e Tecnologia, contando para isso com o olhar assumido pelo jornalismo
científico.
Tal
opção deve-se sobretudo à centralidade
ocupada pela Ciência e seus desdobramentos no cenário
atual, corporificando uma instituição instigadora
tanto de discursos midiáticos entusiásticos quanto
de falas moderadas ou mesmo pessimistas, já que apontam
para os riscos potenciais que a atividade científica
comporta (Allan, 2002). A posição de destaque
que a Ciência ocupa no ambiente cultural contemporâneo
reflete-se em tudo o que é oferecido pela mídia,
a qual tem destinado novos e amplos espaços para a veiculação
de notícias sobre o tema.
A
profusão de fontes impõe a necessidade de alguns
recortes; primeiramente, optou-se pela análise de conteúdo
das matérias instruídas pelo campo das ciências
médico-biológicas voltadas para o entendimento
e tratamento do corpo humano, já que a perfectibilidade
corpórea, a saúde plena e a pretensão à
vida que se quer eterna compõem uma tríade que
se mostra persistente na 'ideologia' pós-moderna (Leal,
2001; Oliveira, 2003). O segundo recorte refere-se às
fontes analisadas, adotando-se como corpus para estudo
o Caderno FolhaCiência inserido no paulistano Folha
de S.Paulo, restringindo-se ao período de julho de
2001 a julho de 2002 [2].
Antes
de se proceder a análise do material indicado, no entanto,
torna-se necessário discorrer sobre os atuais compromissos
do jornalismo científico e suas implicações
no relacionamento entre os cientistas e os comunicadores.
O
tarefa do jornalismo científico nas sociedades democráticas
Espelhando
a tendência dominante nos países centrais, no início
da década passada a American Association for the Advancement
of Science (AAAS) elaborou uma minuciosa pesquisa que recebeu
o título de Science for all Americans.
Nesse
estudo, empregou-se o termo 'instrução científica'
como algo que em certos momentos se confunde com a noção
de 'divulgação científica', sendo que,
com algumas variações, a maior parte das ponderações
constantes no relatório norte-americano tem sido repetidas
pelos profissionais da comunicação como compromissos
básicos que devem ser assumidos pelos jornalistas científicos,
ganhando várias traduções, inclusive em
língua portuguesa (Rutherford & Ahlgren, 1995).
Essa
obra, originalmente destinada ao enfoque das necessidades da
parcela mais jovem da população dos Estados Unidos
em relação ao acompanhamento dos progressos científicos
e tecnológicos, estabeleceu uma série de direcionamentos
que, em parte, ajustam-se à prática do jornalismo
científico.
Nesse sentido, aponta-se que os conteúdos a serem abordados
devem levar em consideração as seguintes orientações:
a utilidade prática do conhecimento para a sintonia do
indivíduo com a modernidade, facilitando assim que cada
um seja capacitado para a tomada mais conseqüente das decisões
pessoais, o incentivo à responsabilidade social, permitindo
que o cidadão participe e se posicione de 'forma inteligente'
na tomada das decisões sociais e políticas que
envolvam matérias de Ciência e Tecnologia, o valor
intrínseco do conhecimento como valor cultural universal
e constitutivo da história humana e, finalmente, a dimensão
filosófica capacitadora das pessoas para que adquiram
uma nova percepção da realidade e ponderem sobre
o significado da vida e da morte, do bem individual e do bem-estar
coletivo, da certeza e da dúvida (Rutherford & Ahlgren,
1995:13-14).
A
postura norte-americana - crivada de princípios imperialistas
que sub-repticiamente sugerem que a Ciência e a prática
científica dos Estados Unidos devem servir como parâmetros
avaliadores de tudo que acontece no resto do mundo - passou
a impregnar pesadamente as pontificações dos jornalistas
científicos, defendendo-se também uma certa continuidade
entre o ensino formal básico e médio e os conteúdos
que são divulgados pela mídia.
Em
entrevista, o jornalista científico Marcelo Leite, que
inclusive freqüentou cursos de especialização
em divulgação científica tanto nos Estados
Unidos quanto na Alemanha, assim definiu o papel da especialidade
que pratica na imprensa:
"Me
parece que ao menos a pesquisa faz parte da integral da educação.
A divulgação científica é mais
um apoio e um complemento, sobretudo de atualização,
porque a produção científica é
hoje mais copiosa e rápida. Os livros didáticos
e mesmo muitos professores não têm as condições
de acompanhar esses desenvolvimentos que se sucedem, então
os jornais e revistas acabam sendo uma forma de se manter
atualizado (por isso nos preocupamos muito com fornecer as
fontes das pesquisas publicadas, em particular na internet,
para que as pessoas interessadas em se aprofundar possam obter
mais material)" (Leite, 2003a).
Em
caminho próximo ao de Marcelo Leite, vários outros
estudiosos nacionais têm ressaltado o caráter didático
e complementar dos conteúdos disseminados pelo jornalismo
científico - termo frequentemente utilizado como sinônimo
de divulgação científica - ao que foi aprendido
nas escolas de ensino fundamental e médio. Caminho paralelo
foi adotado por Bueno (2003a) quando enfatizou que o jornalismo
científico conta entre outras funções com
a de 'despertar vocações' entre os jovens, especialmente
no referente às ciências básicas, mencionando
neste setor Química, Física, Biologia e Matemática.
Apesar
da hegemonia da avaliação norte-americana para
o jornalismo científico, é possível deparar-se
com outras posições complementares ou mesmo concorrentes.
Dentre estas, ganha destaque no cenário nacional os ensinamentos
do espanhol Manuel Calvo Hernando.
Reverenciado
como um dos principais jornalistas em atividade, Calvo Hernando
desempenhou e continua desempenhando a estratégica missão
de politização da prática do jornalismo
científico, observando que esta especialização
constitui-se em um compromisso do profissional da imprensa para
com a cidadania.
Para
ele, o jornalismo científico revela-se ao mesmo tempo
como resultado e como agente incentivador das sociedades democráticas.
Neste encaminhamento, o jornalista espanhol postula que só
há realmente democracia nas sociedades que têm
patrocinado dispositivos disseminadores de conhecimento e de
informações que permitam a participação
consciente de todos na tomada de decisões coletivas.
A partir desse suposto, novos compromissos são cobrados
dos jornalistas científicos:
"Frente
ao terceiro milênio, as sociedades do nosso tempo carecem
de medidas políticas, econômicas, sociais e culturais
que instiguem ou ampliem a popularização da
ciência através dos meios de comunicação
de massa. O grupo que participou do Primeiro Congresso de
Comunicação Social da Ciência (realizada
em Granada, Espanha, em março de 1999) representa um
fenômeno que não é novo, mas que ganha
uma nova dimensão nas portas do século XXI:
pessoas de diferentes procedências e ambientes culturais
estão trabalhando em harmonia em algo que, pelo menos
por enquanto, é considerado um problema menor, mas
que está se tornando agora de interesse de um crescente
número de pessoas e sociedades. A popularização
da ciência, do jornalismo científico e da comunicação
pública da ciência está hoje tentando
responder aos desafios do nosso tempo" (Calvo Hernando,
2003).
A
influência das idéias de Calvo Hernando no Brasil
já conta com uma história, inclusive porque coube
a ele ministrar, na década de 1970, um curso pioneiro
na área do jornalismo científico junto à
Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. Seus ensinamentos têm contribuído
para a formação de uma nova geração
de divulgadores da Ciência e mesmo uma parcela dos cientistas
interessados em discutir publicamente o significado social das
pesquisas de ponta.
Os
jornalistas Ricardo Bonalume Neto, Wilson da Costa Bueno, Dalira
Lúcia Cunha Carneiro e Ulisses Capozoli são alguns
dos profissionais que têm se empenhado em ampliar o território
de compromissos dos profissionais da comunicação,
equacionando a problemática do jornalismo científico
em termos políticos.
A
defesa de um jornalismo que expõe os fatos, mas também
que os interroga, condição essencial para um jornalismo
científico mais conseqüente, tem alimentado múltiplos
conflitos entre os divulgadores da Ciência e os empresários
da Comunicação inebriados pela ideologia neoliberal
(Ivanissevich, 2005). Nesse contexto, cabe a pergunta: para
que serve o jornalismo científico? Uma resposta possível
é a seguinte:
"O
jornalismo científico não pode simplesmente
fechar os olhos à realidade e sair por ai, como muitos
cientistas têm feito, proclamando aos quatro ventos
que não adianta divulgar a ciência porque a população
não tem condições de entendê-la.
Pelo contrário, deve, como missão, buscar torna-la
suficientemente clara, com o objetivo de democratizar o conhecimento
e permitir, gradativamente, que as pessoas comuns participem
do processo de tomada de decisões com respeito aos
grandes temas de ciência e tecnologia" (Bueno,
2003b).
Buscando
colocar em prática este novo posicionamento, novos focos
de conflito ganharam vez na relação entre os cientistas
e os jornalistas.
Mais
de um documento dirigido aos pesquisadores assinala a importância
da existência de um bom relacionamento com a mídia
pois esta desempenha o papel mediador da Ciência com a
sociedade, servindo como agente legitimador das atividades desenvolvidas
no laboratório e das verbas recebidas e também
como canal popularizador das novas itens colocados no mercado.
No entanto, mais de um cientista mostrou-se surpreso e também
algo indignado quando o jornalista que o entrevistou 'ousou'
questionar as possíveis implicações deletérias
para a sociedade de suas pesquisas.
Nestes casos, segundo o depoimento de alguns jornalistas entrevistados
pelo autor desse texto, a cortesia e a paciência de um
renomado cientista foi substituída por um certo desconforto
e irritação, chegando um deles a proferir uma
daquelas frases que marcam a prepotência elitista: 'você
sabe com quem está falando?'
Assim,
uma nova cultura do jornalista científico deve contar
em contrapartida com também um novo posicionamento dos
cientistas; a antiga autonomia de ação dos pesquisadores
deve ser limitada pela importância e repercussão
social de seus estudos, o que nem sempre acontece quando este
se vê questionado por alguém que não pertence
à restrita comunidade daqueles que produzem Ciência.
Frente
às declarações de princípios dos
comunicadores e das reações dos cientistas aos
questionamentos acerca de suas atividades, cabe agora focar
a produção atual dos jornalistas científicos.
O
jornalismo científico na FolhaCiência
A
proposta de enfoque do jornalismo científico coloca em
primeiro plano a idéia, ainda corriqueiramente invocada,
de que tal especialidade jornalística corresponde sobretudo
à tarefa de 'tradução' dos jargões
empregados pelos cientistas para que o leitor leigo tenha condições
plenas de entendimento das reportagens.
Postula-se
que, bem mais do que isso, o trabalho de divulgação
dos mecanismos de produção, aplicabilidade e consumo
dos resultados dos saberes e das realizações científicas
exige a recorrência a estratégias específicas,
gerando um discurso original, mesmo que baseado nos pronunciamentos
arquitetados no interior do campo científico. Nesse sentido,
o jornalista científico não é apenas um
mero 'tradutor', mas sim o autor de versões midiáticas
de 'fatos' científicos, situação que implica
inclusive em posicionamentos questionadores (Zamboni, 2001).
Esse
conjunto de procedimentos que leva a informação
a ganhar a formatação de notícia, é
importante que se ressalte, está inscrito no território
da cultura.
Se
ganhou o sentido de regra enfatizar que o jornalista deve sempre
pressupor que seus leitores estão imersos nas malhas
culturais e que essa circunstância pode levar à
ocorrência de 'ruídos' no processo comunicativo
(Bueno, 2003c), ainda pouca atenção foi concedida
ao fato de o próprio profissional da comunicação
cooptar nas matérias que produz com os postulados culturais
predominantes na sociedade em que está inserido. Se a
comunicação é tida como 'condição
matricial da cultura' (Schudson, 1996; Rocha, 2004), julga-se
que também é necessário se observar o reverso
desta situação: a cultura é também
formuladora das teias de comunicação e de seus
produtos.
Nesse
sentido, o texto jornalístico pode ser avaliado como
um espelho do momento em que é produzido não só
no plano ideológico, como ensina a Teoria Crítica,
mas sobretudo como um produto cultural. Se aceita esta ótica,
pode-se inclusive conferir um novo campo de atuação
por parte da antropologia da comunicação.
A
partir desses supostos é que se busca analisar as matérias
veiculadas pela FolhaCiência, Caderno inserido
na Folha de S.Paulo a partir de meados da década
de 1980, momento no qual o jornal experimentou uma profunda
reforma gráfica e editorial nos moldes do jornalismo
empresarial norte-americano (Silva, 1988 e 1991).
Nesse
processo, a Folha passou a reivindicar para si o papel
de porta-voz privilegiada da pós-modernidade, inclusive
no espaço reservado ao Caderno aqui analisado, tornando-se
uma espécie de modelo para outros órgãos
da imprensa diária do estado de São Paulo e do
país [3]. No plano formal, a proposta do diário
para seu Caderno especializado é oferecer ao leitor 'notícias
sobre as últimas descobertas e pesquisas mais recentes
e importantes no Brasil e no mundo, com especial atenção
para o didatismo e para o uso de recursos visuais na explicação
de assuntos complexos' (Folha de S.Paulo, 2004).
No
período indicado para estudo, a FolhaCiência
contou com 342 números que veicularam um total de 748
matérias, sendo que aproximadamente 95% delas apontaram
como fontes iniciais de informação instituição
científicas, pesquisadores, revistas especializadas ou
de divulgação científica e ainda jornais
estrangeiros, quase todos eles sediados nos Estados Unidos e
na Europa Ocidental e isto mesmo quando, ironicamente, as situações,
experimentos, instituições e personagens retratados
estivessem localizados no Brasil ou em outras regiões
do planeta que não as das agências noticiosas contratadas
pela Folha.
No
mesmo sentido, quase 60% das matérias foram indicadas
como sendo da editoria do Caderno, o que sugere que os textos
que serviram de base para as matérias foram fornecidos
exclusivamente por agências noticiosas ou colhidos em
outras fontes - especialmente os periódicos Nature,
Science e Science Now - e apenas adaptados, se
não simplesmente traduzidos para o leitor brasileiro.
Ainda
em relação ao conjunto de matérias, aproximadamente
95% delas apresenta um caráter predominantemente informativo,
situação que se mostra contrária à
proposta do novo espírito do jornalismo científico,
o qual apregoa a necessidade de o profissional da comunicação
posicionar-se frente aos fatos retratados, 'dialogando' com
o leitor com o objetivo não só de favorecer a
'alfabetização científica', mas também
contribuir para a constituição de consciências
cidadãs (Capozoli, 2002).
Nesse
âmbito, do total de matérias apresentadas pelo
Caderno, 204 (27,2% do total) correspondem a iniciativas que
articulam as ciências médico-biológicas
e as questões suscitadas pelo corpo humano. A intensa
presença desse tema na FolhaCiência, revela-se
um fato comum em publicações divulgadoras da Ciência
e da Tecnologia, já que se postula que nada mais chama
tanto a atenção do leitor que as informações
científicas ou simplesmente tidas como 'curiosas' acerca
do que lhe é mais íntimo: seu próprio corpo,
território que frutificam esperanças e temores
minimizados ou exponenciados pela intensa intervenção
da medicina e seus desdobramentos (Burkett, 1990:175).
É
nesse espaço midiático pendular entre as noções
de segurança e risco que se torna cada vez mais claro
que a máxima cartesiana 'penso, logo existo' está
sendo substituída no plano da cultura pelo princípio
cunhado pela fenomenologia segundo o qual 'tenho corpo, logo
existo'. Um corpo que, como se verá, assumiu novas conotações
em conseqüência das recentes avanços científicos,
destacando-se nesse cenário as recentes propostas fornecidas
pela biologia molecular.
A
ciência do corpo na FolhaCiência
Apesar
do empenho do jornalismo científico incorporar dentre
de seus compromissos a proposta de análises holísticas
dos fatos científicos, no referente ao corpo humano nota-se
ainda o predomínio da perspectiva cartesiana. Em conseqüência,
o corpo é apresentado sobretudo como um conjunto de mecanismos
dotado de uma racionalidade própria e que se encontra
em contínuo processo de aperfeiçoamento para responder,
com relativa autonomia, tanto às suas próprias
disfunções quanto às agressões externas
a ele.
Acompanhando
esta idéia, a evolução humana tem como
ponto fulcral o aperfeiçoamento ou complexização
do cérebro que, por sua vez, não se refletiu apenas
na anatomia, mas também na psicologia dos nossos ancestrais.
Nesse sentido, ganhou espaço destacado na imprensa a
tese de um pesquisador australiano que assevera que, a partir
de um certo momento evolutivo, datado de aproximadamente 135
mil anos, o Homem reuniu elementos culturais que conferiram
nova e mais rápida dinâmica à sua evolução,
dentre eles a domesticação dos cães. Segundo
uma das matérias sobre o assunto, os efeitos da 'coabitação'
com os caninos acarretou profundos efeitos psicológicos
no Homem, alterando suas estratégias de caça e
também seus liames na vida social.
Ainda
em coerência com esta tese, o hominídeo teria aprendido
com os cães a marcar presença no território,
a se acasalar com alguém de idade próxima a sua
e inclusive a desenvolver o sentimento de amizade e de formação
de alianças e coligações com outros seres
humanos.
A localização do Homem na esfera da cultura impõe
os limites da autonomia corporal, condenando-o a uma dependência
cada vez mais acentuada de recursos oriundos da Ciência
e da Tecnologia, constatação implícita
na mídia e que abre as portas para a exaltação
da própria Ciência e de seus produtos.
Adotando
este suposto, multiplicam-se as matérias que informam
o leitor sobre novas descobertas da medicina que podem promover
o aperfeiçoamento da estrutura corpórea, corrigir
os defeitos e disfunções orgânicas, eliminar
a dor e o desconforto físico e, em última instância,
prolongar a vida por um tempo que seria impossível creditar
apenas à existência que não tenha sido submetida
à manipulação científica.
O
afã em anunciar a positividade da medicina chega às
raias de o Caderno especializado veicular notícias avaliadas
pouco depois como pseudociência, sem que, no entanto,
o jornal informasse aos leitores sobre tal conclusão.
Em um dos casos, a FolhaCiência noticiou como fato
comprovado a estratégia apregoada por alguns clínicos
europeus de que, para combater a insônia crônica,
bastava que o indivíduo lançasse por alguns minutos
raios de luz emitidos por uma lâmpada comum na região
anterior do joelho.
O
primado da medicina no aperfeiçoamento da vida ganhou
destaque maior no período focado mediante a exaltação
descomedida dos recentes avanços da biologia molecular.
Vistoriando as quase duas décadas de publicação
do Caderno, nenhum tema ganhou tanto destaque como a genética
e suas derivações, quer pela extensão de
cada uma das notícias quer pela freqüência
de enfoque dos trabalhos de decodificação do genoma
humano e seus desdobramentos, assunto que desde 1998 e até
o momento tem sido imperante na publicação.
Nesse
sentido, é possível afirmar que a 'ideologia médica',
pensada como o predomínio de um determinado paradigma
científico ou de uma temática (Canguilhem, s.d.)
contaminou a imprensa, determinando que a terminologia própria
da 'nova genética' esteja presente, mesmo como metáfora,
em um grande número de matérias, centradas ou
não em temas médico-científicos.
Nesse
encaminhamento, se a biologia molecular tem suscitado tanto
furor entre os cientistas, ela também se tornou motivo
de verdadeiro culto pela maior parte da comunidade dos jornalistas,
inclusive devido ao empenho das instituições de
pesquisa em envolver rotineiramente os profissionais da comunicação
em suas atividades (Davies, 2001), chegando a ponto de alguns
deles se transformarem em porta-vozes não oficiais de
alguns laboratórios de biologia molecular, criando assim
a falsa sensação de transparência e isenção
jornalística.
Acredita-se
que foram raras as vezes que uma situação científica
gerou tanto fascínio entre os profissionais da mídia,
sobretudo porque fica patente nos enredos autorizados pelo jornalismo
científico que a genética representa a face da
Ciência que mais tem contribuído para a firmação
do sentimento de segurança, tanto para o momento presente
quanto para o futuro vislumbrado.
O
sequenciamento do genoma humano foi saudado por cientistas e
divulgadores científicos como a chave para o conhecimento
da vida; nesse processo, James Watson e Francis Crick, os arquitetos
da 'dupla hélice' no início da década de
1950, foram resgatados da semi-penumbra pública para
serem alçados à condição de heróis
- ou santos - da pós-modernidade.
A
FolhaCiência, tão reticente em discorrer
sobre a biografia dos 'grandes cientistas', utilizou várias
matérias para apresentar ao leitor a trajetória
de vida de ambos os pesquisadores, suas dúvidas existenciais,
as obras raras existentes em suas bibliotecas particulares e
suas vinculações com os setores acadêmicos
e empresariais.
Especialmente
no referente a Watson, o jornal preferiu oferecer ao seu público
uma imagem expurgada, deixando de lado as severas críticas
orquestradas por outros cientistas sobre o fato de o personagem
em questão estar comprometido com interesses de laboratórios
comerciais e usar sua influência para convencer o governo
norte-americano a destinar imensas verbas aos projetos científico-empresariais
que ele próprio liderava.
Nas
expressões idealizadoras da mídia impressa, praticamente
todos os infortúnios gerados pelo aparato biológico
humano já foram ou estão prestes a serem solucionados
pela engenharia genética. São muitas as matérias
que versam, com sofreguidão, sobre a localização
dos cromossomos responsáveis por patologias que a todos
causam pesadelos inconfessáveis, do câncer ao mal
de Alzaimer, da esquizofrenia à cegueira congênita,
do infarto do miocárdio ao acidente vascular-cerebral
e a depressão psicológica.
Isto
sem esquecer que os vírus e bactérias causadoras
de várias doenças infecto-contagiosas que ainda
não encontraram soluções plenamente eficientes
pela medicina, tais como os micróbios da AIDS, do Ebola,
da influenza pandêmica, das febres do Nilo e de Llassa,
ganharam projeção no momento em que foram objetos
de sequenciamento genético total ou parcial, ficando
a sensação de que, em breve, as patologias a eles
creditadas comporão uma página virada na história
epidemiológica da Humanidade.
O
desdobramento lógico para muitas perorações
midiáticas é que a Ciência já localizou
ou está prestes a identificar a parte do genoma humano
ou os mecanismos químico-biológicos do envelhecimento
e da morte. Ainda não se chegou ao extremo de se fazer
a apologia da morte como um fenômeno superado pela intervenção
médica, mas algumas matérias pontificam que, em
uma ou duas décadas, a genética estará
capacitada para instruir uma medicina preditiva que deverá
detectar os genes responsáveis pelas patologias antes
que elas se pronunciem no organismo humano e que a engenharia
genética intervirá no corpo para retardar os mecanismos
do envelhecimento, fazendo o tempo médio de vida estender-se
para 120 anos.
Várias
matérias versam sobre o novo campo de ação
da criogenia; se a morte ainda não pode ser evitada,
nem mesmo nas projeções mais otimistas sobre o
porvir, a preservação do corpo ou apenas do cérebro
em câmaras de congelamento representa a esperança
de que em algum momento, a vida poderá vir a ser, de
fato, eterna.
O
apregoamento jornalístico que, explícita ou implicitamente,
versa sobre um mundo sem doenças, sem dores e potencialmente
sem mortes, e também sobre a perfectibilidade do corpo
graças à intervenção especializada
parece inesgotável nas mensagens emanadas pelo jornalismo
científico. Mesmo que de maneira fragmentária,
a representação imperante na mídia divulgadora
da Ciência é que os segredos e mecanismos do corpo
humano já são suficientemente conhecidos pela
medicina e suas derivações imediatas.
Tal
presunção gera dois tipos de comportamentos jornalísticos:
o primeiro deles é que tudo que é identificado
como obstáculo para o avanço médico tem
perdido interesse e espaço nas páginas da FolhaCiência.
A AIDS, por exemplo, quase não aparece como desafio ainda
não resolvido pela Ciência, sendo o tratamento
do assunto quase todo deslocado para outros cadernos do jornal,
sobretudo o Mundo e o Cotidiano.
O
outro comportamento refere-se à produção
de matérias entusiasmadas sobre o potencial regenerador
do corpo através da recorrência clínica
às células-tronco. Pouco as matérias discorrem
sobre as dificuldades e riscos na utilização dessas
células no 'reparo' do organismo humano, preferindo os
jornalistas enfatizarem o sucesso dos experimentos laboratoriais
que foram realizados com cobaias e sugerirem que, dentro em
pouco, tais recursos estarão à disposição
dos enfermos.
O
aperfeiçoamento do corpo biológico desdobra-se
também na versão midiática de uma Ciência
desveladora e potencialmente reparadora dos verdadeiros ou falsos
desfuncionamentos que, supostamente localizados na concretude
individual, colocam em questionamentos a lógica, a ética,
a moral e até os princípios estéticos adotados
pelo tecido coletivo.
Especialmente
a partir do ano de 2000, quando se festejou o sequenciamento
genético humano, ganharam posições de manchetes
os textos que veiculam notícias sobre a 'descoberta',
dentre outros, dos cromossomos determinantes dos instintos,
da homossexualidade, da seleção de parceiros para
reprodução, da hipersexualidade, da preguiça,
da beleza (?!), dos comportamentos passionais, da agressividade,
do instinto materno, da necessidade de muitas horas de sono
diário, do suicídio e do consumo da cocaína,
aventando-se também a localização dos genes
determinantes de várias habilidades, como a da inteligência,
do canto, da música e do esporte, da facilidade de solução
dos problemas matemáticos e do aprendizado de línguas
estrangeiras.
Nesse
ponto, alguns jornalistas postulam que, graças à
aplicação do conhecimento produzido pelas pesquisas
na área da genética, é possível
alcançar-se uma sociedade mais perfeita e concatenada,
perfazendo uma operação que 'biologiza' o social
e, consequentemente, exclui boa parte das responsabilidades
individuais e coletivas dos processos de funcionamento e potenciais
desajustes que persistem no âmbito grupal.
Nesse
cenário repleto de esperanças na biologia molecular
à serviço da Humanidade sob a forma de engenharia
genética, confidências de verdadeiro encantamento
impregnam as matérias jornalísticas analisadas.
Uma
dessas matérias, assinada por um dos mais destacados
comunicadores científicos do país, ao comemorar
a localização do gene responsável pela
esquizofrenia, incorporou ao lide da notícia a seguinte
afirmação: 'poucas empreitadas científicas
foram tão desacreditadas quanto a caça ao gene,
ou genes, da esquizofrenia', conferindo uma dimensão
epopéica à descoberta creditada a uma equipe de
cientistas norte-americanos.
O
deslumbramento midiático também aposta no porvir,
como no caso das células-tronco, incitando um jornalista
a predizer que estas células 'estão entre as vedetes
da medicina do futuro', enquanto que outra matéria informa
precipitadamente que as mesmas células podem se tornar
'a mais importante descoberta da Ciência', já que
podem se transformar 'em qualquer tecido no corpo humano'.
Ainda
uma outra matéria, que foca os primeiros sucessos de
um incipiente experimento laboratorial com ratos, visando a
obtenção de um tratamento eficaz para as vítimas
da hepatite B, concluiu-se que 'apesar de não haver ainda
previsão de quando começam os testes em humanos,
os cientistas acreditam que serão obtidos resultados
semelhantes'.
Frente
a esses posicionamentos, os pesquisadores do setor médico-biológico
que buscam relativizar a importância das explicações
fornecidas pela biologia molecular, tal como o cientista Crodowaldo
Pavan, de regra são tratados com um certo toque de desprezo
nas páginas da Folha, sendo rotulados automaticamente
como 'geneticistas da velha-guarda'.
As
avaliações otimistas sobre o potencial da prática
médica no presente e no futuro contou com um reparo arguto,
através do pronunciamento de um dos raros cientistas
convocados para publicar um texto na FolhaCiência.
Sérgio Danilo Pena, geneticista e professor da Faculdade
de Medicina da UFMG, assinalou no artigo intitulado 'O novo
dualismo da genômica', publicado em 4 de outubro de 2001,
os limites do saber produzido pela biologia molecular e a fragilidade
das abordagens triunfalistas sobre esse ramal da Ciência,
avaliando o sequenciamento genético do Homem como ainda
sendo apenas um 'rascunho' e não como uma tarefa já
totalmente finalizada, como sugerem várias matérias
jornalísticas analisadas.
O
caráter contundente do artigo, que rema em sentido contrário
ao posicionamento dos jornalistas atuantes no diário
sob análise, merece ser reproduzido em parte:
"A
publicação recente do primeiro rascunho do genoma
humano fortaleceu a noção errônea de que
ele constitui a verdadeira essência da natureza humana.
Como expressou o bioeticista Alex Mauron, o genoma passou
a ser visto como o equivalente secular da alma e tornou-se
sinônimo da nossa própria humanidade. Tenho genoma,
logo existo.
Esse enfoque 'genomocêntrico' é enganoso e perigoso.
Enganoso por sua simplicidade atraente. Perigoso porque, como
o cavalo de Tróia, carrega em seu ventre um inimigo:
o conceito nocivo do determinismo genético. Torna-se
indispensável, então, entender o real significado
do nosso genoma para 'nós mesmos' (...).
Por toda a nossa vida, o nosso fenótipo ('nós
mesmos') depende da interação do genoma com
o ambiente atual e com a seqüência dos ambientes
passados, isto é, a nossa biografia".
É
necessário se observar que, distante das páginas
da imprensa diária, parece que os próprios jornalistas
assumem avaliações mais moderadas, apontando os
'avanços' proporcionados pela medicina genética,
ressaltando porém os limites de uma Ciência que,
se procedeu à decodificação básica
do genoma humano e que tem se empenhado na identificação
dos cromossomos que podem estar associados a enfermidades e
comportamentos, até o momento elaborou poucas estratégias
comprovadamente eficientes de intervenção na saúde
humana.
Mais
do que isto, alguns livros assinados por profissionais da imprensa,
inclusive que atuam ou atuaram na FolhaCiência,
dedicam algumas páginas para, não sem um certo
sentimento de autocrítica, a qual é estendida
também à comunidade científica, registrarem
a dimensão parcialmente fantasiosa de muitas matérias
tematizadas pela genética que são disseminadas
pelos meios de comunicação de massa (Leite, 2003b;
Teixeira, 2000).
Claudio
Tognolli (2003), por sua vez, certamente é o jornalista
que mais tem rejeitado o saber e as práticas genômicas,
dedicando um livro integralmente para denunciar a 'falácia
genética' que tem dominado o discurso da imprensa.
A
sensação de segurança inspirada pelo novo
poderio da biologia molecular convive com a percepção
de risco sobre o alcance intervencionista das instituições
científicas. Um novo alento tem ganhado as vozes que
discorrem sobre o possibilidade dos envolvidos nas atividades
científicas em comportarem uma 'dupla personalidade',
incorporando ao mesmo tempo o espírito de Dr. Jekyll
e o de Mr. Hyde, relembrando a trama composta por Robert Louis
Stevenson.
No
referente aos novos conhecimentos oferecidos pela biologia molecular,
mais do que as menções sobre a existência
de uma multidão de excluídos que não terá
como obter os dispendiosos tratamentos personalizados que deverão
ser disponibilizados pela genética e a possibilidade,
também no futuro, da instalação de um autoritarismo
social em nome da eugenia, o indício de risco mais acalentado
pela mídia tem um nome: clonagem.
As
pesquisas voltadas para a clonagem foram inicialmente avaliadas
como mais um triunfo da engenharia genética, ganhando
maior visibilidade na mídia em 1996, quando o biólogo
britânico Ian Wilmut apresentou ao mundo o primeiro animal
clonado da história, a ovelha batizada com o nome Dolly
[4].
Somente
em meados de 2001, momento de veiculação das primeiras
notícias que tratavam da possibilidade da clonagem humana,
a FolhaCiência abriu espaço para, em nome
da bioética, inserir na sua pauta os receios de que a
genética poderia desviar-se do caminho de ciência
auxiliadora do Homem e, inebriada com sua própria potencialidade,
'produzir' seres humanos segundo uma estratégia que colocaria
em risco a dignidade não só de tais criaturas,
mas de toda Humanidade.
Mesmo
que de maneira fugidia e ocupando espaços bem menores
do que aqueles destinados à celebração
da genética, ganhou destaque quase que permanente o médico
italiano Severino Antimori que desde abril de 2001, mesmo contra
a legislação de seu país e da ameaça
de perder o direito de exercer a profissão, passou a
declarar que iria sim clonar um ser humano.
Nas páginas especializadas da Folha, os textos
que tratam do assunto ganham um certo ar de indignação
nem sempre escamoteada, inclusive porque, ainda segundo o jornal,
'o futuro chegara' e ele poderia reavivar os pesadelos das práticas
nazistas, já que o cientista italiano declarava que sua
'produção' seria 'biologicamente perfeita'. Em
resposta, alguns artigos anunciavam que, segundo pesquisadores
norte-americanos, se a clonagem humana fosse realmente tentada,
levaria ao surgimento de seres aberrantes, já que os
recursos biotecnológicos disponíveis resultariam
em uma intervenção genética imperfeita,
incapaz de impedir a morte do feto ou ainda o nascimento de
'monstros', alcunhando Antimori de 'Dr. Ética maluca".
Percebendo
a ambigüidade de apoiar as propostas da 'nova genética'
e ao mesmo tempo mostrar-se temeroso frente à duplicação
humana com fins reprodutivos, o Caderno especializado novamente
quebrou sua rotina ao publicar em 15 de novembro de 2001 o artigo
'Clonar ou não clonar, eis a questão', assinado
pela bióloga e professora da USP Lygia da Veiga Pereira.
O
texto conta com o propósito de explicar aos leitores,
mesmo que caricaturalmente, o processo de clonagem e desaprovar
a proposta de clonagem reprodutiva, acusando os que ousassem
lançar mão dessa prática como sendo 'pseudocientistas'
que poderiam causar um 'grande mal' à Humanidade. A pesquisadora,
no entanto, defendeu a clonagem terapêutica, com a utilização
de células-tronco extraídas de embriões
de até cinco dias de existência, advogando que
'a proibição cega [da clonagem com fins terapêuticos]
leva ao atraso da ciência e da melhora da qualidade de
vida'.
Pouco
tempo depois, a mesma postura foi reiterada por cientistas nacionais
e estrangeiros, sendo adotada por praticamente todas as matérias
científicas veiculadas pelo jornal. Não obstante,
notícias de ocorrência de clonagem reprodutiva
em local incerto da Europa Oriental, Estados Unidos, China e
Emirados Árabes Unidos foram veiculadas e nunca desmentidas,
criando a sensação de que, em algum lugar, estava
em curso a gestação de um ser que poderia colocar
em xeque os próprios fundamentos éticos, morais
e religiosos da Humanidade [5].
Nesse
cenário, a Folha estampou no Caderno aqui analisado
parte do pronunciamento do filósofo Roberto Romano, realizado
no âmbito de um encontro de bioética, que serve
de alerta aos próprios jornalistas: 'para ter ética
científica, é necessário entender que o
cientista está fazendo, sem condená-lo a priori'.
Mesmo
assim, em abril de 2002, quando Antinori informou que havia
secretamente clonado um embrião humano e o implantado
no útero de uma mulher, o qual já contava com
oito semanas de vida, a FolhaCiência, sem levar
em consideração a possibilidade de a informação
ser mentirosa, avaliou que o anúncio 'surpreendeu e horrorizou
a comunidade científica', negando ao experimento qualquer
positividade.
Pouco
depois, outra matéria estampada no Caderno, de forma
surpreendente e pouco usual no jornalismo científico,
assim se referiu ao médico italiano:
"Chamar
o embriologista italiano Severino Antinori de cientista parece
exagero, na opinião de muitos acadêmicos. Cientistas,
afinal, costumam pautar sua conduta pela publicação
de seus resultados e pela submissão de seus trabalhos
ao crivo de seus pares".
Para
reafirmar sua opção, nos dias seguintes às
primeiras notícias sobre a clonagem humana, o jornal
reproduziu trechos das ponderações do presidente
norte-americano. Mesmo que Bush se declare contrário
a qualquer modalidade de clonagem, parece que a Folha
concorda com alguns itens constantes na exposição
do político, principalmente quando ele afirma que "a
vida é uma criação, não um bem de
mercado. Nossos filhos são dádivas e devem ser
amados e protegidos, e não produtos a serem projetados
e manufaturados".
As
discussões motivadas pela clonagem humana colocaram a
Folha de S.Paulo e seus jornalistas frente a um dilema.
Por um lado, o jornal se auto-apresenta como o diário
mais afinado com tudo que merece o rótulo de pós-moderno
e, por isso, assume as inovações científicas
como arquitetas privilegiadas do presente e do futuro. Em outra
via, a possibilidade de produção de clones humanos
aponta para a negação - real ou imaginária
- dos valores mais caros da civilização ocidental.
O
receio de o jornal assumir uma posição que poderia
colocá-lo como alvo fácil de críticas certamente
levou o Caderno científico a dar destaque a uma interrogação
sobre as pesquisas na área da clonagem, formulada pelo
senador democrata norte-americano Tom Daschle, que os jornalista
da Folha (e de nenhum outro meio impresso) não
ousaram responder: "vamos impedir o progresso em algumas
das doenças mais terríveis conhecidas pelo homem
ou vamos permitir que a pesquisa vá em frente?'.
Considerações
finais
O
convívio com as novas concepções de segurança
e risco é uma das marcas - ou uma das maldições
- da cultura pós-moderna. Deslocados para o contexto
da mídia, tais valores quase que imperceptivelmente impregnam
as matérias veiculadas, sendo que aquelas que versam
sobre os saberes e as atividades científicas constituem
apenas um indício do processo que está conferindo
formatação específica a todos os produtos
elaborados pelos meios de comunicação de massa.
O
'admirável mundo novo', perversamente prometido por uma
parcela considerável da comunidade científica
e adotado com maior ou menor intensidade pela imprensa, representa
uma versão/avaliação possível dos
acontecimentos, preservando nas entrelinhas as angústias
e esperança de um tempo que ainda nos parece indecifrável,
porque de transição.
Nem
sempre o caminho de análise aqui adotado é aceito,
especialmente pelos pesquisadores biomédicos. Um respeitável
cientista brasileiro, que ocupa posição estratégica
no gerenciamento de uma das principais instituições
médicas nacionais que inclusive desenvolve pesquisas
na área de biologia molecular, confidenciou recentemente
ao autor deste artigo que evita tanto conceder entrevistas a
jornalistas quanto saber que suas exposições em
eventos científicos foram registradas pela mídia
porque, ainda segundo ele, seus pronunciamentos são corriqueiramente
alterados, criando dificuldades em seu ambiente de trabalho.
Para
ele, as distorções perpetradas pelo jornalismo
devem-se exclusivamente ao preparo deficiente dos profissionais
que cobrem o momento científico.
Acredita-se
que, bem mais do que a capacidade de o profissional da comunicação
em entender os temas especializados e elaborar matérias
para serem consumidas pelos leigos, são as lentes culturais
que ele mobiliza que, em última instância, definem
os conteúdos que assina.
Nesse
encaminhamento, funde-se num mesmo texto paixão pelas
novas conquistas científicas e temor pelo que elas podem
proporcionar à Humanidade. Além disso, a inclusão
de notícias científicas diversas em uma mesma
página e a frágil informação sobre
quando e onde exatamente ocorreram os fatos reportados acabam
por produzir uma sensação de 'deslocamento' espaço-temporal
que, experimentada pelo leitor, também não se
mostra estranha ao praticante do jornalismo, interferindo em
tudo que redige e na auto-avaliação que faz de
seu trabalho.
A
apologia do progresso tutorado pela Ciência e pela Tecnologia
inevitavelmente flui para as especulações sobre
o tempo futuro. Na maior parte das vezes de forma fugidia, os
textos elaborados ou reproduzidos pela Folha voltam-se
para o porvir, abrigando entusiasticamente em suas mensagens
a sensação de segurança e, de forma desolada,
a de risco e, com isto contribuído, mesmo que dentro
de limites específicos, para a constituição
de uma consciência crítica e comprometida com as
questões contemporâneas.
Nessa
senda, as interrogações propostas pelo tempo presente
se disseminam e se intensificam em relação ao
futuro, sem contudo encontrar possibilidades para respostas
convincentes, colocando às claras a mídia atual
ao mesmo tempo como produto e produtora de um momento cultural
no qual confiança e medo mostram-se como as duas faces
de uma mesma moeda.
Frente
ao que foi comentado, voltamos ao ponto inicial deste texto.
Os sistemas de segurança e de risco inspirados pela Ciência
fazem de todos nós aquele telespectador que se defronta
com duas notícias, uma apontando para o fato de a Ciência
ter solucionado mais um problema relativo à saúde
humana e outra que se reporta a uma nova situação
de risco para toda a Humanidade.
Como
cidadãos-consumidores que encontramos na mídia
o principal, se não o único, canal de informação
sobre o movimento científico-tecnológico, devemos
comodamente ponderar como fez nosso personagem - como todos
nós geralmente fazemos - que a tragédia nunca
chegará até nós? Ou, pelo contrário,
levando em consideração tudo que a polifonia midiática
anuncia, agirmos para assim contribuirmos para que haja esperanças
no final do nosso percurso?
Notas
[1]
No dia 7 de agosto de 1945 as notícias de primeira página
do New York Times deixavam claro o posicionamento do
jornal sobre o uso da tecnologia nuclear para fins bélicos.
As manchetes foram as seguintes: "First atomic bomb dropped
on Japan", "Missiles is equal to 20,000 tons of TNT"
e "Truman warns foe of 'rain of ruin'". As manchetes,
também de primeira página, do dia 10 de agosto,
dia seguinte à eclosão da segunda bomba atômica
sobre uma cidade japonesa foram as seguintes: "Atom bomb
loosed on Nagasaki", "2nd. Big aerial blow" e
"Result called good".
[2]
A maior parte das análises sobre as matérias da
FolhaCiência foram extraídas de uma pesquisa
anterior realizada pelo autor (Bertolli Filho, 2003).
[3]
Apesar de atualmente ocupar um pequeno espaço no jornal,
a FolhaCiência é apresentada pelo Manual
de Redação (Folha de S. Paulo, 2001) patrocinado
pelo diário como sendo um caderno temático, sendo
esta designação aqui adotada. Vale ressaltar que,
quando ele surgiu, contava com duas ou três páginas,
geralmente inseridas no final do Caderno Mundo. No decorrer
dos anos, porém, o espaço dedicado à divulgação
científica foi sendo restringido, ocupando atualmente
a média de uma página, sendo metade dela tomada
por propagandas. Diferentemente de outros cadernos do jornal,
percebe-se que o espaço destinado à Ciência
varia conforme a existência ou não 'matérias
quentes', referentes ou não à temática
científica. Assim, no dia 12 de setembro de 2001, quando
se apresentou detalhes sobre os ataques terroristas em Nova
Yorque e Washington, o noticiário científico ficou
restrito a aproximadamente ¼ de página, enquanto
que em agosto do ano seguinte, a FolhaCiência estendeu-se
por até cinco páginas para cogitar junto aos leitores
sobre os possíveis motivos técnicos que levaram
a ocorrência do acidente na base de Alcântara, quando
um foguete lançador de satélites explodiu ainda
na plataforma de lançamento, causando a morte de vários
técnicos e ameaçando de cancelamento o projeto
espacial brasileiro. Lembra-se ainda que, desde seu surgimento
e até julho de 2000, a sessão de ciência
da Folha fazia parte do Caderno Mundo, sendo que a partir
desta última data, que coincide com a apresentação
pública do primeiro rascunho completo do genoma humano,
a temática ganhou um caderno exclusivo, o que deixa implícito
a nova importância conferida às notícias
científicas por parte da direção do jornal.
[4]
Apesar de este artigo dedicar-se exclusivamente à análise
conteudística dos textos jornalísticos, chama-se
a atenção para o fato de, desde a apresentação
pública da ovelha Dolly, a FolhaCiência
já estampou pelo menos uma dúzia de fotos do animal,
tornando-o símbolo maior do processo de clonagem. Ressalta-se
também que, no plano das imagens, o Caderno segue uma
regra comum das páginas especializadas em Ciências,
estampando preferencialmente fotos do "imensamente grande",
como uma galáxia, ou do "infinitamente pequeno",
tendo-se como exemplo o fragmento de um cromossomo.
[5]
A descontinuidade das notícias, mesmo de um 'tema quente',
não permitiu que o leitor da Folha fosse imediatamente
alertado que nenhuma das iniciativas de clonagem chegou a termo,
sendo que transcorreram alguns meses para se informar, quase
casualmente, que coube aos chineses alcançarem o maior
sucesso no processo de clonagem, produzindo um feto que, ao
morrer, contava com cerca de duas centenas de células.
Referências
bibliográficas
ADAM,
B.; BECK, U. & VAN LOON, J. (eds.). The risk society
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Publications, 2000.
ALLAN,
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BECK,
U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage
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*Claudio
Bertolli Filho é Doutor em Ciências (História
Social) pela Universidade de São Paulo; especializado
em história e filosofia da ciência pela Indiana
University (EUA) e em saúde coletiva pelo Instituto de
Saúde (SP). Docente no Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes
e Comunicação e no Programa de Pós-Graduação
em Educação para a Ciência da Faculdade
de Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
campus de Bauru. E-mail: cbertolli@uol.com.br.
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