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Jornalismo
Digital: estratégias midiáticas
Por
Beth Saad*
"No
velho paradigma, usavam-se metáforas arquitetônicas
para falar a respeito do conhecimento. Entre as mais conhecidas,
estão as de 'blocos de construção básicos
de matéria', 'equações fundamentais' e
'princípios fundamentais', entre outras. A própria
concepção dos átomos era idêntica
à dos antigos filósofos gregos, que os viam como
os blocos fundamentais da matéria, tijolos básicos
das estruturas que formam a realidade.
O
novo paradigma mudou a metáfora do conhecimento como
edifício, estrutura, para a rede. Na rede, não
há acima, nem abaixo, não há hierarquias,
nem algo que seja mais fundamental que as outras coisas. Tudo
está interligado e participando dos processos."
(Eduardo Castor Borgonovi, O livro das revelações)
O
livro Estratégias para a mídia digital, de Beth
Saad, Editora Senac São Paulo, São Paulo, 2003,
296 pp. Preço: R$ 40 - começou a ser pensado,
muito intuitivamente, há mais de dez anos, por volta
de 1992. Estava à época no momento de definição
do tema da tese de doutoramento e tinha por objetivo desenvolver
algo que juntasse minha experiência profissional, na área
de gestão estratégica de inovações
tecnológicas, e a acadêmica, nos campos do jornalismo
e da comunicação.
O momento favoreceu e facilitou a escolha.
O
mercado de produção de informações
acabara de passar pela revolução dos computadores
nas redações, e as áreas de captação
e distribuição começavam a vivenciar inovações
tecnológicas: videotexto, fax, Bulletin Board System
(BBS), serviços de informações transmitidos
por ondas de rádio. Havia um campo aberto para pesquisas
e aplicações práticas, já que estas
inovações traziam a idéia de que o processo
de comunicação dominante - a comunicação
de massa unidirecional -1 passaria a conviver, por conta das
novas tecnologias, com outras formas mais individualizadas e
específicas de relação entre receptores
e mensagens.
Ficou
clara, então, a existência de lacunas de ferramental
e de conceitos para os profissionais e proprietários
das empresas de comunicação e informação
tomarem decisões sobre que tipo de informação
oferecer, para qual público, por qual meio e quanto cobrar
por ela. O mercado informativo passava por uma mudança
de ruptura em suas tecnologias de base e o processo analógico
começava sua trajetória de substituição
pelo processo digital.
As
empresas informativas estavam acostumadas a mudanças
incrementais nas tecnologias conhecidas que sustentavam suas
atividades e, desde a invenção da televisão,
era a primeira vez que os publishers se viam diante de decisões
acerca de investimentos radicais na abordagem a mercados desconhecidos,
nos equipamentos e sistemas de produção e distribuição.
Naquela mesma época despontava algo novo, ainda restrito
ao meio acadêmico, chamado internet, uma rede mundial
de computadores interconectados que possibilitava a troca de
mensagens, dados e arquivos entre os usuários, com uma
instantaneidade nunca vista. Uma novidade que rapidamente assumiu
o status de mídia agregada a um sistema de comunicação
e transmissão de dados.
Daí
por diante ocorreu um turbilhão de transformações
que mudaram o patamar de necessidades de informação
e de serviços em toda a sociedade. Surge a era da informação
ou a sociedade da informação, com a internet e,
posteriormente, com a World Wide Web. 2 E o processo de comunicação
se diversifica - de um para um, de um para muitos, de muitos
para um, de muitos para muitos - por meio de um computador conectado
a uma linha telefônica.
Entre
a decisão sobre um tema de tese e a organização
deste livro, a internet foi tomando conta de um sem-número
de setores econômicos e sociais e me vi diante da necessidade
de buscar maior base em estudos e referências na universidade,
resultando num maior envolvimento acadêmico com pesquisas,
orientação e aulas, e numa atividade profissional
mais focada no mercado de informação digital.
Assim, além da tese de doutoramento, o desenvolvimento
de uma pesquisa entre 1996 e 2001, para entender a realidade
do mercado de informação com a inovação
da internet, gerou uma tese para concurso de Livre-Docência
junto ao Departamento de Jornalismo e Editoração
da Escola de Comunicações e Artes da USP. É
da agregação de todas estas atividades dos últimos
anos que chegamos ao livro.
A
escolha do mercado de informação e comunicação
como foco para o estudo de casos foi motivada não só
pelo vínculo com essa área na academia, mas pela
evidência de que este setor seria (e hoje constatamos
que é) o mais impactado pelas novas tecnologias, já
que informação é, ao mesmo tempo, sua matéria-prima,
seu principal produto e sua base de sustentação.
E informação e seu transporte eram o cerne das
novas tecnologias de informação, sendo a web o
carro-chefe. Além disso, o segmento informativo, da mídia
em geral, sempre teve um papel de formador de opinião
e de reforço da identidade nas sociedades, papel que
se tornou mais forte quando ele foi potencializado pelas tecnologias
digitais.
Estudar
os impactos de uma inovação tecnológica
de ruptura e propor formas de atuação empresarial
adequadas para fazer desta inovação um componente
de competitividade exige uma boa dose de adaptabilidade de pesquisadores,
estrategistas e empresários. Fazer isto para o campo
da comunicação e informação acrescenta
mais um componente de adaptabilidade: os próprios conceitos
de informação jornalística e comunicação
interpessoal e corporativa já trazem como premissa um
fluxo bastante veloz de troca de mensagens. Falamos, portanto,
de discutir um ambiente em constante mudança: tecnológica
e de produtos e serviços. Um ambiente que vivencia velocidade
e instantaneidade.
Assim,
qualquer estudo no campo das tecnologias digitais, especialmente
associadas à comunicação e à informação,
deve considerar o caráter não definitivo das práticas,
a demora na consolidação de proposições,
modelos e conceitos, e a transitoriedade das decisões.
Portanto, este livro já sai publicado com uma certeza:
muitos dos casos descritos passaram por transformações
significativas durante o processo de levantamento e análise
e a edição do conteúdo. Esta constatação
não invalida nossas propostas. Pelo contrário.
Demonstra trajetórias e estratégias, consolida
conceitos e modelos, e serve de referencial para projetos em
curso ou futuros.
Um
outro ponto bastante importante para o leitor é que,
apesar do foco mais específico para o setor de informação
e comunicação - as empresas informativas -, as
idéias apresentadas e os modelos estratégicos
são facilmente transpostos para outros segmentos, uma
vez que informação e relacionamentos no ciberespaço
são similares, independentemente do mercado. O status
atual de uso das tecnologias digitais coloca a informação
no centro das decisões empresariais exigindo, portanto,
uma nova postura com relação à configuração
das estratégias. Os conceitos básicos são
coletivos.
Algumas
relações de idéias e conceitos estão
expressas ao longo dos capítulos que consideramos a base
para todo o cenário de interações e trocas
digitais que hoje vivenciamos: tecnologia e informação,
estratégia e informação, negócios
e informação, comunicação e informação,
relacionamentos e informação. Estes conceitos
resultam de uma compilação de diferentes autores
dos campos da sociologia, comunicação social,
tecnologia da informação, gestão empresarial
e arquitetura. Uma reunião de idéias às
quais adicionei comentários decorrentes da experiência
prática e da convivência com diferentes empresas
informativas.
De
todo o conjunto de fontes apresentadas neste livro, alguns autores
exerceram um papel influente. Uma das inspirações
mais fortes na concepção de toda minha trajetória
de atividades profissionais e acadêmicas é o sociólogo
Manuel Castells. O autor catalão propõe uma interessante
visão das transformações recentes de nossa
sociedade: as maiores tendências de mudanças em
nosso mundo novo e confuso são afins e podem ser entendidas
de forma inter-relacionada.
Castells também define uma posição com
relação à tecnologia que assumimos e transcrevemos
neste livro:
Devido
a sua penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana,
a revolução da tecnologia da informação
será meu ponto inicial para analisar a complexidade da
nova economia, sociedade e cultura em formação.
Essa opção metodológica não sugere
que novas formas e processos sociais surgem em conseqüência
da transformação tecnológica. É
claro que a tecnologia não determina a sociedade. Nem
a sociedade descreve o curso da transformação
tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive criatividade
e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descobertas
científicas, inovação tecnológica
e aplicações sociais, de forma que o resultado
final depende de um complexo padrão interativo. Na verdade,
o problema do determinismo tecnológico é infundado,
dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não
pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas.
3
Esse
diálogo entre sociedade e tecnologia é perene
na história da humanidade, condutor de nossa própria
evolução e, no caso desta publicação,
construímos um pequeno recorte da evolução
tecno-social ocorrida com o advento da internet aplicado ao
campo da informação e da comunicação.
Centramos o conteúdo no relato e na compreensão
das formas de apropriação que as empresas informativas
criaram para utilizar a rede mundial de computadores em suas
operações. Os capítulos 1 e 2 abordam diferentes
posicionamentos sobre o papel da tecnologia no mercado de produção
da informação e também nos outros segmentos
econômicos que utilizam a informação digitalizada
como peça-chave para suas atividades.
É
nesse contexto temático que evoluímos para a discussão
de aspectos estratégicos e negociais. O uso da internet
pelo mercado informativo teve como premissa o entendimento de
que a grande rede surgia como mais uma mídia e, como
tal e similar aos demais meios de disseminação
de mensagens, deveria resultar num negócio lucrativo.
Ficaram em segundo plano os aspectos mais significativos das
redes digitais de comunicação e informação:
uma tecnologia bidirecional que coloca produtor e receptor da
informação no mesmo patamar; que possibilita diálogos
interpessoais e intergrupais sem a intervenção
do produtor da informação; com potencial de uso
não apenas de distribuição e captação
de informações, mas também de gerenciador
de dados e criador de sentido para grupos de usuários
de qualquer porte.
O
capítulo 2 foca diretamente o lado estratégico
e gerencial da mídia digital, e o capítulo 3 discute
casos reais de empresas de mídia internacionais - New
York Times Co., Tribune Co., Financial Times e AOL Time Warner
- e de seus pares nacionais - Grupos Estado e Abril, UOL e Globo.com.
Os dois capítulos giram em torno de alguns questionamentos:
Esse é um negócio viável e lucrativo? É
possível integrar a operação digital ao
processo operacional rotineiro da empresa? Existem modelos específicos
para configuração estratégica no mundo
digital? Como os grandes da mídia agiram estrategicamente
no auge da internet, até o final de 2001?
O
capítulo 2 não oferece respostas definitivas e
fechadas, mas apresenta um conjunto de modelos de diferentes
fontes que vinculam definitivamente a necessidade de uma postura
estratégica na empresa como um todo, para que uma operação
digital tenha possibilidade de sucesso. Não indico qual
é a melhor estratégia, pois ela depende de um
bom número de aspectos e condições que
variam de empresa para empresa. O capítulo 3 reforça
com a prática essa impossibilidade de receitas prontas
quando falamos de operações internet.
Acredito
que evitar estratégias fechadas e business plans extremamente
rígidos é a grande recomendação
que apresento no livro. Uma opinião que tem eco em autores
conhecidos e reverenciados no mercado, como Michael Porter,
o guru do conceito de vantagem competitiva. Para ele, o status
da internet no século XXI deixa de ser o bicho-de-sete-cabeças
propalado por toda a velha "nova economia" e passa
a constituir-se como um item-chave na construção
de estratégias empresariais.
Porter
rompe com a separação entre operação
digital e operação tradicional: É chegado
o tempo de percebermos a internet com clareza. É preciso
sair da retórica de termos como "indústrias
internet", "estratégias de e-business"
e "nova economia" e olhar para a internet exatamente
como ela é: uma alavanca tecnológica - um poderoso
conjunto de ferramentas que podem ser utilizadas, com sabedoria
ou não, em praticamente qualquer mercado e como parte
de qualquer modelo estratégico. [...] Ao contrário
das vozes correntes, a internet não é elemento
destrutivo para a maioria dos mercados e respectivas empresas.
Raramente ela anula as forças de competição
em um mercado.
Freqüentemente,
a internet valoriza ainda mais estas forças. E, à
medida que mais e mais empresas assumam a tecnologia internet,
ela própria será um fator neutro na busca de vantagens
competitivas. Expressivas vantagens competitivas emergirão
de forças tradicionais como produtos exclusivos, conteúdo
proprietário e atividades diferenciadas no mercado físico.
A tecnologia internet tem a capacidade de reforçar estas
vantagens tradicionais, mas não tem condição
de suplantá-las.4
O
último capítulo - capítulo 4 - assume integralmente
a opção pela integração da internet
como atividade normal para qualquer empresa do século
XXI e discute como as empresas dedicadas à produção
da própria informação podem valer-se deste
diferencial.
O
primeiro conjunto de diferenciais de competitividade para empresas
informativas a ser absorvido discute o potencial da internet
como meio formador de conhecimento e a adequada exploração
das características da tecnologia digital - a hipermídia
e a interatividade. As idéias construídas pelos
pesquisadores do MediaLab do MIT, liderados por Walter Bender,
e as idéias de Jack Fuller, jornalista e alto executivo
do grupo de mídia norte-americano Tribune Co., foram
decisivas para entendermos o potencial da internet como construtora
do conhecimento coletivo. As empresas informativas assumem um
papel de extrema importância no mundo digital e devem
exercer esse papel quase que incondicionalmente.
Estabeleci
como segundo conjunto de diferenciais competitivos para produtores
de informação digital uma postura mais flexível
e dinâmica com relação à construção
de estratégias de atuação. Procurei criar
condições para que os leitores se instrumentalizassem
com alguns procedimentos e práticas que sustentassem
suas decisões gerenciais sobre internet. Procurei nos
diferentes caminhos das ciências humanas aqueles que se
entrecruzavam e que tivessem uma identidade com o dia-a-dia
de quem produz e de quem consome informações.
Assim,
encerro este livro com a apresentação e adaptação
dos procedimentos e práticas adotados pelo campo da arquitetura
para instrumentalizar todos os envolvidos na configuração
de estratégias empresariais que incorporem a internet
como componente-chave. Para isso, apresento inicialmente uma
discussão acerca da desconstrução dos aspectos-âncora
da empresa informativa, para em seguida reconstruí-la
estrategicamente por meio de quatro passos ou etapas que refletem
as etapas de trabalho do arquiteto.
Esta
proposta de criação de um posicionamento estratégico
compatível ao status atual da internet inspirou-se na
arquitetura por conta de um item decisivo: não existe
meio digital sem o ser humano. Todos sabemos que o verdadeiro
arquiteto cria o melhor projeto a partir de sua sabedoria em
agregar os fatores do meio ambiente, as necessidades dos seres
humanos que interagem nesse ambiente e a sua criatividade para
desenhar o espaço adequado de agregação.
Assim também ocorre com a internet: não existe
informação digital sem usuário, e este
é um ser humano de reações imprevisíveis
e muito distante das máquinas.
Tenho
claro que, com estas propostas, abrem-se um sem-número
de possibilidades para quem estiver envolvido com internet e
informação neste início de século
XXI .
Espero
que todos tenham uma boa leitura.
*Beth
Saad é Coordenadora
de Pós-Graduação no Departamento de Jornalismo
da ECA-USP.
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