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Artigos


O homem do baú "tira um sarro" da
nossa cara: uma visão crítica sobre
a anti-ética do atual jornalismo

Por Lourdes Maria Alvarez Rivera

Gíria inventada por volta dos anos 60 "tirar um sarro" significa brincar no sentido de engabelar, enrolar, fazer o outro de bobo.

Gíria adaptada nos anos 90, os jovens do terceiro milênio, mais recentemente, talvez por preguiça, ou porque as informações precisam ser passadas mais rapidamente com poucas palavras, aboliram o complemento "Sarro" e mantiveram apenar o verbo "tirar", se é que podemos conjugar tal expressão.

Apesar de reduzido, o termo mantém o significado. E foi exatamente esta a sensação - de termos feito papel de bobos - deixada pela revista Contigo em sua edição do dia 10 de julho ao trazer na capa o título de sua reportagem principal: "Silvio Santos - A vida anônima nos EUA". Se a matéria se resumisse a relatar a vidinha despreocupada que o mega-empresário da comunicação leva na pacata cidade dos Estados Unidos de dois mil habitantes, provavelmente não chamaria tanta atenção. O pior veio logo embaixo, em duas frases declaratórias: "Tenho mais seis anos de vida" e "Vendi o SBT para a Televisa e o Boni". No rodapé da página, a dica: "Boni nega negociação e família desconhece doença".

Por aí, já era possível imaginar que não dava para levar a sério as declarações do "homem do Baú".

A impressão, porém, é a de que os editores da revista, decidiram pela publicação apesar de não confirmadas nenhuma das declarações do entrevistado como aliás, o pró´rio declarou à jornalista Ana Carolina Soares, autora da reportagem:"Escreve tudo e coloca na capa. Vai vender uma porção de revistas".

Silvio sabia o que estava dizendo, pelo menos nesse momento. Não só a Contigo vendeu bem, como a própria jornalista ganhou algum destaque ao ser entrevistada, por exemplo, pelo Jornal da Tarde que, no mesmo dia do lançamento da publicação nas bancas trouxe o assunto com chamada na primeira página. Internamente repercutiu o assunto junto aos, aparentemente, atônitos e surpresos funcionários do SBT que negavam as informações publicadas.
Ao JT, a jornalista, questionada se não percebera que tudo não passara de uma "pegadinha" do apresentador, respondeu que o entrevistado parecia sincero. Como alguém pode parecer sincero a milhares de quilômetros de distância e por telefone?

Além disso, em jornalismo, como em outras várias atividades humanas, não basta "parecer" sincero para merecer ganhar as páginas impressas de uma revista ou jornal. É imprescindível a checagem da informação. Trata-se de princípio básico do jornalismo: o compromisso com a verdade.

Os jornalistas americanos Bill Kovack e Tom Rosenstiel escreveram em "Os Elementos do Jornalismo" (1) que "em longas entrevistas com nossos colegas acadêmicos, velhos e novos jornalistas foram unânimes em dizer que 'a verdade' é a missão primordial da nossa profissão."

Discussões à parte sobre conceitos filosóficos do que seja verdade, o fato é que uma revista levou até a sociedade uma informação falsa e, até certo ponto, inverossímil, fácil de ser identificada como algo improvável de ser verdadeiro.

A impressão, até para o leitor mais ingênuo é de que de fato a intenção era aumentar as vendas em banca sem nenhum outro compromisso com os princípios básicos do jornalismo ou da ética jornalística.

A revista Contigo estaria utilizando forma jornalística para obter resultados econômicos pura e simplesmente?

O ombudsman do jornal Folha de São Paulo, Bernardo Ajzenberg, comentou o fato em sua coluna dominical no dia 13 de julho (2) como se a responsabilidade pela divulgação da falsa notícia fosse exclusividade do apresentador do Show do Milhão. As reportagens sobre a entrevista, assim como o bom-senso, indicavam que tudo podia não passar de marketing, uma "pegadinha" de Silvio.

Ele relatou que a revista Contigo disponibilizou para a mídia a fita contendo a entrevista e, segundo palavras dele "tomara precauções no sentido de checar as afirmações, publicando com elas, as respectivas negativas de várias pessoas envolvidas, além de fotos que mostram o empresário em boa forma. Sustentou a autenticidade da conversação embora admitindo o absurdo de seu conteúdo", afirma o ombudsman.

Marketing X jornalismo

Cabem aqui algumas considerações que considero pertinentes: se as informações foram checadas e dadas como falsas, ou no mínimo não comprovadas, e até mesmo inverossímeis conforme observou Ajzenberg, por que a decisão de publicá-las com tanto destaque? Por que o ombudsman da Folha considerou que a entrevista fora uma jogada de marketing de Silvio Santos se não foi ele quem procurou a revista pedindo para ser entrevistado? E ainda que isso houvesse acontecido, a revista não teria como checar essa intenção do empresário e barrar a publicação da mesma? Ou estariam todos de conluio, revista e Silvio Santos?

Trata-se claramente de uma situação em que a ética, não apenas a ética jornalística, mas a ética em sua mais pura expressão aquela que significa desejar o bem de todos foi deixada de lado, para que apenas os interesses, tanto do veículo quanto do entrevistador, e aí, talvez nem caiba o mérito de averiguar, se de um ou de outro.

Francisco Karan (3) defende que "a reflexão ética, não redutível nem à moral vidente nem aos códigos deontológicos, é essencialmente um momento em que nos perguntamos, radicalmente, qual o sentido do que fazemos (...) ou o significado de uma ocupação ou profissão".

No caso analisado, qual o sentido lógico, ético, deontológico ou ideológico de publicar uma matéria cujas informações foram previamente confirmadas falsas? Se não fosse para vender mais revistas, ou promover o entrevistado, seria por qual outro nobre motivo? Prestar um serviço à comunidade? O que acrescentou à vida das pessoas saber do tempo de vida que ainda tem o Sr. Silvio Santos ou os negócios que teria realizado com uma empresa de sua propriedade?

Ética esvaziada

Parece que estamos diante daquilo que Kucinsk (4)i chama de "vazio ético": "Nas redações, deu-se uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos proprietários dos meios de informação". No texto o jornalista e professor da ECA-USP, conta que tinha como certa uma concepção idealista formada por um "imperativo categórico, um preceito universal de conduta aplicável em todas as circunstâncias, e que não admite adaptação ou compromisso."

O imperativo a que se refere é aquele que preconiza ser o jornalismo algo que "existe para socializar as verdades de interesse público, para tornar público o que grupos de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada". Entendo que poderíamos acrescentar: e que não se preste a fazer o jogo dos poderosos estejam eles deste ou daquele lado do balcão!

Kovack e Rosenstiel (5) reforçam essa tese quando afirmam que "a principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar".

Em que esse tipo de informação divulgada pela revista Contigo ajuda os cidadãos a se autogovernarem e a serem livres?

Karan (6) destaca que "o jornalismo é um só, não há dois. Os profissionais exercem jornalismo e não marketing, ou pelo menos assim deveria ser". Portanto, pela ótica da ética, não se justificaria a decisão da revista Contigo em publicar uma reportagem como o mero objetivo de fazer marketing, fosse o dela próprio ou o do apresentador Sílvio Santos ou de ambos.

A voz do dono?

Sim, Karan tem razão, assim deveria o jornalismo ser encarado, defendido e exercido. Porém, o anúncio da Revista Contigo publicado na edição do dia 13 de julho, nos maiores jornais diários de circulação nacional, como a Folha de S.Paulo, por exemplo, nos leva a deduzir que não é bem assim que pensam e agem os editores de jornais e revistas.

O anúncio (7) traz a capa da edição em questão com a foto do dona da Segunda maior rede de TV do país empurrando um prosaico carrinho de supermercado. O texto exalta "o jornalismo sério, competente e investigativo da Contigo, trabalhando para colocar você à frente da notícia".

Mas, a que tipo de notícia a revista se refere? À falsa notícia? À fabricada? À notícia de ocasião? Que jornalismo é esse, afinal?

A ironia do texto do anúncio da revista extrapola qualquer possibilidade de contemporização quando, na mesma publicidade lemos outra pérola: À verdade sem retoques! Não dá para levar a sério um veículo que se preste a esse papel.

Curioso observar que a opinião do ombudsman da Folha, dá a entender, de modo bem sutil, que ele quer levar o leitor a julgar apenas o apresentador do SBT responsável pela desfeita quando escreve que Silvio Santos "parece Ter resolvido tirar um sarro do jornalismo, na linha de que 'o papel aceita tudo'". Como se a revista ou a jornalista que escreveu a matéria, estivessem isentos de responsabilidade e o vilão fosse única e exclusivamente o entrevistado. Será que o ilibado e imparcial ombudsman inverteu a ordem das coisas? Sua atitude revelaria um velado e discreto corporativismo? Ou será que o fato de a revista, naquele momento ser um anunciante, atenuou suas possíveis críticas?

A "voz do dono" teria falado mais alto? Afinal, é muita coincidência o comentário do colunista e o veículo em questão aparecer como anunciante na mesma edição com publicidade de meia página.

A velha ética X o new journalism

Estaremos diante do novo jornalismo preconizado por alguns jornalistas mais antigos, como G. Anne Geyer (8), que acredita que "os jornalistas mais jovens assimilaram a imagem popular do jornalismo nesta nova era e estão nele pela fama, pelo dinheiro e pelo poder?"

O fato envolvendo a revista Contigo e o apresentador e dono do SBT acentua a situação trágica em que se encontra o jornalismo atual, muito bem descrita por Marlise Almeida (9), em artigo disponível na internet, que diz: "O jornalismo imparcial cedeu lugar a uma produção tendenciosa e atrelada a interesses diversos que transcendem o motivo primeiro de sua existência: servir à população".

Pois, que serviço prestou à população a revista Contigo quando publicou com destaque a reportagem em questão?

Ainda segundo Marlise Almeida, no mesmo texto (10) jornais e revistas cometem esse tipo de, digamos, deslize ético, aqui representado pela reportagem da Contigo, porque, "na ânsia de vender e conquistar público, a imprensa apela para a emoção do leitor, às vezes deixando de lado a veracidade da informação. Abre-se, portanto, espaço para (...) produtos de mídia que não acrescentam nada ao intelecto, servindo apenas como diversão", conclui.

A diversão a que Almeida se refere nesse caso, só pode ser a do próprio veículo de comunicação que se vale desse expediente para vender mais, Ter mais audiência, como de fato aconteceu com a revista Contigo e com todos os demais órgãos da mídia que se valeram da notícia para "faturar algum", como foi o caso de diversas emissoras de TV que, acostumadas aos baixos índices de audiência angariaram alguns pontos acima da média de suas rotinas. O público provavelmente sentiu-se lesado, ou não? Quem vai pesquisar sua opinião nessas horas?

"Como resistir ao sensacionalismo e manter as notícias dentro de eum equilíbrio mínimo", pergunta a dupla Kovack e Rosenstiel? (11)

A resposta deveria ser: seguindo os códigos morais universais de ética que balizaram os códigos de ética do jornalismo.

A tentação, entretanto, é tanta que até mesmo órgãos de imprensa bastante conservadores e respeitáveis sucumbem de tempos em tempos, por defenderem a oportunidade de aparecer e ganhar notoriedade m detrimento da manutenção dos valores éticos que cercavam a "busca da verdade de interesse público". (12) Haveria algumas dezenas de casos a relatar, mas vamos nos ater ao mais recente, e bastante comentado, ocorrido com o jornal New York Times - o mais tradicional representante da imprensa norte-americana - e o seu jornalista-estrela Jayson Blair.

Invenção, plágio e falsificação

No dia 11 de maio o diário nova-iorquino publicou matéria detalhada relatando as fraudes que o jornalista cometera durante os quatro anos em que trabalhou no matutino. Blair, que entrou no diário como estagiário e seguiu rápida ascensão interna - foi acusado de inventar histórias, plagiar textos de outros jornais e de falsificar declarações de entrevistados. Blair foi demitido e execrado publicamente pelo Times e as 600 reportagens de sua autoria foram analisadas por uma equipe especialmente formada com essa missão.

Dias depois de anunciar que descobrira que Blair era uma farsa, que atuava há tanto tempo, provavelmente com a conivência de alguns editores, o jornal divulgou aos funcionários novos procedimentos e medidas para evitar fraudes. Isso incluía checar de forma mais eficiente se os jornalistas de fato saíam da cidade quando diziam que saíam, pois, pasmem, umas das fraudes preferidas de Jayson Blair era entrevistar pessoas de outros estados, descrevendo locais e paisagens, sem nunca Ter saído de New York City.

Na mesma ocasião, os editores Howel Raines e Arthur Sulzberger Jr. reuniram os funcionários e pessoal da redação para uma reunião em que foram duramente criticados, entre outras coisas, por suas atitudes arrogantes e pelo distanciamento com os repórteres.

Vale comentar que Jayson Blair era tido como protegido pelos editores já citados, mas em particular por Gerald Boyd, negro como Blair, por sua rápida ascensão de estagiário a repórter da prestigiada editoria nacional.

Há quem firme que Blair foi mantido e teve tanto prestígio, por ser negro, pois, para o NYT seria um bom marketing social manter em sue quadro um jovem, talentoso e, pelo menos até então, promissor jornalista negro.

Há quem afirme que a maior falha dos editores chefes de Blair fora permitir que ele usasse indiscriminadamente fontes não identificadas, que jamais foram checadas posteriormente. Parece que a medida, checar fontes não identificadas não integrava as medidas preventivas de fraudes no NYT.

E, provavelmente, não integram as regras e normas de conduta de muitos outros veículos. Prova disso está publicada na coluna do ombudsman da Folha de 20 de julho de 2003, (13) em que reconhece que o jornal paulistano só agora estava tomando medidas preventivas para evitar que, com ele, acontecesse o mesmo que ao seu benchmarketing norte-americano. Ajzenberg reproduz o comunicado interno à redação da Folha emitido pela editora-executiva Eleonora de Lucena em que ela admite logo na primeira linha estar banalizado no jornal o emprego de informações "off the record". "É preciso redobrar os cuidados na apuração e os controles na edição de notícias obtidas desse modo", diz a nota. "Sempre que solicitados, repórteres devem comunicar a origem dessas informações aos seus superiores hierárquicos", prossegue.

O ombudsman complementa a informação: "(...) essas observações implicam maior controle, mais rigor do jornal para consigo próprio - como organismo, não como uma reunião de individualidades -, no sentido de tentar reduzir as chances de vir a publicar informações falsas ou de ser manipulado, sem saber, por fontes pouco confiáveis", finaliza.

O jogo do patrão pós-moderno

O caso Jayson Blair terminou pateticamente com a demissão dos editores Raines e Boyd e com declarações de Blair ao jornal New Yorker Observer, por exemplo, acreditando ter enganado 'pessoas brilhantes do jornalismo'. (14) Diz a matéria que "ele riu de seus editores idiotas". Antes, Blair já havia declarado ao Daily News (15) que havia contratado um agente literário para escrever um livro e que também pretendia entrar num acordo com uma emissora de TV.

Para Alberto Dines (16), Jayson Blair não fez nada de muito grave: "Blair serviu-se do talento e do sistema para confundir verdade com inverdade (...) respeitou as regras formais. Jogou o jogo. (...) oferecia aos chefes quantidade e qualidade sem confrontar os preceitos elementares. Os eventuais reclamantes estranharam declarações que não fizeram ou situações que não aconteceram. Mas não se sentiram excessivamente afrontados a ponto de cobrar indenizações. Por isso a farsa estendeu-se por tanto tempo sem acionar os alarmes", opina.

A julgar por esse ângulo, a jornalista Ana Carolina não agiu muito diferentemente do colega norte-americano.

Mas, a que jogo Dines se refere no texto do site Observatório da Imprensa? Provavelmente àquele embutido na "mentalidade pós-moderna" descrita por Kucinscki (17) em "uma nova Ética....": "hoje vivemos um novo tempo discursivo, marcado pela negação das utopias e pela ausência de um padrão ético hegemônico, exceto no sentido metafísico de que a ausência de padrões também seria um padrão. Fatores objetivos contribuíram para a quebra de valores tradicionais."

Ainda segundo o professor da ECA-USP, as éticas socialmente constituídas cederam espaço a uma ética definida em torno de cada indivíduo onde "cada um tem o direito de pensar e agir como quiser". É também uma ética de muitos direitos e poucos deveres, onde cada um tem o dever, antes de tudo de pensar em si mesmo, em seu projeto de vida. Uma ética em que o dever é definido como negação do social, como celebração da individuação ética.

Em outras palavras, isso significa que uma nova safra de jornalistas, da qual integram os Jayson Blairs e as Anas Carolinas, entendem que falar em ética dentro das redações contemporâneas, ou seguir Códigos de Ética, não corresponde à realidade, pois os jornalistas precisam/devem seguir e atender os interesses de quem paga seus salários e o que a publicidade manda.
Compartilha desta triste constatação, Bill Grauyer (18). Colunista do Chicago Tribune, em 1983 Grauyer afirmou categoricamente que "se você vai a seminários sobre jornalismo e ouve (...) debaterem sobre a ética e a moral do jornalismo moderno, terá uma idéia errada. Toda aquela lengalenga não tem nada a e com a apuração de uma reportagem e o ato de colocá-la no papel".

E pior! Grayer resume a ética do jornalismo real em duas regras básicas: "Consiga a reportagem! Publique-a!".

Ética X carreirismo

Parece que foram essas as regras seguidas pela repórter da Contigo e Jayson Blair, por sua vez, parece ser o legítimo representante daquilo que Anne Geyer (19) chama de carreirista: "O maior perigo da atualidade é o carreirismo desenfreado. "Geyer exemplifica sua preocupação com um depoimento contundente de um jovem repórter do mesmo NYT há alguns anos atrás, chamado Seymour Hersh. Ele diz que violar a segurança nacional em todas as suas reportagens e não se importar com isso. "sou um jornalista durão", gaba-se. "Temos o direito de publicar qualquer segredo que pudermos descobrir. Estou mais preocupado com o Washington Posto do que com a segurança nacional". Se os "segredos" que jovens jornalistas, como Hersh, descobrirem forem mesmo verdadeiros, talvez até valha a pena a infração. O problema desse tipo de postura é deixar que a ambição cega impeça de enxergar o limite da manipulação das fontes, como talvez tenha ocorrido com a jornalista da Contigo que se deixou levar pelas declarações inconseqüentes do Sr. Santos.

Por mais que essa nova geração insista em defender essa postura pragmática, oportunista e imediatista de atender às necessidades do patrão porque precisa trabalhar e, portanto, não pode se recusar a fazer esse ou aquele trabalho, ou posturas mais agressivas explicitando claramente que concordam em escrever para vender mais, e, portanto, atender assim, aos apelos da publicidade e/ou do marketing do veículo midiático, os jornalistas quer queiram ou não, gostem ou não, "têm uma obrigação com sua consciência", afirmam a dupla de "Os elementos...". (20)

Construindo um jornalismo honesto

Di Franco (21), jornalista e professor de Ética Jornalística na Faculdade Cásper Líbero, entende que "o jornalismo está virando show business". A pseudo-reportagem da Contigo comprova. Di Franco, porém, defende os jornalistas por entender que estes estão "espartilhados pelo mundo do espetáculo, (...) empurrados para o incômodo papel de peça descartável em linha de montagem da ciranda do entretenimento".

Então, qual seria a saída para a construção de um jornalismo honesto apesar (e por causa) do sistema? Di Franco aponta uma trilha nessa emaranhada selva de interesses: "(...) combater as manifestações do jornalismo declaratório e assumir, com clareza e didatismo, a agenda do cidadão". Ou seja, sair em busca daquilo que realmente interessa e é importante para a sociedade. O professor, representante da faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra (Espanha) no Brasil, coloca o dedo na ferida, na minha opinião, que sangrou abertamente na redação do NYT quando o caso Jayson Blair veio à tona e que, diz respeito à imensa maioria das redações em todo o mundo: "Quando editores não forma os seus repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando as pautas não nascem da vida real, quando não se olha nos olhos dos entrevistados, está na hora de repensar todo o processo".

Eugênio Bucci (22) também entende que a responsabilidade ética deve ser compartilhada pelos editores e proprietários das empresas de comunicação que "devem incluir no seu rol de afazeres a formação ética permanente dos jornalistas, dando-lhes retorno transparente sobre cada decisão ética e promovendo debates periódicos sobre o tema, o que inclui a recomendação de leituras e o apoio a cursos de aperfeiçoamento aos que têm interesse em se aprofundar. Se essa atividade é encarada com seriedade e empenho, a decisão entre Ter ou não Ter um código, ou uma carta de princípios, mais concisa, é apenas uma decorrência. Acompanhar e monitorar a cultura ética das equipes é muito mais vital".

A impressão que os exemplos deixados por Jayson Blair e a revista Contigo é que não houve essa preocupação e não há, por parte dos editores em geral, em formar eticamente os seus repórteres ou em contratar repórteres com consciência ética ou de manter em seus quadros profissionais desse naipe.

No caso específico do NYT há que se anotar um dado interessante que demonstra como a visão interna da direção do jornal mudou de 1989 para cá.

Rushworth Kidder (23), um jornalista que, a partir de uma pesquisa sobre temas relevantes para o século 21 organizou o Instituto de Ética Global - que pesquisa e analisa o tema pelo mundo todo - durante o Seminário "Ética na Imprensa: Realidades e Desafios no Brasil", realizado em Itu (SP, de 17 a 19 de maio de 1996), declarou que os jornalistas tratam de ética não como algo estranho, mas como algo que é essencial à própria existência. E para referendar sua afirmação relata uma pesquisa feita pela professora de ética Denny Elliot, do Colégio Dartmouth, que consultou o índice do New York Times de 1969 a 1989 constatando que, nesse período, houvera um aumento de 400% no número de artigos e reportagens sobre ética. "Eu asseguro a vocês, como leitor de longa data do New York Times, que isso não é um capricho de editores que querem mudar o mundo, mas iniciativa de editores que sabe, que vender jornal escrevendo reportagens que o povo realmente quer ler", disse Kidder. Infelizmente os últimos fatos envolvendo editores do NYT e o repórter Jayson Blair desmentem essa visão otimista do pesquisador americano.

Curiosamente, o mesmo Seminário, cujo conteúdo pode ser acessado por meio do site do Instituto Gutenberg, traz o resultado parcial de uma pesquisa (24) sobre Ética e Técnica, que aparecem dois resultados que refletem o pensamento dos jornalistas - pelo menos dos que participaram do evento - acerca de inventar reportagens e plagiar textos.

À questão: "É comum (no Brasil) um jornalista inventar informações ou declarações para melhorar a reportagem", 58% responderam "não" e 95% responderam não concordar com a prática caso ela fosse verdadeira. Todavia, "usar idéias ou palavras de outra pessoa sem citar a fonte", apesar de contar com 96% de rejeição à prática, apontou 67% dos pesquisados entendendo ser essa uma prática comum ao jornalista brasileiro.

Donde podemos deduzir que, copiar pode; inventar, jamais! Seguindo essa lógica paradoxal, Jayson Blair estaria num limbo intermediário entre o Céu e o Inferno, ora em pecado, ora no paraíso conforme os ditames das necessidades editoriais e, assim como ele, centenas de jornalistas espalhados pelo mundo todo vagueiam como zumbis, meio mortos, meio vivos, divididos e em luta permanente e íntima com suas consciências vazias de conceitos universais éticos.

Talvez a solução para o dilema esteja na sugestão dos jornalistas Kovack e Rosenstiel (25) quando declaram em seu livro que "todos os jornalistas - da redação à sala da diretoria - devem ter um sentido pessoal de ética e responsabilidade - uma bússola moram. Mais ainda, eles têm uma responsabilidade de dar voz, bem alta, à sua consciência e permitir que outros ao seu redor façam a mesma coisa".

Isso significa que deve haver tanta abertura dentro das redações dos jornais que os jornalistas possam se manifestar, que possam recusar reportagens que os comprometam enquanto seres humanos, abertura, enfim, suficiente para alertar os editores e chefes de reportagens sobre possíveis decisões equivocadas, sem que por isso percam seus cargos e posições. "Somente numa redação onde todos possam emitir seus diversos pontos de vista as notícias terão alguma possibilidade de antecipar e refletir, com exatidão, as crescentes e diversas perspectivas e necessidades da cultura".

Por fim, a dupla escreve: "Permitir que vozes individuais se manifestem nas redações torna a administração de um jornal mais difícil, mas torna as notícias mais exatas".

Os jornalistas americanos Kovack e Rosenstiel escreveram a obra "Os Elementos do Jornalismo - O que os jornalistas devem saber e o público exigir" -, após série de pesquisadas realizadas junto a vários jornalistas dos EUA durante muitos anos. E foram os próprios pesquisados, em diversas redações, que chegaram a um consenso sobre qual seriam os elementos fundamentais para se exercer um jornalismo, no mínimo, honesto:

· "A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade;
· sua primeira lealdade é com os cidadãos;
· sua essência é a disciplina da checagem;
· seus praticantes devem manter independência de quem estão cobrindo;
· deve funcionar como um monitor independente do poder;
· deve apresentar um fórum para a crítica pública e o compromisso;
· deve lutar para transformar o fato significante em interessante e relevante;
· deve manter as notícias equilibradas e compreensíveis;
· seus praticantes devem Ter liberdade para exercer sua consciência pessoal.

Quando conseguirmos colocar em prática, não um ou outro, mas todos os elementos elencados, aí sim, poderemos nos sentir mais protegidos quanto aos sarros dos jornalistas e veículos da comunicação que não respeitam nem levam a sério seu público.

Penso que a mudança não virá apenas de dentro para fora das redações. Deve ser algo em sintonia fina, com atitudes externas do público assim como um boicote ético em que as pessoas parassem de consumir programas sem ética, jornais e revistas sem ética. Talvez só assim, pegos pelo bolso, os veículos de comunicação se tornassem instituições mais sérias e confiáveis, contribuindo verdadeiramente para a construção de uma sociedade mais justa e mais feliz. Mas a sociedade precisa começar a se manifestar. Talvez, os baixos índices de audiência dos programas sensacionalistas de TV e a queda sistemática da venda de jornais e revistas em bancas sejam um sinal de que a sociedade não está assim tão alienada como prefeririam alguns representantes do poder.

São Paulo
Julho 2003

BIBLIOGRAFIA

KOVACK, Bill e ROSENSTIEL, Tom. Os Elementos do Jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2003.

BUCCI, Eugênio, Sobre Ética e Imprensa, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 1ª reimpressão, pp 207.

KIDDER, Rushworth, "A verdade é um valor ético universal", Seminário Ética na Imprensa - Realidades e Desafios no Brasil, São Paulo - Itu, 17 a 19/05/96, site Guttemberg. <www.guttemberg.org.br>

DI FRANCO, Carlos Alberto, "Desafios do Jornalismo", O Estado de S.Paulo, 23/06/03, pp A2.

SCHMUHL, Robert, "Introdução - O caminho para a responsabilidade: as responsabilidades do Jornalismo - as questões éticas no país de maior liberdade de expressão". Rio de Janeiro: Ed. Nordica, 1984. pp 23.

GEYER, Georgie Anne, "Jornalistas: os novos alvos, os novos diplomatas, os novos intermediários". In SCHMUHL, Robert, As responsabilidades do Jornalismo - as questões éticas no país de maior liberdade de expressão , Rio de Janeiro: Ed. Nordica, 1984. pp 91.

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<www2.uol.com.br/observatorio/aspas/inde051198.htm>

Blue Blus, site, "Enganei pessoas brilhantes do jornalismo".
<http://www.blueblus.com.br/noticias/busca>

DINES, Alberto, "Jayson Blair e nós - Nossos jornalões fariam o mesmo?", Imprensa em Questão, site Observatório de Imprensa.
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AJZEMBERG, Bernardo, "Domesticar o off", Folha de S.Paulo. São Paulo. 20/07/2003, pp. A6.
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<http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/da010520021.htm>

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