ARTIGOS
A
Máscara da modernidade
A
mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)
Por
Leoní Serpa*
Resumo
A pesquisa resultou na obra A máscara
da modernidade: a mulher na revista O Cruzeiro e resgata
a história do imaginário feminino na revista,
no período de 1928-1945. Uma história cheia
de signos num período de mudanças, em que
o país se urbanizava. O estudo analisa as mudanças
trazidas pela modernidade e pelo Estado Novo nas representações
simbólicas sobre as mulheres.
A análise concentra-se em reportagens, notícias,
fotos, colunas, publicidades e propagandas veiculadas
pela revista e um conjunto de leituras que levam em conta
a análise do discurso, além de bibliografia
nas áreas do jornalismo e da história das
simbologias e representações. Procura entender
como Assis Chateaubriand criou o semanário, um
dos mais lidos do país, num período de intensa
urbanização, que creditava ao Brasil ares
de modernidade.
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Reprodução

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Considera-se
que essa foi uma história de um imaginário que
polemizou e emocionou o leitor brasileiro, mas que, sobretudo,
ditou modas, normas e até conceitos, numa intencional
propagação da modernidade inspirada nos ditames
hollywoodianos. A preocupação em mostrar um mundo
glamouroso, com padrões de vida luxuosos, tinha um objetivo:
o de atrair o público feminino para o consumo. Eram padrões
ditados numa firme convicção de que a modernidade
se fazia necessária.
Palavras-chave:
História do jornalismo / Estado Novo / Revista O Cruzeiro
1.
Da pesquisa histórico-jornalística
Com
o objetivo de contribuir com a reconstituição
de uma parte da história cultural brasileira, além
de ampliar os estudos específicos sobre o imaginário
feminino, sobre a história das mulheres é que
levamos em consideração, nesta pesquisa, uma fonte
pouco explorada: a revista O Cruzeiro. [1] Desde
o seu surgimento em 10 de novembro de 1928 a revista tinha uma
linha editorial dita como moderna.
O
principal propósito deste estudo é analisar as
mudanças trazidas pela modernidade e pelo Estado Novo
de Getúlio Vargas às representações
simbólicas sobre as mulheres. A análise concentrou-se
em reportagens, notícias, fotos, colunas e propagandas
da revista de 1928 a 1945.
Definimos,
então, o período de estudo como a belle époque
hollywoodiana, porque nessa época o imaginário
feminino mostrado por O Cruzeiro era de um mundo glamouroso.
Era
uma realidade fantasiada a partir de informações
vindas em abundância dos estúdios da capital do
cinema mundial, que estimulavam, as moças e senhoras
a se espelharem nas estrelas de Hollywood, as quais usavam cosméticos,
belas roupas, tinham novas idéias e conquistavam a fama
e o prestígio social. Mas foi sobretudo através
da propaganda de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam
a idéia de uma nova mulher, agora mais consumista, que
a revista vendia o sonho de mudanças.
O
presente estudo tem como base a obra: A máscara da
modernidade a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)
[2] que pesquisou em reportagens, notícias, fotos,
colunas e propagandas da revista O Cruzeiro de 1928 a
1945. Com essa delimitação temporal procuramos
também entender melhor os motivos das táticas
utilizadas por Assis Chateaubriand para criar a revista, num
período em que boa parte da população brasileira
deixava o meio rural e avançava para as cidades, quando
as fábricas se espalhavam e costumes agrários
iam se esgotando, dando lugar a formas de vida urbana e ares
de modernidade.
Era
o Brasil com altos índices de analfabetismo que contava
com uma revista de grande tiragem, chegando a 700 mil exemplares
na década de 1960 e com um público de quatro milhões
de leitores.
A
análise detém-se no pensamento de O Cruzeiro mostrado
pela sua linha editorial, que priorizava temas ditos "modernos".
São fatos contados a partir da idéia de Brasil
que a revista criou e desses, recortamos 17 anos para estudar.
Na pesquisa deparamo-nos com uma multiplicidade de linguagens,
expressas nas dezenas de páginas através da fotografia,
da rotogravura, das publicidades, dos textos jornalísticos,
das crônicas, das novelas, das colunas especializadas
dirigidas ao público feminino, todas com conteúdos
carregados de simbologias.
São
linguagens que contribuem com a transformação
do fazer jornalístico e que se utilizam intensamente
da imagem, precedendo uma era que estava por chegar e que, em
poucos anos, viria a mudar a linguagem da comunicação,
através da implantação da televisão,
em 1950. O Cruzeiro foi um dos primeiros impressos a
implementar a reportagem e, por meio dela, deu a jornalistas
o status de estrelas, como ocorreu com David Nasser,
no texto, e Jean Manzon, na fotografia, os quais contaram inúmeros
acontecimentos sobre os mais variados temas em grandes reportagens.
Para
alcançar os propósitos do presente estudo buscamos
apoio em um conjunto de leituras nas áreas do jornalismo
e da história, procurando estudar a revista O Cruzeiro
de ambos os pontos de vista. A análise teve como base
exemplares que circulavam uma vez por semana no Brasil e no
exterior, material encontrado em dois importantes arquivos do
país, em Porto Alegre [3] e em Belo Horizonte.
[4] Para compreender os aspectos históricos
das décadas de 1920, 1930 e 1940, consultamos fontes
bibliográficas de autores [5] que retratam o
Brasil nesse período.
Os
aspectos aqui apresentados são interpretados à
luz do referencial bibliográfico, bem como dos três
passos operativos neste estudo histórico-jornalístico:
a heurística, a crítica e a interpretação.
[6] Pela heurística, buscam-se as fontes,
lança-se novo olhar, a fatos, experiências. Foi
lendo, fazendo anotações, separando e fotocopiando
as páginas em partes e até inteiras, além
de fotografar capas, publicidades e textos.
Material
esse que permitiu-nos obter uma visão mais completa das
posições defendidas pela revista e da sua linha
editorial, além de ter sido decisivo para o fechamento
do estudo. É importante ressaltar que, muitas vezes,
as páginas da revista conduziram este trabalho por caminhos
que abriram novas possibilidades de estudos, além de
muitas informações falarem por si, evidenciando
os principais objetivos do trabalho.
A
análise não se deteve apenas ao que estava explícito,
mas abrangeu o oculto, o implícito nas entrelinhas, nas
pistas deixadas pela própria revista em seus artigos,
propagandas, editoriais, nas próprias matérias,
reportagens, fotos e colunas, no período de 1928 a 1945.
A linha editorial impunha posições modernas e
que reforçava o nacionalismo brasileiro, esta constatação
foi fortalecida por Accioly Netto, que trabalhou na revista
e escreveu sobre a história e os jornalistas de O Cruzeiro.
[7]
Para
entender melhor o significado dessas análises procuramos
explicações em Roger Chartier.
Segundo
ele são leituras que exigem visíveis sinais de
identificação, precisam ser decifradas, numa compreensão
que exigem várias outras além daquilo que foi
pretendido pelo autor [8] e que representa trazer à
luz da história aqueles que ficaram fora do pensamento
histórico. Para isso é preciso também compreender
a epistemologia do discurso racionalista, o que para Astor Diehl,
"os métodos generalistas tradicionais estão
em crise, ou até mesmo, com seus dias contados."
[9] Ou seja:
O
mundo das experiências reconstruídas é
dos fragmentos, das identidades setoriais das histórias
individuais e dos individualismos. A historiografia hoje representa
a história dos fracos, da fraqueza humana,
dos sujos, das resistências, daqueles
que foram jogados, historiograficamente, na irracionalidade.
Esse fato representa um desafio ao historiador e ele não
pode ficar insensível a esse fato, sobretudo, porque
esse aspecto representa também a possibilidade de relacionar
o espaço das experiências cotidianas com o
horizonte das expectativas através do próprio
conhecimento histórico. [10]
A
interpretação tem como base a análise do
discurso, levando em consideração a linha editorial
da revista, com as suas claras pretensões de fazer do
Brasil um país moderno. Era, contudo, uma modernidade
nacional imposta e apoiada claramente pelo governo do presidente
Getúlio Vargas, que se utilizava intensamente da propaganda,
inclusive tendo criado um Departamento de Imprensa e Propaganda
para se fazer aceito.
A
revista contribuiu com a afirmação da política
modernista e nacionalista de Vargas. Pelo entendimento histórico
de O Cruzeiro, compreendemos a sua aproximação
com o poder, especialmente com o governo de Getúlio Vargas.
Buscamos aqui abarcar a realidade daqueles anos e o modo como
as mulheres eram vistas e se viam, a fim de compreender as posições
mostradas pelas colunas, ora inovadoras, ora conservadoras.
Com
as condições criadas pelos projetos políticos
do governo, O Cruzeiro abriu espaço para a propagação
não apenas dos seus feitos, mas das convicções
de também transformar o país em moderno. A partir
dessa consonância de interesses entre governo e revista,
divulgava-se o novo, o ideal, o moderno e buscava-se a transformação
de comportamentos, sobretudo do público feminino.
Dessa
forma, a revista procurava impor à sociedade e, especialmente,
às mulheres novos padrões de comportamentos, através
de uma infinidade de formas, como moda, roupas, eletrodomésticos,
maquiagens, cinema, concursos de beleza, esporte, registros
das fabulosas festas sociais, mas, sobretudo, através
das novidades em vários setores.
A
metodologia aplicada nesse estudo permitiu-nos a escolha das
reportagens, fotos, colunas e textos para análise na
pesquisa que teve por base o significado que o fato abordado
continha para os leitores da revista, especialmente aqueles
que pertenciam a uma camada privilegiada da sociedade.
É
uma análise que pergunta à fonte os motivos pelos
quais aquela publicação estaria ali, o que aquelas
informações significariam para a sociedade da
época, bem como para os interesses do próprio
semanário, que tinha bem evidenciadas as suas preferências.
Nos valemos da análise de textos, de imagens e fotografias,
um conjunto de gêneros jornalísticos que expressam
o imaginário feminino no magazine.
Procuramos
mostrar que a revista ganhou importância no Brasil e em
vários países do exterior, como Portugal, Chile,
Argentina e México e teve um dos maiores índices
de tiragens já registrados no país que tinha altas
taxas de analfabetismo, principalmente nas décadas de
1930-1940.
O
presente estudo interessa pelo fato de O Cruzeiro ter surgido
num período em que existiam poucos veículos de
comunicação impressos com padrões modernos
e com circulação por todo o território
nacional e, ainda, por alguns países da América
Latina.
A
revista foi referência não só pelos temas
que levantava, representando, dessa forma, o pensamento da elite
política, social, econômica e religiosa da época,
mas também pela maneira como diagramava e editava suas
páginas, tendo sido pioneira no uso do fotojornalismo.
A
contribuição para com o jornalismo brasileiro
A
história da imprensa brasileira se funde com a da organização
econômica-política-social do país e nos
remete há tempos em que o rude e o erudito se complementam.
É quando temos uma comunicação permeada
por processos arcaicos em seu fazer jornalístico e na
mesma proporção rica em linguagem, criatividade
e experiências. A revista O Cruzeiro nasceu deste paradoxo:
entre o novo e o velho.
O
jornalismo brasileiro havia experimentado vários modelos
e formatos, mas nenhum deles foi tão expressivo para
aqueles anos como a revista moderna de Assis Chateaubriand,
com suas coloridas páginas e uma proposta diferenciada,
a de modernização em todos os aspectos. A revista
nasce se chamandO Cruzeiro e mais tarde passa a ser O Cruzeiro.
Contribuiu
significativamente com a história da comunicação
no Brasil, trouxe mudanças na parte gráfica, adotou
técnicas pouco conhecidas no país, especialmente
com a rotogravura e no fazer jornalístico, implementou
a reportagem. Intencionalmente criada para ser porta-voz de
uma nova ordem: a modernidade nacional, surgiu para atingir
todo o território brasileiro e dar uma idéia de
Brasil-único e atual, numa correspondência de intenções
entre o seu fundador e proprietário, Assis Chateaubriand,
e o presidente Getúlio Vargas, que, com propósitos
políticos definidos, concedeu empréstimo para
a criação do magazine.
Interessava,
então, politicamente, a Getúlio mostrar que o
Brasil estava se modernizando.
O Cruzeiro surge num período em que existiam poucos veículos
de comunicação impressos com padrões modernos
e com circulação por todo o território
nacional e, ainda, por alguns países da América
Latina. A revista foi referência não só
pelos temas que levantava, representando, dessa forma, o pensamento
da elite política, social, econômica e religiosa
da época.
Representava
a sociedade da classe dominante do Brasil daqueles anos, ou
seja, políticos influentes, governos, militares, Igreja
e uma boa parcela de industriais, produtores rurais e empresários,
além de um grupo de intelectuais empenhados na idéia
de um país moderno, entre eles Portinari, Di Cavalcanti,
Anita Malfatti, Humberto de Campos, Austregésilo de Athayde.
Desde
a sua primeira edição semanal em 10 de novembro
de 1928 dedicou um amplo espaço para mostrar, escrever,
anunciar, criar conceitos e ditar modas. Considerada a revista
dos arranhas céus, nasceu no Rio de Janeiro e teve vários
endereços: em 1931, foi instalada junto ao recém-construído
prédio dos Diários Associados, na rua 13 de Maio;
mais tarde, quando completou dezoito anos, mudou-se para a rua
do Livramento, na Gamboa.
Nesta
fase a revista vivia um dos seus melhores momentos, com uma
tiragem de aproximadamente cem mil exemplares. No endereço
foi erguido um moderno prédio, projetado pelo arquiteto
Oscar Niemeyer, onde a revista se instalou definitivamente e
permaneceu até o seu fim. Quando começou a entrar
em falência, dos nove andares que ocupava, restaram para
O Cruzeiro apenas três pequenas salas, o que demonstra
o tamanho do endividamento do magazine, que foi consumindo o
seu próprio patrimônio.
A
ruína chegou definitivamente em 1974, mesmo que ainda
tivesse uma boa vendagem. As dívidas levaram a revista
à agonia da morte e, apesar de algumas tentativas de
ressurgimento, ela sucumbiu, juntamente com outros veículos
dos Diários e Emissoras Associados. Desapareceu,
assim, um dos mais importantes veículos do império
de comunicação brasileiro.
Além
de perder parte do próprio prédio onde estava
instalada na rua Livramento, "o título O Cruzeiro
foi cedido a Hélio Lo Bianco, em pagamento por suas comissões
atrasadas". [11] Também as máquinas,
importadas por mais de dois milhões de dólares,
foram vendidas "a preço de ferro-velho". "Da
mesma forma, os arquivos da revista, considerados os melhores
do Brasil, seguiram de caminhão para Belo Horizonte,
entregues à guarda do Estado de Minas, único
jornal do grupo dos Diários Associados com dinheiro suficiente
para arrematá-los". [12]
É
no jornal mineiro Estado de Minas que hoje se encontra
o mais completo acervo da revista, na Gerência de Documentação
e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação.
A incorporação da documentação da
revista aconteceu em 1977 e hoje todas as páginas estão
microfilmadas, além de milhares de fotos, principalmente
das belas mulheres mostradas por O Cruzeiro durante a
sua circulação. [13]
O Cruzeiro não apenas foi um veículo de comunicação
importante no país, como foi intencionalmente criado
para ser porta-voz da modernidade.
Surgiu,
ainda, para atingir todo o território brasileiro e dar
uma idéia de nação hegemônica. No
resgate histórico que fez sobre a vida de Assis Chateaubriand,
Fernando Morais conta que a utilização da revista
para servir a interesses ideológicos e políticos
foi muita bem pensada.
Depois
de ter feito um pedido de empréstimo financeiro para
comprar a revista ao então ministro da Fazenda, Getúlio
Vargas, Chatô conseguiu alcançar seus propósitos
de receber ajuda financeira para investir em seus meios de comunicação.
A pedido de Vargas, Chatô reuniu-se com banqueiro gaúcho
(compadre do ministro) e, no mesmo dia, obteve o empréstimo
pleiteado. Getúlio encarregou-se de providenciar o dinheiro,
valendo-se, para isso, da sua influência junto ao proprietário
do Banco da Província.
De
fato, a revista viria a ser, um dos veículos de comunicação
mais poderosos que o país já teve, com a função
de eleger e de derrubar presidentes e governos, um exemplo foi
o próprio Vargas, que o magazine ajudou a levar ao poder,
mas que também ajudou a depor em 1944.
Outros
exemplos não faltam: O Cruzeiro e os demais meios de
comunicação de Chatô foram incentivadores
do golpe militar de 1964, que depôs o presidente João
Goulart.
A
implementação de uma nova forma de fazer jornalismo,
antes nunca utilizada pela imprensa da época, valorizou
a reportagem, o uso da caricatura, da pintura, da fotografia,
explorada de uma nova ótica, colorida, ressaltando o
fotojornalismo. Foram inovações não comuns
para a imprensa da década de 1930-1940, como a diagramação
mais atraente e priorizando a qualidade das fotos e dos textos,
um período em que a propaganda ganhou espaços.
Criativa, a revista serviu de ligação entre os
interesses políticos, a elite social e religiosa e os
leitores, mostrando uma mulher consumista, com hábitos
modernos.
Além
das colunas femininas que contribuíram para o sucesso
de O Cruzeiro, destacou-se na revista a reportagem, principalmente
as realizadas pela dupla David Nasser, jornalista e o francês
Jean Manzon, fotógrafo. Esse nascido em Paris em 1915,
trouxera muito da experiência francesa para o Brasil,
tendo trabalhado, primeiramente, para o governo de Getúlio
Vargas no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão
executor da censura à imprensa pela ditadura do Estado
Novo. Quando Manzon chegou ao Brasil, na década de 1940,
a fotorreportagem era inexistente e o atraso era muito grande.
Manzon
contribuiu com a implementação das reportagens
fotográficas em O Cruzeiro, utilizando a sua experiência
de participação em coberturas de guerras, o que
modificaria por completo o jornalismo nacional. A dupla estreou
em O Cruzeiro em 16 de outubro de 1943 com reportagens
fabulosas e até ficcionistas. Em seu livro Cobras
criadas, Luiz Maklouf Carvalho conta algumas das artimanhas
utilizadas pela dupla para conseguir reportagens interessantes.
Apesar
de O Cruzeiro ter inovado na cobertura jornalística
com a implementação da reportagem, David Nasser
e Jean Manzon, não se cansavam de inventar matérias,
ou de simplesmente creditar para si informações
de outros autores, ou de reproduzir notícias sem ter
comparecido ao local do fato. A mais polêmica de todas
foi a reportagem sobre os índios xavantes de Mato Grosso,
com o título "Enfrentando os Chavantes!", do
dia 24 junho de 1944, que O Cruzeiro creditou como inédita,
mas não o era porque O Globo também já
a havia publicado e apenas um repórter havia comparecido
no local a serviço do governo.
Foram
divulgadas vinte e seis fotos, segundo a revista, mostrando
pela primeira vez os xavantes. Para Luiz Maklouf Carvalho: "só
o fotógrafo havia feito a viagem, ainda a serviço
do Estado Novo." [14] Explica que a famosa reportagem
já havia saído no jornal O Globo no dia
13 de agosto de 1943, em primeira página, revelando que
o coordenador da Fundação Brasil Central, João
Alberto de Lins e Barros, sobrevoara a aldeia dos xavantes,
fazendo um vôo de reconhecimento na região.
Esse
é mais um exemplo das façanhas da dupla, que,
conforme Maklouf, aconteciam numa média de quatro por
mês, alcançando muitas vezes três por edição,
como ele conta em Cobras criadas:
Já
eram vinte e sete as reportagens feitas até ali, e
mais cinco vieram entre maio e junho de 44. Uma delas, "Nas
celas dos monges", é versão revisitada
da pauta que Manzon havia feito para a Match. Outra,
"Roteiro do Norte", é mais uma fraude com
as fotografias para o DIP naquela longa viagem pelo Norte
e Nordeste. "Nossos repórteres Jean Manzon e David
Nasser voaram para o Norte escalando por algumas capitais",
diz a apresentação. Só o fotógrafo
havia feito a viagem, ainda a serviço do Estado Novo.
[15]
Além
da dupla David Nasser e Jean Manzon, O Cruzeiro contava com
um time de cronistas, desenhistas e correspondentes nas principais
cidades do mundo. A revista tratava de temas que variavam da
religião à política, das amenidades às
preocupações do mundo e de um país que
se modificava naqueles anos de revolução e da
Segunda Guerra Mundial.
Mas
os assuntos abordados procuravam não ultrapassar um certo
limite da "ordem social constituída", apesar
de colunistas como Alceu Pena (da coluna Garotas do Alceu)
mostrarem, através da sátira aos conservadores,
uma nova realidade feminina, de mulheres liberadas de preconceitos,
com atitudes de consumidoras.
O
perfil feminino de O Cruzeiro
O
magazine que priorizou as mulheres belas não contribuiu
com a luta por conquistas femininas que se levantavam naqueles
anos, atendendo ao clamor por igualdade de direitos, de espaços
no mercado de trabalho, na própria família e nas
decisões políticas do país.
O Cruzeiro não levantou as bandeiras reivindicativas das
mulheres e contribuiu para sufocar as vozes femininas, não
apenas daquelas, pelas quais priorizou em suas páginas,
as belas, as ricas e as que a própria revista definiu
como "modernas", porque se encaixavam nos padrões
de comportamentos moldados pelo cinema americano, mas também
das pobres e trabalhadoras, das que já eram excluídas
socialmente.
Nesse
contexto, a lógica do mercado industrial não podia
mais restringir consumidores; era preciso avançar e atrair
até mesmo quem estava fora da engrenagem social, o que
justificava o estímulo às novas formas de vida
e de comportamento feminino, como uma estratégia para
ganhar mais consumidores. De qualquer maneira, isso significou
espaços que enalteciam o imaginário feminino,
sem levar em consideração o que de fato acontecia
em todas as camadas sociais do país naquele momento,
mas, sim, a formação de novas concepções
e comportamentos que levassem a consumir.
As
capas eram as vitrines. A cada edição, lindos
rostos, maquiados segundo os padrões da época,
enchiam as páginas em ilustrações e fotos.
Rostos esses anônimos sem identificação,
sem legenda. Para as damas da sociedade bastava marcar presença
em eventos sociais, como bailes e salões de festas e
em atividades esportivas ou beneficentes, para alcançar
algum espaço em fotos ou textos.
Em
média, dedicavam-se no semanário aproximadamente
50% das páginas para assuntos relativos ao imaginário
feminino, que não compunha apenas um perfil feminino,
mas vários perfis. Para compreender colunas como "As
Garotas", "Donna", "Dona na Sociedade"
e outras, além de reportagens, fotos, matérias
e uma variedade de publicidades, perguntamos: como O Cruzeiro
representou o imaginário feminino no período de
1928 a 1945 e como mostrou as mudanças trazidas pela
modernidade brasileira nas representações simbólicas
das mulheres?
Procuramos,
dessa forma, entender o universo feminino brasileiro através
da revista. Descobrimos que o público-leitor era de várias
partes do país e até do exterior, sendo que o
magazine circulava na Europa e em vários países
da América Latina. Isso demonstra que a classe leitora
alvo de O Cruzeiro eram as mulheres das camadas mais elevadas
da população, especialmente as integrantes das
famílias das classes médias e altas, da burguesia.
Conforme Boris Fausto, seria a população civil
urbana, que trabalha por conta própria, constituída
de empresários, comerciantes, funcionários públicos,
profissionais liberais, industriais, entre outros. [16]
Esse
seria um universo da minoria da população feminina.
[17]
Buscamos
ainda o entendimento do universo feminino através de
um perfil político da mulher representada na revista,
um tema que não mencionam posições sobre
reivindicações e aspirações políticas
femininas, mas que cita fatos da participação
das esposas dos revolucionários, por exemplo, ajudando
com remédios e comidas os soldados na Revolução
de 1930.
Não
mostra sequer a posição feminina acerca do voto,
que gerou polêmicas no período. A revista deixa
transparecer uma posição clara: as mulheres são
incapazes de escolher bem seus representantes, não há
como conciliar a maternidade com a política. São
posições defendidas em artigos masculinos, mostrando
que o perfil político feminino foi construído
por homens.
No
entanto, o que a revista não queria perder de vista era
o potencial econômico de consumo dessa importante fatia
de mercado que as mulheres representavam. Essa construção
da "nova" mulher excluía a realidade da maioria
das brasileiras que viviam em condições sociais
precárias e eram analfabetas. Ela mostrava uma imagem
relacionada às mudanças de um país que
despia suas mulheres das saias longas e as urbanizava com biquínis,
blush e pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar
o comportamento feminino com novas formas de vestir e de se
mostrar para a sociedade.
Essa
imagem que incluía a utilização da maquiagem
e de produtos femininos de beleza como símbolo de moderno
e novo ilustravam as capas desde a primeira edição.
Apresentava-se, então, não apenas a primeira revista
moderna do país, mas um novo meio de retratar o universo
feminino.
Uma
modernidade mascarada
Narrar
aspectos sobre a história do Brasil de 1928-1945 pelo
viés das páginas de O Cruzeiro, meio de comunicação
que polemizou, escandalizou e emocionou o leitor brasileiro,
além de ditar modas, normas e até conceitos, num
período em que o país cada vez mais se urbanizava
e a sociedade passava por transformações, é
desafiador. A revista que divulgou as mulheres brasileiras das
camadas mais privilegiadas da sociedade priorizou temas como
comportamento, moda, política e possibilitou-nos uma
pesquisa histórico-jornalística.
Possibilidade
essa que resgata parte de uma fase da história da imprensa
muito pouco considerada e explorada em pesquisas científicas,
da revista que tinha uma linha editorial definida como moderna
desde o seu surgimento, em 10 de novembro de 1928. Um magazine
que contribui não apenas com o jornalismo, mas com a
publicidade, através da propaganda de produtos que enalteciam
a beleza e que reforçavam a idéia de modernidade
e consumo. Dessa maneira, a revista vendia o sonho de mudanças,
naqueles anos de transformação.
Observamos,
então, as mudanças do país apresentadas
pela revista em temas que aparecem em diversos espaços
e momentos históricos do período, que se concentram
mais no final da década de 1930 e início da de
1940, especialmente com a variedade de produtos de utilidade
doméstica e de higiene e beleza.
Vários textos deixam transparecer as reais intenções
de mostrar que a sociedade brasileira estava alcançando
a modernidade através das transformações
das cidades e do surgimento de uma nova forma de vida, agora
mais urbanizada, moldando comportamentos.
A
transformação que, apesar de ainda lenta, era
vendida pela revista como uma realidade já existente.
Vejamos um trecho ilustrativo do que afirmamos:
Nas
cidades-crianças vivem os homens que ainda não
se despenderam da terra. Cujo ser, como as raízes e
as frondes, estremece ainda à pulsação
profunda das energias telburicas. [...] Sob os seus monumentos
gigantescos, sob as suas babéis de dezenas de andares,
o homem viverá esmagado como sob escombros, diminuindo
no seu destino e na significação profunda da
sua existência sobre a terra. [18]
A
comunicação era o primeiro passo para essa transformação
social moderna; por isso, revistas como a Life e a Paris-Match
foram fontes de inspiração e de informação
para que O Cruzeiro adotasse padrões modernos
em termos gráficos, jornalísticos ou publicitários.
A
sua principal fonte de informação era o cinema
americano que proporcionava lançar novas modas, uma ditadura
que vinha das elegantes estrelas, principalmente da Metro-Goldwyn
Mayer, além de agências cinematográficas
como a Paramount. Por quase meio século, o jornalismo
viu nascer, crescer e morrer uma das mais importantes revistas
que o país já teve.
Nos
46 anos que circulou, inclusive no exterior, em países
como Portugal, Argentina, Chile e México, a revista foi
considerada a maior da América Latina, chegando a uma
tiragem de setecentos mil exemplares na década de 1960,
considerado o período-auge do semanário. Foi um
dos periódicos que consolidou muitas práticas
do jornalismo, como a grande reportagem e o fotojornalismo.
Foi
ainda uma porta para o surgimento de vários nomes, principalmente
na comunicação, com David Nasser, e na fotografia,
com Jean Manzon, sem falar na literatura, na política
e nas colunas, variadas e especializadas.
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Notas
[1]
O presente trabalho, nas citações da revista preserva
a grafia original da época.
[2]
SERPA, Leoní. A máscara da modernidade: a mulher
na revista O Cruzeiro (1928 - 1945). Passo Fundo: UPF, 2003.
Resultado da dissertação de mestrado em História.
[3]
Museu de Comunicação Social Hipólito José
da Costa em Porto Alegre, onde se encontra boa parte dos exemplares
da revista, de 1929 a 1973 e de 1982 a 1983, quando foi realmente
extinta. MCS HJC - Rua Andradas, 959, Porto Alegre. Telefone:
(51) 322 44252. O Cruzeiro circulou de dezembro de 1928
a 1974. Um dos livros que contam um pouco da sua história
é O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro,
de Accioly Neto, organizado por Heloísa Seixas. A revista
era vinculada aos Diários Associados, de Assis Chateaubriand
(ver maiores informações no site <www.igutenberg.org/Biblio24.html>.
Baseamo-nos ainda nas obras de Fernando Morais, Chatô
o rei do Brasil,e de Luiz Maklouf Carvalho, Cobras criadas,
autores que resgatam historicamente a trajetória da revista,
do maior empresário de comunicação no período
e de personagens como David Nasser e Jean Manzon, uma dupla
de jornalistas muito conhecida do país de 1930-1970.
[4]
Gerência de Documentação e Informação
do Sistema Estaminas de Comunicação (Gedoc), junto
ao jornal Estado de Minas - Área de Documentação
e Informação - Avenida Mem de Sá, Santa
Efigênia, Belo Horizonte, Minas Gerais. No local encontra-se
a coleção completa da revista desde o seu primeiro
exemplar. O material disponível para pesquisa é
microfilmado.
[5]
Principalmente tendo como base autores: Boris Fausto e Thomas
Skidmore, entre outros.
[6]
DIEHL, Astor Antônio. Do método histórico.
2. ed. Passo Fundo: UPF, 2001. p. 35.
[7]
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores
de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina,1998. E ainda em Chatô
o rei do Brasil, de Fernando Morais, e Cobras criadas,
de Luiz Maklouf Carvalho.
[8]
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas
e representações. Rio de Janeiro: Difek/ Bertrand
Brasil, 1990. p. 130-131.
[9]
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica:
memória, identidade e representação. Bauru:
Edusc, 2002. p. 203.
[10]
Idem, p. 203-204.
[11]
NETTO, 1998, p.164.
[12]
NETTO, 1998 p.164.
[13]
SERPA, Leoní. A máscara da modernidade: a mulher
na revista O Cruzeiro (1928 - 1945). Passo Fundo: UPF, 2003.
[14]
CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001. p. 109.
[15]
Ibid.
[16]
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia
e história. São Paulo: Brasiliense, 1983.
p. 54.
[17]
Para termos uma idéia do percentual da população
trabalhadora, observamos os índices de mulheres que representavam
a força feminina de trabalho em 1940, que chegava a 2,8
milhões para uma população que passava
de quarenta milhões de pessoas. Um percentual de apenas
19% das mulheres em atividades no país estava concentrado
no setor terciário, em atividades ligadas à educação,
a serviços de saúde, serviços domésticos
e comunitários, um índice que representa uma minoria
já que a população feminina do Brasil nesse
período era de 20.622.227 e de 20.614.088 homens. Até
a década de 1930, por causa da imigração,
a população masculina era maior que a feminina.
Em 1872, no primeiro censo, 51,5% eram homens e 48,5%, mulheres;
na década de 1940, a população feminina
começou a predominar. A PARTICIPAÇÃO da
mulher no mercado de trabalho no Brasil. Disponível em:
<http://www.frigoletto.com.br/geopop/mulher.html>.
Acesso em: 25 mar. 2003.
[18]
O Cruzeiro, 7 set. 1929. p. 2. É possível
que expresse a opinião da revista pelo fato de estar
em página nobre, abaixo do expediente, como um editorial.
*Leoní
Serpa é mestre em história e jornalista, professora
de jornalismo e publicidade e propaganda na Faculdade de Pato
Branco (FADEP), em Pato Branco/PR. E-mail: leo_niserpa@hotmail.com.
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