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Artigos


As luminárias do medo:
jornalismo e violência no Rio de Janeiro

Por José Amaral Argolo

Cidade dos Grandes Postes de Luz.

Àqueles que, junto das janelas localizadas nos pavimentos mais altos dos edifícios do centro comercial e financeiro do RJ aproveitam o frescor da brisa, recuperam-se do esforço dispensado durante o dia de trabalho ou simplesmente deslocam o foco das suas atenções para a ampla área verde chamada Parque do Flamengo - riscada em sua extensão por pistas de alta velocidade -, ainda hoje impressionam, ao anoitecer, pairando sobre os milhares de automóveis que seguem na direção da Avenida Perimetral ou rumo à Zona Sul, os fachos de vapor de mercúrio semelhantes a imensos abajures translúcidos e irradiados, todos, de uma mesma altura ao longo daquele belíssimo jardim desenhado por Burle Marx 1 e criado durante a administração do sr. Carlos Lacerda como Governador do Estado da Guanabara.

Cidade dos Grandes Postes de Luz.

Era assim, com estas palavras, que, no início dos anos sessenta, os turistas estrangeiros - principalmente norte-americanos e britânicos, identificavam a muy heroica y valerosa ciudad de São Sebastião do Rio de Janeiro, admirada por todos que aqui chegavam e que, enquanto passeavam descontraídos por aquela imensa área verde segura e protegida por duplas de PMs carinhosamente chamados de Cosme e Damião 2, observavam ao longe - seja sob o sol ou à meia-luz do crepúsculo - o duplo cartão-postal legado pela natureza ao povo carioca: o Pão de Açúcar e o Corcovado.

Na Cidade dos Grandes Postes de Luz, naquele tempo do qual me recordo tão bem, seria simplesmente incogitável a hipótese da criação de uma associação criminosa autoproclamada Falange da Lei de Segurança Nacional, rebatizada depois como Falange Vermelha da Ilha Grande e, finalmente, Comando Vermelho. Nada disso! Os bandidos eram somente bandidos com nomes e apelidos exóticos, pouco ou quase nenhum glamour: José Miranda Rosa, o Mineirinho, Micuçu, Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, Buck Jones, Neném Fantasma, Miguelito, o Rei dos Impalas, Jorge da Donga, Sérgio Guaranys Vladimirof Saulos, o Grande, Milton Thiago, o Cabeção, Sebastião Benedito Valério, o Caveirinha, Alfredo Gonçalves Alves, o Alfredo Dedinho, Bira Morfético, Manoel Soares dos Santos, o Sombra etc, todos eles mortos em confrontos com a Polícia pouco depois de citados nas páginas dos jornais.

Esta última, sim, proporcionava ao imaginário coletivo personagens e episódios heróicos, como as façanhas realizadas pelo detetive Perpétuo de Freitas - assassinado em uma birosca na Favela do Esqueleto(onde hoje está localizado o pavilhão principal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) durante uma discussão com outro policial, Jorge Galante (este, morto a tiros, muito tempo depois, durante uma operação realizada pela Delegacia de Entorpecentes); Odilon Castellões Moreira César; Aníbal Beckmann, o Cartola e seu parceiro Hélio Vígio; Milton Le Cocq, Péricles Gonçalves, Mauro Magalhães, Godofredo César de Matos, Rogério Mont Karp etc, homens valentes e dotados de incontestável autoridade entre os colegas.

Com o decorrer do tempo, e por intermédio de um estranho e quase imperceptível processo de desglamurização (muito especificamente nos diários populares e de grande circulação), a atuação policial foi deslocada para um espaço secundário na mídia impressa. Bravura, zelo e dedicação cederam lugar, como se impelidas no sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio, às histórias em que pontificavam a audácia e a organização dos delinqüentes.

Esse período ficou notabilizado nos órgãos de difusão graças às ações violentas e bem sucedidas do bando chefiado por Liéce de Paula Pinto, o Cão Danado, e integrado, entre outros, por Lúcio Flávio Villar Lírio, seu irmão Nijini, o cunhado destes, Fernando C. O., Rivaldo Carneiro, o Martha Rocha; e outro grupo igualmente famoso, sob o comando de Antonio Branco e seus asseclas, dentre os quais Horroroso etc; como contraponto a isso, os diários destacavam as operações implementadas pelos militares contra as facções da Esquerda Armada.

Naquela etapa emblemática e turbulenta da História do País, seria realmente incogitável supor que, de um esboço de associação primária dos presos políticos semi-isolados do coletivo encarcerado no antigo Presídio Cândido Mendes (Ilha Grande, onde, entre outros adversários do Sr. Getúlio Vargas durante o Estado Novo, esteve recolhido o escritor Graciliano Ramos), menos de duas décadas após surgiria a maior e melhor aparelhada organização criminosa no Estado do Rio de Janeiro.

'lançaram uma rosa sobre o cadáver
e a rosa não virou pedra...'

(Waldemar das Chagas, jornalista )

As lembranças que procuro reproduzir (com o auxílio dessas anotações) são as de um repórter genuinamente carioca, já encanecido e testemunha de algumas histórias pitorescas da crônica policial. Alguém que, sem descuidar da vida acadêmica, ainda exerce a profissão de jornalista pelas ruas da cidade; que, desde o início dos anos setenta, vem acompanhando com olhar agudo centenas de episódios definitivamente incorporados ao imaginário popular; que trabalhou lado-a-lado, dia após dia, com algumas lendas-vivas da reportagem e, por extensão, das corporações policiais; que entrevistou em primeira-mão muitos ícones do submundo - quase todos mortos depois em confrontos com a Polícia ou justiçados por bandidos rivais.

Assim, por exemplo, com José Carlos Gregório, o Gordo; José Lourival Siqueira Rosa, o Mimoso - bem sucedido ex-jogador de futebol na Bélgica; Miguel Ângelo Amaral Amarijo (Peruano); Fernando C.O, Silvan Canuto Lemos, Joel Bombeiro, Dominguinhos Sete Dedos; Francisco Viriato, o Japonês; Severino Teodo, José Carlos de Carvalho, o Carlinhos Gordo, José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha (e seu irmão Paulo Maluco), Antonio Fernando Danho e William de Souza Lima, o Professor (os cinco últimos milagrosamente ainda vivos!), e tantos outros... inclusive lideranças comunitárias, como Zé do Queijo (Rocinha), cujas trajetórias, repito, terminaram abruptamente em meio a disparos de armas de fogo, estocadas desferidas em profusão numa escura galeria de presídio, ou espancados e estrangulados com cordas de náilon no interior dos cubículos por outros presos mais fortes e sagazes (como o fizeram Júlio Augusto Diegues, o Portuguesinho e Lobisomem com dois rivais adormecidos em plena carceragem da antiga sede da Divisão de Roubos e Furtos, em Benfica, Zona Norte).

'Morrer é um acidente de percurso...'

A Cidade dos Grandes Postes de Luz seria tão-somente uma imagem de ficção nos anos cinqüenta, quando desembarcou no Cais Pharoux o pequeno contingente precursor da máfia espanhola e, à meia-distância daqueles homens atarracados, discretos, habilidosos e ultra-violentos (como se soube depois), desceram pesados sacos de lona reforçada contendo uma pasta de coloração branca-suja chamada cocaína, euforizante que chegou a ser comercializado livremente nas farmácias da cidade, principalmente na Zona Sul, onde a boêmia alcoolizada tentava dissipar os estragos após as noitadas com ampolas de Necroton. Aliás, era sempre possível encontrar alguém durante as madrugadas que, generosamente, pagava uma rodada de injeções para todos. Solução dolorida, porém eficaz.

Um pequeno registro à guisa de complementação:
Maconha (preto, na gíria de hoje) era consumida nas favelas - quase quilombos - do Centro e das zonas Sul e Norte, principalmente. Começando, é claro, pelos morro próximos do coração financeiro da Cidade. Maconha, dizia-se, era coisa chulé, pé-de-chinelo, sandália-de- couro-velha. A cannabis sativa conquistou consumidores junto à classe média somente nos anos sessenta, em pleno agito do movimento hippie. Maconha e outros psicotrópicos eram repassados por varejistas do tráfico, originários, alguns, da burguesia tupiniquim, possivelmente ainda vivos e alçados ao status simbólico de respeitáveis chefes de famiglia (exatamente assim, com esta grafia, à italiana).

Vinte, trinta anos antes da onda lisérgica dos sixties, os ritmos da noite carioca eram embalados pelo conhaque, uísque falsificado, rum com Coca-Cola e - dependendo do dinheiro armazenado nos cofres de parede - caríssimas garrafas de absinto importadas da Ásia e do Extremo Oriente.
Cachaça, Pau-Pereira e Rabo de Galo eram vendidos em todos os botequins, principalmente na região da barra-pesada: Lapa, Zona do Baixo Meretrício (na época semi-oculta por tapumes no lado esquerdo da Avenida Presidente Vargas, no sentido de quem ia para a Praça da Bandeira -atualmente, todo aquele quadrilátero de casas foi demolido e transformado no conjunto de edificações modernas denominado Teleporto do Rio. Quanto à chamada Zona, foi rebatizada com o delicado apelido Vila Mimosa e transplantada para o início da Radial Oeste, à direita, enquanto as demais damas da noite continuaram atuando nos cabarés da Lapa, da Praça Mauá e inferninhos de Copacabana.

Sem violência, quase
'...Tá vivo,
tá morto,
tá tudo igual'

Os diários registram que, na República Velha, bem antes de os exércitos de Hitler e Stálin se confrontarem, os mapas estatísticos do Distrito Federal registravam baixíssimos índices de violência. De vez em quando as manchetes dos diários apresentavam os resultados das ações praticadas pelo delinqüente conhecido como Mão Negra, ladrão e assassino logo retirado de circulação. As pessoas viviam uma atmosfera mais cordial. Em que pese o entrechoque das ideologias e os massacres sem paralelo observados na Europa e Extremo Oriente durante a Segunda Guerra Mundial (1937-1945), na Cidade Maravilhosa, os bairros-cápsulas onde viviam os mais ricos funcionavam como compartimentos estanques nessa gigantesca embarcação chamada metrópole.

Os crimes de morte, por exemplo, eram quantitativamente poucos. Aconteciam, é claro, mas sem muita reverberação na Imprensa. Ora um ladrão era encontrado sem vida no sopé de um morro, ora um valente com lenço de seda no pescoço - recurso utilizado para sobreviver aos golpes de navalha - acabava preso pela Polícia. Época, lá pelos anos quarenta, em que o facínora apelidado Carne Seca brincava, segundo ele próprio, de salsa de tomate com os passageiros dos bondes.
Carne Seca esperava que um bonde repleto de passageiros se aproximasse de onde ele estava, sacava a navalha Solingen, esticava o braço e cortava aqueles infelizes que voltavam para casa após o trabalho e viajavam dependurados nos estribos dos vagões. .

'...e, na Baixada, um silêncio
mortal após o anoitecer'

Um corte no tempo para que se faça uma retrospectiva do abandono que trouxe o medo às vilas e comunidades dormitório dos trabalhadores. Começaremos pela Baixada.

O que se compreende por Baixada Fluminense é, na verdade, uma imensa planura integrada por diversos municípios, que se projeta das margens do Rio Meriti (na divisa da Pavuna com o Município de São João de Meriti), a Itaguaí e, no sentido oposto, até o outro lado da Baía da Guanabara.
Tentaremos oferecer aos leitores uma descrição simplificada.
Se olharmos o mapa na direção das montanhas da Serra dos Órgãos rumo à cidade de Teresópolis, a região estende-se de Duque de Caxias (e seus tantos bairros com nomes sugestivos: Campos Elíseos, Imbariê, Gramacho, Jardim Gramacho, Vila São Luiz, Corte Oito, Parque Araruama, Jardim Primavera, Saracuruna); a Magé (localidades de Praia de Praia de Mauá, Piabetá, Santa Dalila, Suruí, Citrolândia, Parada Angélica, Parada Ideal, Parada Modelo) e, desta, à recém-emancipada Guapimirim; se a opção se der rumo a Petrópolis, alcança Capivarí, Nova Campina, Pau-Grande (onde nasceu o jogador de futebol Mané Garrincha), Xerém, Raiz da Serra , Conceição do Rio do Ouro...

Imaginando que o roteiro margeie a Rodovia Presidente Dutra, abrange Nilópolis, Belford Roxo, Queimados Nova Iguaçu e seus distritos: Miguel Couto, Austin, Presidente Juscelino, Areia Branca, Vila de Cava, Tinguá (esta, no rodapé da Serra da Tiririca, onde ainda existem em liberdade alguns exemplares dos grandes felinos brasileiros, bem como, para interesse dos pesquisadores, as ruínas de um antigo cemitério de escravos). Sem esquecer, é claro, Itaguaí.

Se a visão estiver focada para o outro lado da Baía da Guanabara, muito além da estrada Magé-Manilha, alcança São Gonçalo, Itaboraí, cruza Tanguá e se prolonga até os limites de Rio Bonito. Enfim, uma ampla extensão de terra que permitiria aos administradores bem intencionados o planejamento e a materialização de bairros-modelo.

Mas não foi isso que aconteceu, como registra a História.
Vamos aos fatos, a algumas linhas que demarcam as etapas do abandono e, ao longo de décadas, contribuíram para alavancar os índices de Criminalidade no Estado.

No final do século XIX e primeiros anos do século XX, a então diminuta população da Baixada foi impactada por um estranho fenômeno: o inesperado e repentino fim das plantações de laranjas e outras frutas cítricas, base da riqueza da região e principal produto de exportação, principalmente para a Europa.

Essa imensa área de pomares e pastagens, rica e irrigada, tornou-se de repente improdutiva devido à proliferação de um inseto originário, segundo se diz, do continente africano; inseto este que se adaptou rapidamente ao nosso clima e aqui chegou nos porões das embarcações utilizadas no transporte de frutas e outras mercadorias perecíveis.
Todavia, não foi unicamente esta a causa do colapso econômico daquela região. Bem orientada, a lavoura até poderia ter sido redirecionada para outras culturas importantes (mandioca, batata, milho, hortaliças etc), sem maiores prejuízos extensivos para a pecuária.

Tardio ponto final de um modelo econômico perverso que matou milhões de seres humanos, a Abolição da Escravatura contribuiu significativamente para o abandono daquelas terras. Muitos proprietários de fazendas e chácaras deixaram para trás o que haviam recebido como herança e, despojados da mais-valia representada pela força de trabalho gratuita e que muito produzia, mudaram-se para a Capital. No seu lugar continuaram morando em pequenas glebas arrendadas algumas famílias de escravos, cuidando do que sobrara das plantações. De início foram estes os mais felizes na escolha.

Quanto aos demais, quer tenham sido alforriados ou beneficiados pelas leis do Sexagenário/Ventre Livre, como já estavam desobrigados das tarefas diárias e não visualizavam quaisquer perspectivas no que tange à melhoria do padrão de vida, optaram, também, pela mudança para a Capital onde construíram casas de madeira e saibro nas encostas dos morros da cidade.

Eram casas desconfortáveis, muito pobres, mas dispunham, quase todas, de um pequeno quintal onde plantavam couve, bertalha, batata-doce, aipim, abóbora, milho e cuidavam de pequenas criações. Vem daí o registro dos nomes de alguns locais nessa fotografia imaginária que tento descrever: Rocinha, Serrinha, Mangueira, Cotia, Tuiuti, Cachoeira Grande, Tanque, Dendê, Freguesia, Fubá, Querosene etc...

Avançando um pouco mais e sem muita preocupação com qualquer hieraquia nesse roteiro pitoresco e - por certo - deslocado do cenário da Baixada, destaco o Caminho do Bem-Te-Vi, no canto esquerdo da Praia Vermelha, bordejando o Morro da Urca até a encosta do Pão de Açúcar. Uma curiosidade: essa denominação não está relacionada ao pássaro canoro que todos conhecem; mas a um cidadão português cujo nome verdadeiro perdeu-se no tempo e acabou conhecido como Bem-te-vi... um desertor que , segundo antigos moradores do bairro, conseguira escapar aos combates durante a Segunda Guerra Mundial. Aliás, exatamente ali, no Morro da Urca, local privilegiado da paisagem carioca, também fora construída uma pequena favela com três dúzias de barracos, que acabou sendo removida pelo Exército no final dos anos setenta.

Após a Proclamação da Republica (1889), muitas dependências do Governo foram transferidas para prédios recém-edificados no Centro da Cidade Por sua vez, o até então aristocrático bairro de São Cristóvão transformou-se numa imensa área semideserta. Quanto aos bolsões da classe média alta, remanescentes do Antigo Regime e que procuravam residir nas cercanias da Corte de Dom Pedro II, deslocaram-se, principalmente, rumo ao Catete, Glória, Flamengo e, dali, para os areais ornados por pitangueiras do Leme até o Leblon. Seguindo essa mesma linha, os mais pobres decidiram-se, também, por construir e ocupar encostas dos morros próximos ao Centro Político e Financeiro (Candelária, Providência, Pedra Lisa... a exceção ficou por conta do Morro da Conceição, bem perto da Praça Mauá, onde tinha sido instalado o quartel do Centro de Cartografia do Exército).

Em seguida, as encostas do Pasmado, Vidigal, Dona Marta, Cantagalo etc foram ocupadas desordenadamente por uma infinidade de casebres habitados pela massa de trabalhadores subempregados e suas famílias. Gente humilde, preocupada em chegar cedo nos locais de trabalho: padarias, açougues, mercearias, curtumes, tabacarias, farmácias, feiras-livres... além de uma infinidade de outras ocupações informais, dos engraxates às lavadeiras, dos moços dos estábulos (posto que havia muitos estabelecimentos do gênero) às equipes que integravam as guarnições das carroças destinadas à distribuição do leite (vacas-leiteiras como eram chamadas) e aos serviços domésticos para as novas sinhás da República.

Quanto à malandragem: os desocupados e afins, mantinham-se ativos nas ruelas próximas ao Cais do Porto, às estações de trem nos subúrbios, às casas de tolerância, aos cabarés e botequins de má-fama. E não havia muitas outras alternativas, porquanto o aparato policial exercia a sua autoridade com muita eficácia e violência. Mais tarde, durante o Primeiro Governo Vargas, notabilizaram-se a tropa de choque denominada Polícia Especial (os bonés vermelhos) e o Socorro Urgente, unidades de pronto-emprego para situações emergenciais.

Enquanto no coração da metrópole a atuação das autoridades policiais era exemplar e confiável, na Baixada Fluminense e estendendo-se desta ao interior do antigo Estado do Rio de Janeiro, persistia o abandono, a insegurança e - a partir dos anos vinte - desenvolveu-se um incontrolável inchaço populacional derivado da vinda de dezenas de milhares de migrantes nordestinos pressionados pela seca, desesperados pela fome e desemprego. Essas pessoas humildes acreditavam na hipótese segundo a qual, com muito sacrifício, conseguiriam conquistar um lugar ao sol no mercado de trabalho do Distrito Federal.

A estratégia era sempre a mesma: investiam tudo aquilo de que dispunham para custear a longa viagem nos velhos caminhões apelidados Paus de Arara. Estes, muitas vezes, acabavam deixando pelo caminho cadáveres mutilados como produtos da imprudência na direção e da péssima conservação dos veículos.

Aos leitores repasso uma imagem-forte que trago da infância, quando em viagem de passeio até a Minas Gerais. Era um caminhão tipo basculante parado nas imediações de Areal, repleto de corpos de migrantes arrebentados em um acidente próximo à divisa com o Estado do Rio, percurso na época obrigatório devido à inexistência de uma rodovia litorânea.

As promessas feitas àquelas famílias de retirantes enchiam-nas de esperanças em relação a uma nova "terra prometida", com água à vontade, perspectivas de trabalho próximo das suas casas e um ponto final na miséria atávica. De todas essas promessas, apenas a segunda correspondia, de fato, à verdade. A Baixada Fluminense é banhada por muitos rios, canais e riachos. De memória cito os rios Meriti, Magé, Suruí, Corujas e o Canal Caioaba, que cortam a região e deságuam na Baía da Guanabara.

Afastados, pois, da sede e da fome, esses milhares de migrantes somaram-se aos contingentes de famílias de ex-escravos fixados na região e não viram chegar, de maneira lenta e quase imperceptível, o espectro da violência.
Ainda estava longe a fase das grandes obras públicas realizadas na administração do Sr. Carlos Lacerda, obras estas que modificariam a capital do Estado da Guanabara e a transformariam na Cidade dos Grandes Postes de Luz.

Misturados àquelas levas de migrantes, na quase totalidade gente prestativa e de boa-fé, também chegaram remanescentes do coronelismo dos sertões, das forças da pistolagem patrocinadas por políticos e fazendeiros.

Uma filmagem hipotética feita na época mostraria aos espectadores pequenas localidades próximas umas das outras, em quase tudo copiadas das cidadezinhas do Nordeste. Ali, dois ícones da região das secas: o padre Cícero Romão e seu protegido Virgolino Ferreira (morto a tiros em 1938, na Grota de Angicos, Sergipe) continuavam presentes no imaginário daquelas pessoas humildes.

Essa hipotética memória fílmica mostraria, também, que os poucos sobreviventes das disputas a tiros e combates com lambedeiras na caatinga, instalaram-se aqui e acolá na Baixada Fluminense e formaram grupos cujos negócios variavam da proteção/extorsão à consolidação do poder político.

Síntese das turbulências

Os anos vinte, trinta e quarenta foram sacudidos por graves convulsões internas e externas. Eis um resumo:

No Brasil:
Movimento Tenentista (Revolta dos Dezoito do Forte), Marcha da Coluna Miguel Costa - Luis Carlos Prestes), fim da República Velha, Revolução Constitucionalista de 32, Intentona Comunista de 1935, decretação do Estado Novo (1937-1945), deposição de Getúlio Vargas e sua recondução ao Poder, em 1950.

No plano internacional, destacam-se:
Marcha dos Camisas Negras de Benito Mussolini sobre Roma, Putsch da Cervejaria (Munique, 1923), eleição de Adolf Hitler como Chanceler do Reich (1933), Guerra Civil Espanhola, ocupação militar da Áustria (1936), da Renânia e da Tchecoslováquia (1938), Pacto Ribbentrop-Molotov, também em 1938, invasão da China pelas tropas japonesas (1936), Segunda Guerra Mundial (1939-45), Conferência de Yalta (1948), início da Guerra-Fria.

Em nosso País a década de cinqüenta foi igualmente caracterizada por uma seqüência de fatos que mereceram ampla reverberação na Imprensa.
Ei-los: atentado a tiros na Rua Tonelero (Copacabana) contra o jornalista Costa Lacerda, suicídio do presidente Getúlio Vargas, Putsch Militar de 11 de novembro de 1955, rebeliões de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), posse conturbada do Sr. Juscelino Kubitschek na presidência da República, inauguração de Brasília nova Capital Federal etc.

Durante esse longo hiato, ou seja: de 1920 a 1960 aproximadamente, a Baixada Fluminense foi transformada numa terra de ninguém, num imenso campo de desova para as vítimas dos grupos de extermínio abrigados, ou não, no interior das corporações policiais. Estes, para não inflacionar as estatísticas da criminalidade tanto no Distrito Federal como no Estado da Guanabara, jogavam os cadáveres nas matas, valões e rios que banham aquela área (episódios que contribuíram para a fixação de lendas sobre Belford Roxo, apontado equivocadamente como a região mais violenta do mundo).

'A informação é falsa', disse-me certa vez, indignado, o delegado Odilon Castellões Moreira César - durante muitos anos responsável pelas delegacias na área. O Dr. Odilon, registro, foi um dos mais corajosos e implacáveis policiais da sua geração, além de respeitado porquanto atuava na vanguarda das equipes que com ele trabalharam, sempre com sua carabina Winchester calibre 44 ao alcance das mãos.

'Vento que vem de lá
sopra daqui também...'

(Do cotidiano)

Corte para um novo tempo.
Se, como assinalado, a Baixada Fluminense foi transmutada em campo de abandono, a Guanabara também sofreu com a mudança do Distrito Federal para Brasília, em pleno no Planalto Central do País.

Após a República Velha, o Rio transformou-se, paulatinamente, numa espécie de oceano para os criminosos de todo gênero. Num primeiro momento predominaram os contrabandistas, à semelhança do todo-poderoso Zica, Rei da Praça Mauá e das moambas que chegavam em caixotes repletos de tecidos de qualidade, bebidas idem, relógios...

Diz-se, aqui e acolá, que quase à mesma época aflorou à superfície do noticiário, a segunda geração do baronato do jogo-do-bicho, dos contraventores (até então discretos, atuando longe dos holofotes) com imenso prestígio entre os segmentos mais humildes da população e que, já como herdeiros e sucessores nos anos sessenta, mostraram as garras afiadas agindo com muita violência e protegidos por uma fração do aparato policial a quem beneficiavam com propinas e outras benesses - tais como bebidas e mulheres nos cabarés, passagens aéreas e o chamado "da galinha" (isto é, um pequeno adicional em dinheiro para os finais de semana).

Em troca desses favores, configurou-se uma convivência tolerada à distância pela cúpula do Aparelho Policial, que empreendia gigantescas operações de rua, prendia e pressionava os apontadores e banqueiros do bicho tão - somente quando acontecia algo muito grave ou manifestava interesse em aumentar a escrita (leia-se, dinheiro). A contravenção nas ruas da cidade tornou-se flagrante a tal ponto que alguns diários populares publicavam (e ainda hoje o fazem!!!) colunas na primeira página informando quais os resultados do sorteio até o fechamento daquela edição.

Os grandes contraventores, até meados dos anos setenta (talvez um pouco mais), dispunham de uma força de trabalho superior a quarenta mil pessoas, entre gerentes de ponto, apontadores, recolhedores, fiscais, seguranças, contadores etc, engajados numa atividade cujo fluxo de caixa era superior àquele registrado em alguns bancos privados do País.
Vitorioso o Movimento Militar de Março de 1964 os generais agiram com rigor e uma das providências imediatamente adotadas foi prender e confinar os banqueiros do jogo-do-bicho numa espécie de cela-porão existente no final da pista de pouso/decolagem do Aeroporto Santos Dumont. Mas foi por pouco tempo.

Não demorou muito e lá estavam eles de volta às ruas. Mais fortes ainda. O que era um baronato transformou-se em ducado. Os banqueiros do bicho mudaram de estratégia e passaram, também, a dominar as Escolas de Samba, ampliando o poder do eixo contravencional para outros negócios lucrativos e de natureza duvidosa.

Apoiados por um forte esquema de proteção que incluía bandidos e policiais na mesma folha de pagamento, esses contraventores agiram livremente durante muito tempo graças à impunidade conquistada à força do repasse de enormes cifras. Ampliaram seus domínios (antes limitados a alguns bairros) para outras cidades e Estados da Federação. Negócios mirabolantes na Bahia, em São Paulo, no Espírito Santo, na conservadora Minas Gerais e no tradicionalista Rio Grande do Sul. Uns poucos se aventuraram para além dos limites das fronteiras, onde se associaram às lideranças do submundo locais.

Um tópico a ser lembrado, não como defesa, mas tão-somente como referência: os grandes contraventores foram responsáveis pela absorção de um imenso contingente de trabalho que, de outra forma, teria sido desprezado pelos setores comerciais bem como pelo próprio Estado: egressos do sistema penitenciário, aposentados, deficientes físicos etc.

Nos anos sessenta-setenta, a contravenção mantinha (hoje prejudicada pelas ações imprevisíveis dos bandos integrados por menores de rua) uma postura discreta nas ruas e, digamos, uma convivência tolerada com as outras categorias de delinqüentes, inclusive o tráfico. Em rua onde há ponto do jogo-do bicho ninguém assalta, dizia-se, então. Mesmo os traficantes não se aventuravam a desafiar o poder de fogo dos banqueiros-do-jogo-do-bicho, porque esta seria uma batalha perdida.

Na primeira e única das hipóteses, esse confronto resultaria na aniqüilação física dos autores da ousadia. Se fosse possível recontar o número de mortos nos combates travados entre os pistoleiros a soldo da contravenção durante aquele período, seja com banqueiros rivais, com a própria Polícia ou grupos isolados de traficantes, somariam alguns milhares.

Relembro aos leitores, hoje na faixa dos quarenta, cinqüenta anos, a Guerra pelo controle dos pontos do Jogo- do-Bicho na Capital carioca, no início dos anos oitenta - logo após a execução, no interior do carro que dirigia, em plena na Rua Alcântara Machado, Centro do Rio, do ex-policial e dublê de contraventor Mariel Moryscotte Araújo de Mattos. Mais de sessenta pessoas foram eliminadas em poucas semanas e os corpos de outras vítimas sequer foram encontrados.

O que se sabe, e disso tenho convicção porquanto, como repórter, participei de dezenas de coberturas jornalísticas sobre os assassinatos atribuídos a contravenção, é que o fim daquele rosário de execuções foi ordenado verbalmente por um conhecido banqueiro do bicho da Zona Oeste, patrono de uma das mais tradicionais Escolas de Samba da Capital. Preocupado com o fato de os seus negócios serem prejudicados pelas incursões cada vez mais freqüentes da Polícia na sua área de atuação, ameaçou retaliar duramente quem se atrevesse a desobedecer suas determinações.

Marco histórico

Penso que este pode ser considerado um marco simbólico na História da Violência na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Primeiro porque, efetivamente, as ordens enérgicas e irrevogáveis daquele alto dirigente da contravenção reduziram o atrito entre os demais banqueiros do bicho e liberou a máquina Polícia para cuidar outras operações igualmente necessárias.

Vale registrar, coincidentemente, que a este período correspondeu o crescimento das ações orquestradas pelos traficantes de tóxicos, já encastelados nas principais favelas da cidade e signatários simbólicos ou de fato ao pacto firmado no interior do Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande (após o extermínio dos dirigentes da Falange do Jacaré, 1979) pelos primeiros agentes operativos em liberdade da Falange da Lei de Segurança Nacional, rebatizada logo depois - por intermédio da Imprensa -, como Falange Vermelha.

A superestrutura do tráfico, como se sabe, exige parâmetros muito mais organizados e violentos que a contravenção, embora os próprios diários tenham difundido informações no sentido de que banqueiros do jogo-do-bicho haviam estendido seus negócios para o lucrativo comércio de entorpecentes, acumulando lucros de dupla fonte.

Como é do conhecimento geral, o tráfico de entorpecentes em escala internacional demanda cuidados especiais devido à sua dinâmica, que envolve o plantio, secagem/refino, estocagem, transporte e distribuição dos produtos aos matutos e varejistas nas metrópoles.

Por se tratar de crime federal sujeito a penas severas e a confrontações permanentes, cujos resultados podem terminar em mortes e na perda total das mercadorias, os atacadistas foram obrigados a montar um forte esquema de proteção para salvaguardar seus interesses. Esquema este que faria corar de vergonha não somente aqueles antigos contrabandistas de tecidos e relógios com quartéis-generais localizados nas imediações do Cais do Porto, mas os bicheiros da primeira geração.

Foi a partir daí que, penso eu, Tênebros - a escuridão total - redefiniu aos olhos dos órgãos de difusão e também aos diferentes segmentos da opinião pública, as fisionomias desdentadas dos novos senhores da guerra, que ultrapassaram os limites dos morros e favelas, ganharam as ruas e se lançaram, de armas em punho, na guerrilha diária descentralizada e implacável, destinada à conquista, dramática e aparentemente irreversível da Cidade dos Grandes Postes de Luz.

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