Artigos
O
homem do baú "tira um sarro" da
nossa cara: uma visão crítica sobre
a anti-ética do atual jornalismo
Por
Lourdes Maria Alvarez Rivera
Gíria
inventada por volta dos anos 60 "tirar um sarro" significa
brincar no sentido de engabelar, enrolar, fazer o outro de bobo.
Gíria
adaptada nos anos 90, os jovens do terceiro milênio, mais
recentemente, talvez por preguiça, ou porque as informações
precisam ser passadas mais rapidamente com poucas palavras,
aboliram o complemento "Sarro" e mantiveram apenar
o verbo "tirar", se é que podemos conjugar
tal expressão.
Apesar
de reduzido, o termo mantém o significado. E foi exatamente
esta a sensação - de termos feito papel de bobos
- deixada pela revista Contigo em sua edição do
dia 10 de julho ao trazer na capa o título de sua reportagem
principal: "Silvio Santos - A vida anônima nos EUA".
Se a matéria se resumisse a relatar a vidinha despreocupada
que o mega-empresário da comunicação leva
na pacata cidade dos Estados Unidos de dois mil habitantes,
provavelmente não chamaria tanta atenção.
O pior veio logo embaixo, em duas frases declaratórias:
"Tenho mais seis anos de vida" e "Vendi o SBT
para a Televisa e o Boni". No rodapé da página,
a dica: "Boni nega negociação e família
desconhece doença".
Por
aí, já era possível imaginar que não
dava para levar a sério as declarações
do "homem do Baú".
A
impressão, porém, é a de que os editores
da revista, decidiram pela publicação apesar de
não confirmadas nenhuma das declarações
do entrevistado como aliás, o pró´rio declarou
à jornalista Ana Carolina Soares, autora da reportagem:"Escreve
tudo e coloca na capa. Vai vender uma porção de
revistas".
Silvio
sabia o que estava dizendo, pelo menos nesse momento. Não
só a Contigo vendeu bem, como a própria jornalista
ganhou algum destaque ao ser entrevistada, por exemplo, pelo
Jornal da Tarde que, no mesmo dia do lançamento da publicação
nas bancas trouxe o assunto com chamada na primeira página.
Internamente repercutiu o assunto junto aos, aparentemente,
atônitos e surpresos funcionários do SBT que negavam
as informações publicadas.
Ao JT, a jornalista, questionada se não percebera que
tudo não passara de uma "pegadinha" do apresentador,
respondeu que o entrevistado parecia sincero. Como alguém
pode parecer sincero a milhares de quilômetros de distância
e por telefone?
Além
disso, em jornalismo, como em outras várias atividades
humanas, não basta "parecer" sincero para merecer
ganhar as páginas impressas de uma revista ou jornal.
É imprescindível a checagem da informação.
Trata-se de princípio básico do jornalismo: o
compromisso com a verdade.
Os
jornalistas americanos Bill Kovack e Tom Rosenstiel escreveram
em "Os Elementos do Jornalismo" (1) que "em longas
entrevistas com nossos colegas acadêmicos, velhos e novos
jornalistas foram unânimes em dizer que 'a verdade' é
a missão primordial da nossa profissão."
Discussões
à parte sobre conceitos filosóficos do que seja
verdade, o fato é que uma revista levou até a
sociedade uma informação falsa e, até certo
ponto, inverossímil, fácil de ser identificada
como algo improvável de ser verdadeiro.
A
impressão, até para o leitor mais ingênuo
é de que de fato a intenção era aumentar
as vendas em banca sem nenhum outro compromisso com os princípios
básicos do jornalismo ou da ética jornalística.
A
revista Contigo estaria utilizando forma jornalística
para obter resultados econômicos pura e simplesmente?
O
ombudsman do jornal Folha de São Paulo, Bernardo Ajzenberg,
comentou o fato em sua coluna dominical no dia 13 de julho (2)
como se a responsabilidade pela divulgação da
falsa notícia fosse exclusividade do apresentador do
Show do Milhão. As reportagens sobre a entrevista, assim
como o bom-senso, indicavam que tudo podia não passar
de marketing, uma "pegadinha" de Silvio.
Ele
relatou que a revista Contigo disponibilizou para a mídia
a fita contendo a entrevista e, segundo palavras dele "tomara
precauções no sentido de checar as afirmações,
publicando com elas, as respectivas negativas de várias
pessoas envolvidas, além de fotos que mostram o empresário
em boa forma. Sustentou a autenticidade da conversação
embora admitindo o absurdo de seu conteúdo", afirma
o ombudsman.
Marketing
X jornalismo
Cabem
aqui algumas considerações que considero pertinentes:
se as informações foram checadas e dadas como
falsas, ou no mínimo não comprovadas, e até
mesmo inverossímeis conforme observou Ajzenberg, por
que a decisão de publicá-las com tanto destaque?
Por que o ombudsman da Folha considerou que a entrevista fora
uma jogada de marketing de Silvio Santos se não foi ele
quem procurou a revista pedindo para ser entrevistado? E ainda
que isso houvesse acontecido, a revista não teria como
checar essa intenção do empresário e barrar
a publicação da mesma? Ou estariam todos de conluio,
revista e Silvio Santos?
Trata-se
claramente de uma situação em que a ética,
não apenas a ética jornalística, mas a
ética em sua mais pura expressão aquela que significa
desejar o bem de todos foi deixada de lado, para que apenas
os interesses, tanto do veículo quanto do entrevistador,
e aí, talvez nem caiba o mérito de averiguar,
se de um ou de outro.
Francisco
Karan (3) defende que "a reflexão ética,
não redutível nem à moral vidente nem aos
códigos deontológicos, é essencialmente
um momento em que nos perguntamos, radicalmente, qual o sentido
do que fazemos (...) ou o significado de uma ocupação
ou profissão".
No
caso analisado, qual o sentido lógico, ético,
deontológico ou ideológico de publicar uma matéria
cujas informações foram previamente confirmadas
falsas? Se não fosse para vender mais revistas, ou promover
o entrevistado, seria por qual outro nobre motivo? Prestar um
serviço à comunidade? O que acrescentou à
vida das pessoas saber do tempo de vida que ainda tem o Sr.
Silvio Santos ou os negócios que teria realizado com
uma empresa de sua propriedade?
Ética
esvaziada
Parece
que estamos diante daquilo que Kucinsk (4)i chama de "vazio
ético": "Nas redações, deu-se
uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas
ou ideológicos dos proprietários dos meios de
informação". No texto o jornalista e professor
da ECA-USP, conta que tinha como certa uma concepção
idealista formada por um "imperativo categórico,
um preceito universal de conduta aplicável em todas as
circunstâncias, e que não admite adaptação
ou compromisso."
O
imperativo a que se refere é aquele que preconiza ser
o jornalismo algo que "existe para socializar as verdades
de interesse público, para tornar público o que
grupos de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada".
Entendo que poderíamos acrescentar: e que não
se preste a fazer o jogo dos poderosos estejam eles deste ou
daquele lado do balcão!
Kovack
e Rosenstiel (5) reforçam essa tese quando afirmam que
"a principal finalidade do jornalismo é fornecer
aos cidadãos as informações de que necessitam
para serem livres e se autogovernar".
Em
que esse tipo de informação divulgada pela revista
Contigo ajuda os cidadãos a se autogovernarem e a serem
livres?
Karan
(6) destaca que "o jornalismo é um só, não
há dois. Os profissionais exercem jornalismo e não
marketing, ou pelo menos assim deveria ser". Portanto,
pela ótica da ética, não se justificaria
a decisão da revista Contigo em publicar uma reportagem
como o mero objetivo de fazer marketing, fosse o dela próprio
ou o do apresentador Sílvio Santos ou de ambos.
A
voz do dono?
Sim,
Karan tem razão, assim deveria o jornalismo ser encarado,
defendido e exercido. Porém, o anúncio da Revista
Contigo publicado na edição do dia 13 de julho,
nos maiores jornais diários de circulação
nacional, como a Folha de S.Paulo, por exemplo, nos leva a deduzir
que não é bem assim que pensam e agem os editores
de jornais e revistas.
O
anúncio (7) traz a capa da edição em questão
com a foto do dona da Segunda maior rede de TV do país
empurrando um prosaico carrinho de supermercado. O texto exalta
"o jornalismo sério, competente e investigativo
da Contigo, trabalhando para colocar você à frente
da notícia".
Mas,
a que tipo de notícia a revista se refere? À falsa
notícia? À fabricada? À notícia
de ocasião? Que jornalismo é esse, afinal?
A
ironia do texto do anúncio da revista extrapola qualquer
possibilidade de contemporização quando, na mesma
publicidade lemos outra pérola: À verdade sem
retoques! Não dá para levar a sério um
veículo que se preste a esse papel.
Curioso
observar que a opinião do ombudsman da Folha, dá
a entender, de modo bem sutil, que ele quer levar o leitor a
julgar apenas o apresentador do SBT responsável pela
desfeita quando escreve que Silvio Santos "parece Ter resolvido
tirar um sarro do jornalismo, na linha de que 'o papel aceita
tudo'". Como se a revista ou a jornalista que escreveu
a matéria, estivessem isentos de responsabilidade e o
vilão fosse única e exclusivamente o entrevistado.
Será que o ilibado e imparcial ombudsman inverteu a ordem
das coisas? Sua atitude revelaria um velado e discreto corporativismo?
Ou será que o fato de a revista, naquele momento ser
um anunciante, atenuou suas possíveis críticas?
A
"voz do dono" teria falado mais alto? Afinal, é
muita coincidência o comentário do colunista e
o veículo em questão aparecer como anunciante
na mesma edição com publicidade de meia página.
A
velha ética X o new journalism
Estaremos
diante do novo jornalismo preconizado por alguns jornalistas
mais antigos, como G. Anne Geyer (8), que acredita que "os
jornalistas mais jovens assimilaram a imagem popular do jornalismo
nesta nova era e estão nele pela fama, pelo dinheiro
e pelo poder?"
O
fato envolvendo a revista Contigo e o apresentador e dono do
SBT acentua a situação trágica em que se
encontra o jornalismo atual, muito bem descrita por Marlise
Almeida (9), em artigo disponível na internet, que diz:
"O jornalismo imparcial cedeu lugar a uma produção
tendenciosa e atrelada a interesses diversos que transcendem
o motivo primeiro de sua existência: servir à população".
Pois,
que serviço prestou à população
a revista Contigo quando publicou com destaque a reportagem
em questão?
Ainda
segundo Marlise Almeida, no mesmo texto (10) jornais e revistas
cometem esse tipo de, digamos, deslize ético, aqui representado
pela reportagem da Contigo, porque, "na ânsia de
vender e conquistar público, a imprensa apela para a
emoção do leitor, às vezes deixando de
lado a veracidade da informação. Abre-se, portanto,
espaço para (...) produtos de mídia que não
acrescentam nada ao intelecto, servindo apenas como diversão",
conclui.
A
diversão a que Almeida se refere nesse caso, só
pode ser a do próprio veículo de comunicação
que se vale desse expediente para vender mais, Ter mais audiência,
como de fato aconteceu com a revista Contigo e com todos os
demais órgãos da mídia que se valeram da
notícia para "faturar algum", como foi o caso
de diversas emissoras de TV que, acostumadas aos baixos índices
de audiência angariaram alguns pontos acima da média
de suas rotinas. O público provavelmente sentiu-se lesado,
ou não? Quem vai pesquisar sua opinião nessas
horas?
"Como
resistir ao sensacionalismo e manter as notícias dentro
de eum equilíbrio mínimo", pergunta a dupla
Kovack e Rosenstiel? (11)
A
resposta deveria ser: seguindo os códigos morais universais
de ética que balizaram os códigos de ética
do jornalismo.
A
tentação, entretanto, é tanta que até
mesmo órgãos de imprensa bastante conservadores
e respeitáveis sucumbem de tempos em tempos, por defenderem
a oportunidade de aparecer e ganhar notoriedade m detrimento
da manutenção dos valores éticos que cercavam
a "busca da verdade de interesse público".
(12) Haveria algumas dezenas de casos a relatar, mas vamos nos
ater ao mais recente, e bastante comentado, ocorrido com o jornal
New York Times - o mais tradicional representante da imprensa
norte-americana - e o seu jornalista-estrela Jayson Blair.
Invenção,
plágio e falsificação
No
dia 11 de maio o diário nova-iorquino publicou matéria
detalhada relatando as fraudes que o jornalista cometera durante
os quatro anos em que trabalhou no matutino. Blair, que entrou
no diário como estagiário e seguiu rápida
ascensão interna - foi acusado de inventar histórias,
plagiar textos de outros jornais e de falsificar declarações
de entrevistados. Blair foi demitido e execrado publicamente
pelo Times e as 600 reportagens de sua autoria foram analisadas
por uma equipe especialmente formada com essa missão.
Dias
depois de anunciar que descobrira que Blair era uma farsa, que
atuava há tanto tempo, provavelmente com a conivência
de alguns editores, o jornal divulgou aos funcionários
novos procedimentos e medidas para evitar fraudes. Isso incluía
checar de forma mais eficiente se os jornalistas de fato saíam
da cidade quando diziam que saíam, pois, pasmem, umas
das fraudes preferidas de Jayson Blair era entrevistar pessoas
de outros estados, descrevendo locais e paisagens, sem nunca
Ter saído de New York City.
Na
mesma ocasião, os editores Howel Raines e Arthur Sulzberger
Jr. reuniram os funcionários e pessoal da redação
para uma reunião em que foram duramente criticados, entre
outras coisas, por suas atitudes arrogantes e pelo distanciamento
com os repórteres.
Vale
comentar que Jayson Blair era tido como protegido pelos editores
já citados, mas em particular por Gerald Boyd, negro
como Blair, por sua rápida ascensão de estagiário
a repórter da prestigiada editoria nacional.
Há
quem firme que Blair foi mantido e teve tanto prestígio,
por ser negro, pois, para o NYT seria um bom marketing social
manter em sue quadro um jovem, talentoso e, pelo menos até
então, promissor jornalista negro.
Há
quem afirme que a maior falha dos editores chefes de Blair fora
permitir que ele usasse indiscriminadamente fontes não
identificadas, que jamais foram checadas posteriormente. Parece
que a medida, checar fontes não identificadas não
integrava as medidas preventivas de fraudes no NYT.
E,
provavelmente, não integram as regras e normas de conduta
de muitos outros veículos. Prova disso está publicada
na coluna do ombudsman da Folha de 20 de julho de 2003, (13)
em que reconhece que o jornal paulistano só agora estava
tomando medidas preventivas para evitar que, com ele, acontecesse
o mesmo que ao seu benchmarketing norte-americano. Ajzenberg
reproduz o comunicado interno à redação
da Folha emitido pela editora-executiva Eleonora de Lucena em
que ela admite logo na primeira linha estar banalizado no jornal
o emprego de informações "off the record".
"É preciso redobrar os cuidados na apuração
e os controles na edição de notícias obtidas
desse modo", diz a nota. "Sempre que solicitados,
repórteres devem comunicar a origem dessas informações
aos seus superiores hierárquicos", prossegue.
O
ombudsman complementa a informação: "(...)
essas observações implicam maior controle, mais
rigor do jornal para consigo próprio - como organismo,
não como uma reunião de individualidades -, no
sentido de tentar reduzir as chances de vir a publicar informações
falsas ou de ser manipulado, sem saber, por fontes pouco confiáveis",
finaliza.
O
jogo do patrão pós-moderno
O
caso Jayson Blair terminou pateticamente com a demissão
dos editores Raines e Boyd e com declarações de
Blair ao jornal New Yorker Observer, por exemplo, acreditando
ter enganado 'pessoas brilhantes do jornalismo'. (14) Diz a
matéria que "ele riu de seus editores idiotas".
Antes, Blair já havia declarado ao Daily News (15) que
havia contratado um agente literário para escrever um
livro e que também pretendia entrar num acordo com uma
emissora de TV.
Para
Alberto Dines (16), Jayson Blair não fez nada de muito
grave: "Blair serviu-se do talento e do sistema para confundir
verdade com inverdade (...) respeitou as regras formais. Jogou
o jogo. (...) oferecia aos chefes quantidade e qualidade sem
confrontar os preceitos elementares. Os eventuais reclamantes
estranharam declarações que não fizeram
ou situações que não aconteceram. Mas não
se sentiram excessivamente afrontados a ponto de cobrar indenizações.
Por isso a farsa estendeu-se por tanto tempo sem acionar os
alarmes", opina.
A
julgar por esse ângulo, a jornalista Ana Carolina não
agiu muito diferentemente do colega norte-americano.
Mas,
a que jogo Dines se refere no texto do site Observatório
da Imprensa? Provavelmente àquele embutido na "mentalidade
pós-moderna" descrita por Kucinscki (17) em "uma
nova Ética....": "hoje vivemos um novo tempo
discursivo, marcado pela negação das utopias e
pela ausência de um padrão ético hegemônico,
exceto no sentido metafísico de que a ausência
de padrões também seria um padrão. Fatores
objetivos contribuíram para a quebra de valores tradicionais."
Ainda
segundo o professor da ECA-USP, as éticas socialmente
constituídas cederam espaço a uma ética
definida em torno de cada indivíduo onde "cada um
tem o direito de pensar e agir como quiser". É também
uma ética de muitos direitos e poucos deveres, onde cada
um tem o dever, antes de tudo de pensar em si mesmo, em seu
projeto de vida. Uma ética em que o dever é definido
como negação do social, como celebração
da individuação ética.
Em
outras palavras, isso significa que uma nova safra de jornalistas,
da qual integram os Jayson Blairs e as Anas Carolinas, entendem
que falar em ética dentro das redações
contemporâneas, ou seguir Códigos de Ética,
não corresponde à realidade, pois os jornalistas
precisam/devem seguir e atender os interesses de quem paga seus
salários e o que a publicidade manda.
Compartilha desta triste constatação, Bill Grauyer
(18). Colunista do Chicago Tribune, em 1983 Grauyer afirmou
categoricamente que "se você vai a seminários
sobre jornalismo e ouve (...) debaterem sobre a ética
e a moral do jornalismo moderno, terá uma idéia
errada. Toda aquela lengalenga não tem nada a e com a
apuração de uma reportagem e o ato de colocá-la
no papel".
E
pior! Grayer resume a ética do jornalismo real em duas
regras básicas: "Consiga a reportagem! Publique-a!".
Ética
X carreirismo
Parece
que foram essas as regras seguidas pela repórter da Contigo
e Jayson Blair, por sua vez, parece ser o legítimo representante
daquilo que Anne Geyer (19) chama de carreirista: "O maior
perigo da atualidade é o carreirismo desenfreado. "Geyer
exemplifica sua preocupação com um depoimento
contundente de um jovem repórter do mesmo NYT há
alguns anos atrás, chamado Seymour Hersh. Ele diz que
violar a segurança nacional em todas as suas reportagens
e não se importar com isso. "sou um jornalista durão",
gaba-se. "Temos o direito de publicar qualquer segredo
que pudermos descobrir. Estou mais preocupado com o Washington
Posto do que com a segurança nacional". Se os "segredos"
que jovens jornalistas, como Hersh, descobrirem forem mesmo
verdadeiros, talvez até valha a pena a infração.
O problema desse tipo de postura é deixar que a ambição
cega impeça de enxergar o limite da manipulação
das fontes, como talvez tenha ocorrido com a jornalista da Contigo
que se deixou levar pelas declarações inconseqüentes
do Sr. Santos.
Por
mais que essa nova geração insista em defender
essa postura pragmática, oportunista e imediatista de
atender às necessidades do patrão porque precisa
trabalhar e, portanto, não pode se recusar a fazer esse
ou aquele trabalho, ou posturas mais agressivas explicitando
claramente que concordam em escrever para vender mais, e, portanto,
atender assim, aos apelos da publicidade e/ou do marketing do
veículo midiático, os jornalistas quer queiram
ou não, gostem ou não, "têm uma obrigação
com sua consciência", afirmam a dupla de "Os
elementos...". (20)
Construindo
um jornalismo honesto
Di
Franco (21), jornalista e professor de Ética Jornalística
na Faculdade Cásper Líbero, entende que "o
jornalismo está virando show business". A pseudo-reportagem
da Contigo comprova. Di Franco, porém, defende os jornalistas
por entender que estes estão "espartilhados pelo
mundo do espetáculo, (...) empurrados para o incômodo
papel de peça descartável em linha de montagem
da ciranda do entretenimento".
Então,
qual seria a saída para a construção de
um jornalismo honesto apesar (e por causa) do sistema? Di Franco
aponta uma trilha nessa emaranhada selva de interesses: "(...)
combater as manifestações do jornalismo declaratório
e assumir, com clareza e didatismo, a agenda do cidadão".
Ou seja, sair em busca daquilo que realmente interessa e é
importante para a sociedade. O professor, representante da faculdade
de Comunicação da Universidade de Navarra (Espanha)
no Brasil, coloca o dedo na ferida, na minha opinião,
que sangrou abertamente na redação do NYT quando
o caso Jayson Blair veio à tona e que, diz respeito à
imensa maioria das redações em todo o mundo: "Quando
editores não forma os seus repórteres, quando
a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando
as pautas não nascem da vida real, quando não
se olha nos olhos dos entrevistados, está na hora de
repensar todo o processo".
Eugênio
Bucci (22) também entende que a responsabilidade ética
deve ser compartilhada pelos editores e proprietários
das empresas de comunicação que "devem incluir
no seu rol de afazeres a formação ética
permanente dos jornalistas, dando-lhes retorno transparente
sobre cada decisão ética e promovendo debates
periódicos sobre o tema, o que inclui a recomendação
de leituras e o apoio a cursos de aperfeiçoamento aos
que têm interesse em se aprofundar. Se essa atividade
é encarada com seriedade e empenho, a decisão
entre Ter ou não Ter um código, ou uma carta de
princípios, mais concisa, é apenas uma decorrência.
Acompanhar e monitorar a cultura ética das equipes é
muito mais vital".
A
impressão que os exemplos deixados por Jayson Blair e
a revista Contigo é que não houve essa preocupação
e não há, por parte dos editores em geral, em
formar eticamente os seus repórteres ou em contratar
repórteres com consciência ética ou de manter
em seus quadros profissionais desse naipe.
No
caso específico do NYT há que se anotar um dado
interessante que demonstra como a visão interna da direção
do jornal mudou de 1989 para cá.
Rushworth
Kidder (23), um jornalista que, a partir de uma pesquisa sobre
temas relevantes para o século 21 organizou o Instituto
de Ética Global - que pesquisa e analisa o tema pelo
mundo todo - durante o Seminário "Ética na
Imprensa: Realidades e Desafios no Brasil", realizado em
Itu (SP, de 17 a 19 de maio de 1996), declarou que os jornalistas
tratam de ética não como algo estranho, mas como
algo que é essencial à própria existência.
E para referendar sua afirmação relata uma pesquisa
feita pela professora de ética Denny Elliot, do Colégio
Dartmouth, que consultou o índice do New York Times de
1969 a 1989 constatando que, nesse período, houvera um
aumento de 400% no número de artigos e reportagens sobre
ética. "Eu asseguro a vocês, como leitor de
longa data do New York Times, que isso não é um
capricho de editores que querem mudar o mundo, mas iniciativa
de editores que sabe, que vender jornal escrevendo reportagens
que o povo realmente quer ler", disse Kidder. Infelizmente
os últimos fatos envolvendo editores do NYT e o repórter
Jayson Blair desmentem essa visão otimista do pesquisador
americano.
Curiosamente,
o mesmo Seminário, cujo conteúdo pode ser acessado
por meio do site do Instituto Gutenberg, traz o resultado parcial
de uma pesquisa (24) sobre Ética e Técnica, que
aparecem dois resultados que refletem o pensamento dos jornalistas
- pelo menos dos que participaram do evento - acerca de inventar
reportagens e plagiar textos.
À
questão: "É comum (no Brasil) um jornalista
inventar informações ou declarações
para melhorar a reportagem", 58% responderam "não"
e 95% responderam não concordar com a prática
caso ela fosse verdadeira. Todavia, "usar idéias
ou palavras de outra pessoa sem citar a fonte", apesar
de contar com 96% de rejeição à prática,
apontou 67% dos pesquisados entendendo ser essa uma prática
comum ao jornalista brasileiro.
Donde
podemos deduzir que, copiar pode; inventar, jamais! Seguindo
essa lógica paradoxal, Jayson Blair estaria num limbo
intermediário entre o Céu e o Inferno, ora em
pecado, ora no paraíso conforme os ditames das necessidades
editoriais e, assim como ele, centenas de jornalistas espalhados
pelo mundo todo vagueiam como zumbis, meio mortos, meio vivos,
divididos e em luta permanente e íntima com suas consciências
vazias de conceitos universais éticos.
Talvez
a solução para o dilema esteja na sugestão
dos jornalistas Kovack e Rosenstiel (25) quando declaram em
seu livro que "todos os jornalistas - da redação
à sala da diretoria - devem ter um sentido pessoal de
ética e responsabilidade - uma bússola moram.
Mais ainda, eles têm uma responsabilidade de dar voz,
bem alta, à sua consciência e permitir que outros
ao seu redor façam a mesma coisa".
Isso
significa que deve haver tanta abertura dentro das redações
dos jornais que os jornalistas possam se manifestar, que possam
recusar reportagens que os comprometam enquanto seres humanos,
abertura, enfim, suficiente para alertar os editores e chefes
de reportagens sobre possíveis decisões equivocadas,
sem que por isso percam seus cargos e posições.
"Somente numa redação onde todos possam emitir
seus diversos pontos de vista as notícias terão
alguma possibilidade de antecipar e refletir, com exatidão,
as crescentes e diversas perspectivas e necessidades da cultura".
Por
fim, a dupla escreve: "Permitir que vozes individuais se
manifestem nas redações torna a administração
de um jornal mais difícil, mas torna as notícias
mais exatas".
Os
jornalistas americanos Kovack e Rosenstiel escreveram a obra
"Os Elementos do Jornalismo - O que os jornalistas devem
saber e o público exigir" -, após série
de pesquisadas realizadas junto a vários jornalistas
dos EUA durante muitos anos. E foram os próprios pesquisados,
em diversas redações, que chegaram a um consenso
sobre qual seriam os elementos fundamentais para se exercer
um jornalismo, no mínimo, honesto:
·
"A primeira obrigação do jornalismo é
com a verdade;
· sua primeira lealdade é com os cidadãos;
· sua essência é a disciplina da checagem;
· seus praticantes devem manter independência de
quem estão cobrindo;
· deve funcionar como um monitor independente do poder;
· deve apresentar um fórum para a crítica
pública e o compromisso;
· deve lutar para transformar o fato significante em
interessante e relevante;
· deve manter as notícias equilibradas e compreensíveis;
· seus praticantes devem Ter liberdade para exercer sua
consciência pessoal.
Quando
conseguirmos colocar em prática, não um ou outro,
mas todos os elementos elencados, aí sim, poderemos nos
sentir mais protegidos quanto aos sarros dos jornalistas e veículos
da comunicação que não respeitam nem levam
a sério seu público.
Penso
que a mudança não virá apenas de dentro
para fora das redações. Deve ser algo em sintonia
fina, com atitudes externas do público assim como um
boicote ético em que as pessoas parassem de consumir
programas sem ética, jornais e revistas sem ética.
Talvez só assim, pegos pelo bolso, os veículos
de comunicação se tornassem instituições
mais sérias e confiáveis, contribuindo verdadeiramente
para a construção de uma sociedade mais justa
e mais feliz. Mas a sociedade precisa começar a se manifestar.
Talvez, os baixos índices de audiência dos programas
sensacionalistas de TV e a queda sistemática da venda
de jornais e revistas em bancas sejam um sinal de que a sociedade
não está assim tão alienada como prefeririam
alguns representantes do poder.
São
Paulo
Julho 2003
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