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Nos
tempos da ditadura: cenários uspianos
Por
Victor Gentilli*
Os
setenta dias foram tensos e intensos. A ditadura estava no auge
do seu prestígio e a oposição, enfraquecida
e sem alternativas. A luta armada, que segmentos da esquerda
defenderam para combater o regime, praticamente já se
encerrara (com a exceção da guerrilha do Araguaia,
organizada pelo PCdoB), mas as organizações que
a patrocinaram, frágeis e diminutas, ainda tentavam se
manter.
Caio
Túlio Costa narra, com detalhes e emoção,
o período que se inicia com a prisão seguida de
morte de Alexandre Vanucchi Leme, estudante da Geologia da USP,
e segue até o show de Gilberto Gil na Escola Politécnica,
setenta dias depois.
Alexandre
Vanucchi era militante da ALN (Ação Libertadora
Nacional), mas tinha vida legal e atuava do precário
movimento estudantil da época. Não participou
de nenhuma ação armada. A ALN foi criada por Carlos
Marighella, como dissidência do Partido Comunista Brasileiro,
e buscou organização própria em 1967. Foi
parceira da Dissidência da Guanabara no seqüestro
do embaixador americano Charles Elbrick, em setembro de 1969.
Marighela foi morto em dezembro de 1969 e Joaquim Câmara
Ferreira (conhecido como Toledo), preso e assassinado em 1970.
Mas
a organização manteve-se, debilitada, até
1974.
Diálogo
com estudantes
A
morte de Alexandre Vanuchi, como bem percebeu Caio Túlio,
provocou, de fato, a primeira manifestação pública
de massas contra o regime. O então cardeal-arcebispo
de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, celebrou a missa
de sétimo dia do militante. Cerca de três mil estudantes
participaram da celebração na Catedral da Sé,
no centro de São Paulo. Outros milhares ficaram presos
ou foram detidos nas inúmeras blitzes realizadas pela
repressão para impedir o acesso à catedral.
Ao
contrário de todos os demais presos e assassinados políticos
que participaram da luta armada, Alexandre tinha vida legal,
fora o primeiro colocado no vestibular para Geologia, era estimado
e querido pelos colegas. O regime, como de costume com todas
as mortes de militantes do período, forjou um "atropelamento"
e enterrou o estudante como indigente.
Pouco
mais de dois anos depois, em 25 de outubro de 1975, morria em
circunstâncias semelhantes o jornalista Vladimir Herzog.
Com Herzog, forjou-se um "suicídio" e igualmente
houve um ato que mobilizou multidões na Catedral da Sé.
Como Herzog era de origem judaica, não houve missa, mas
um culto ecumênico.
Também
estudante, mas com vida clandestina, Ronaldo Mouth Queiroz foi
preso e assassinado poucas semanas após a morte de Alexandre
Vanucchi Leme. Quase um ano e meio antes de sua prisão
e morte, Mouth Queiroz abandonou o curso de Geologia e optou
pela militância integral na ALN. Não era mais aluno
da USP. Era ex-aluno. Os estudantes nada puderam fazer para
denunciar seu assassinato. Denunciar a prisão de um estudante
era possível. Um "terrorista" não podia
ter sua prisão denunciada até porque vivia clandestinamente.
Uma
das grandes virtudes do livro de Caio Túlio é
a recuperação dos últimos movimentos em
vida de Ronaldo Mouth e o que se pôde saber de sua prisão
e morte.
O
livro Cale-se é de leitura apaixonada e fluente. A leitura
é fácil mas a compreensão talvez seja difícil
para quem não tenha maiores informações
sobre o período. Caio Túlio sequer se preocupa
em lembrar que o ditador de plantão em 1973 era o general
Emílio Garrastazu Médici, ou em esclarecer detalhes
sobre como as coisas funcionavam naquela ditadura, no Brasil
do início dos anos 1970.
Este
observador leu de fio a pavio com gosto e tristeza, mas na posição
privilegiada de quem esteve na catedral, emocionou-se com Sérgio
Ricardo cantando Calabouço, viu e viveu toda a tensão
do período e também esteve no show de Gil, embora
a memória há anos registrasse que o espetáculo
fora no Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina e no
início da tarde. Memórias falham. O show foi no
auditório da Poli e no final da tarde.
Mas
memórias registram bem. As músicas apresentadas,
a primeira vez que a canção Cálice foi
cantada em público (fora censurada dias antes, quando
do evento Phono 73, uma tentativa de reviver os velhos festivais
de música dos finais dos anos 1960), até mesmo
os comentários de Gil sobre sua própria música
e o diálogo com os estudantes. Momentos intensos permanecem
na memória.
Contribuição
à historiografia
Caio
Túlio Costa escreve com paixão. E, para quem viveu
aqueles dias, revivê-los num livro não poderia
ser algo desapaixonado. Assim, embora acerte ao apontar a missa
como a primeira manifestação popular de combate
ao regime, certamente exagera ao considerar aqueles 70 dias
como o momento de inflexão em que a oposição
abandona definitivamente a luta armada e opta pela luta aberta
e legal. Poucos meses depois daqueles setenta dias, Ulysses
Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho fariam a memorável
campanha pela anticandidatura oposicionista que daria vigor
ao único partido de oposição, o MDB.
Uma
análise minuciosa do período mostrará que,
mesmo os setores chamados de "autênticos" do
então MDB, questionavam a opção de uma
anticandidatura - que entendiam como uma forma de "legitimar
a ditadura". Já em 1974, quase dois anos depois,
ainda havia no movimento estudantil quem batalhasse pelo voto
nulo, rejeitando a opção do voto no MDB.
Antes
de Caio Túlio, é o próprio autor de Cale-se
quem aponta, o brasilianista Kenneth P. Serbin, em seu livro
Diálogos na sombra", editado em 2001, já
apontara a missa de Alexandre Vanucchi como a primeira grande
manifestação de massa contra a ditadura. Todos
os demais registros históricos indicam o culto ecumênico
por Vladimir Herzog, em outubro em 1975, como a primeira manifestação.
O
autor de Cale-se recorda que, ainda em 1972, os estudantes da
USP realizam um plebiscito sobre o ensino pago nas universidades
públicas. Noventa e cinco por cento dos estudantes votam
contra. Caio Túlio vai registrar o voto do então
ministro da Educação Jarbas Passarinho quando
da edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro
de 1968, mas deixa de referir as declarações de
Passarinho sobre o plebiscito: "Aquela movimento contra
o ensino pago (...) não era mais do que uma aliança
entre os ricos e os comunistas".
Os
ricos eram os que tinham acesso ao ensino superior público
da Universidade de São Paulo e os comunistas eram os
subversivos que desejavam derrubar o regime. As anotações,
aqui, são da memória do observador, mas certamente
há quem tenha documentação e os próprios
jornais da época certamente reproduziram as declarações
do ministro.
É
verdade que o grupo que esteve à frente da organização
da missa na Catedral da Sé e do show de Gilberto Gil
já tinham uma outra visão das alternativas de
combate à ditadura, mas daí a ver, naquele período,
"o" ponto de inflexão entre a luta armada e
ação de massas vai uma boa distância.
De
toda forma, a obra recupera com precisão e reconstrói
aqueles dramáticos setenta dias. Caio Túlio consegue
recuperar a fita do show de Gil e ouve depoimentos de quase
todos os estudantes que estiveram à frente daqueles acontecimentos.
A
história contemporânea do Brasil, registre-se,
tem sido contada por jornalistas. Fernando Moraes, Paulo Markun,
Mario Sergio Conti, Villas Boas Correa, Carlos Chagas, William
Waack, agora Caio Túlio Costa, e tantos outros têm
oferecido uma contribuição inestimável
à historiografia brasileira.
Cale-se
- a saga de Vanucchi Leme, a USP como aldeia gaulesa, o show
proibido de Gilberto Gil,
de Caio Túlio Costa, 350pp., Editora A Girafa, São
Paulo, 2003; <www.agirafa.com.br>;
R$ 43,00
*Victor
Gentilli é Doutor
em Jornalismo pela ECA-USP.
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