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Cultura popular e entretenimento
O discurso dominante sobre jornalismo e esfera pública
Por Lidiane Santos de Lima Pinheiro*
RESUMO
O discurso dominante sobre jornalismo o vincula ao conceito habermasiano de esfera pública e o distancia do entretenimento. A fim de problematizar este discurso legitimador do “jornalismo sério”, o presente texto será fundamentado nos estudos culturais e em autores que trabalharam com os conceitos de jornalismo, entretenimento, cultura popular e com a relação entre esses fenômenos. |
Reprodução
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PALAVRAS-CHAVE: Cultura Popular / Entretenimento / Esfera Pública
1. Introdução
Conforme o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em vigor desde 1987, “o compromisso fundamental do jornalismo é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação” (artigo 7°).
Os Princípios Internacionais da Ética Profissional dos Jornalistas consideram que “o profissional deve servir à causa da verdade, mostrando a ‘realidade objetiva’” (Karam, 1997, p. 111).
Este ideal é repetido ainda entre os compromissos assumidos pelos jornais que fazem parte da Associação Nacional dos Jornais: “apurar e publicar a verdade dos fatos de interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses” (Cf. Poyares, 1998, p. 99).
Ao jornalista comumente é transferida a imagem do “agente neutralmente distanciado” que pode “transmitir a mensagem com objetividade e ética profissional” (Cf. Kunczik, 1997, p. 98). É certo que este conceito de neutralidade na prática jornalística já tem sido revisto por teorias recentes, mas valores como o interesse público, a imparcialidade, a verdade, a realidade e a objetividade são ainda clamados por profissionais e professores de jornalismo como objetivos possíveis.
Existem cânones que inspiram os padrões para se pensar o jornalismo. Ao serem reproduzidos por representantes da área, legitima-se um discurso dominante sobre a sua função social, a sua moral e a sua prática. Com base nas definições de Luiz Beltrão, por exemplo, muitos autores conceituam o jornalismo como “o estudo do processo de transmissão de informação, através de veículos de difusão coletiva, com características específicas de atualidade, periodicidade e recepção coletiva” (Cf. Amaral, 1969, p. 16).
A pauta é construída na imprensa a partir de critérios de interesse público, relevância e atualidade. Assim, os valores-notícia persistem no discurso de assuntos noticiáveis por sua função social e utilidade pública. Por outro lado, a prática mostra empresas que buscam a informação visando o lucro, conforme o modelo capitalista de negócios. Há um impasse, portanto, entre a lógica simbólica e a lógica econômica. Contudo, ao usarem a categoria do “jornalismo sério”, tal impasse é ocultado.
O “Jornalismo sério” é geralmente compreendido na sua distinção do jornalismo popular e do entretenimento. Esta distinção é principalmente pautada no conceito de “esfera pública”: o “jornal sério” se ocuparia de assuntos políticos, o “popular”, de temas sensacionalistas, e o entretenimento nem seria de interesse público. Mas, será mesmo que esta diferença existe? Os jornais contemporâneos participam efetivamente da esfera pública? O que é esfera pública? Programas que constroem a noção do popular ou que trabalham com o entretenimento podem ser efetivamente jornalísticos?
Apesar de muitos estudos terem sido publicados a fim de esclarecer as delimitações deste campo, a discussão sobre o que é ou o que deixa de ser jornalismo se mantém aberta. O presente ensaio não visa proporcionar um conceito ou fechar o debate sobre o jornalismo. À luz das questões anteriormente levantadas, pretende-se apresentar leituras sobre a esfera pública, a cultura popular e o entretenimento, que problematizam os tradicionais conceitos do jornalismo.
Os referenciais teóricos servirão também para pensar o jornalismo impresso, mas o telejornalismo será o principal objeto focalizado, pois é a forma que melhor materializa o conflito entre jornalismo, cultura popular e entretenimento – uma vez que “o telejornalismo é considerado como local por excelência da articulação entre a indústria da informação e a indústria do entretenimento” (Cf. Gomes, 2008, p. 6).
2. Jornalismo e esfera pública
Pensar o telejornal como promotor da esfera pública é algo de certa forma paradoxal para os que definem o jornalismo a partir de Habermas. A televisão é lida como cultura do divertimento e da distração; logo, o que produz seria incompatível com a seriedade e o engajamento político exigidos pelo seguinte conceito de esfera pública:
A esfera pública é o âmbito da vida social em que interesses, vontades e pretensões que comportam conseqüências concernentes a uma coletividade apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. (...) Nesse sentido, chama-se esfera pública o âmbito da vida social em que se realiza – em várias arenas, por vários instrumentos e em torno de variados objetivos de interesse específico – a discussão permanente entre pessoas privadas reunidas num público (Cf. Gomes, 1998, p. 155).
Numa perspectiva habermasiana, a esfera pública seria o lugar de debate racional dos assuntos de interesse público (a funcionalidade do governo, os abusos cometidos na esfera política, a economia etc.), onde o público está livre para mudar de opinião e entrar no consenso pelo melhor argumento. O interesse público – “direito que o público tem de saber determinadas coisas do seu próprio interesse” – é o valor maior da deontologia dos jornalistas.
Ou seja, “nos casos em que dois valores morais entram em conflito, o jornalista deve obedecer àquele valor que se relacionar diretamente à satisfação do interesse público” (Cf. Gomes, 2003, p. 30).
Servir ao interesse público significa, para os jornalistas, tomar a posição do cidadão e, para ele, desvendar os segredos da esfera política. Na democracia eleitoral, os jornais oferecem um repertório informativo para que o público faça valer seu direito de escolha política e, assim, influencie a gestão do Estado – uma vez que a esfera civil não pode interferir diretamente na condução da coisa pública. Ou seja, “os cidadãos são representados na esfera política pelos políticos e na esfera pública por jornalistas e pela mídia” (Cf. Ornebring, 2004, p. 6).
O jornalismo, na construção discursiva do seu padrão ético, usa a categoria “interesse público” como há duzentos anos (Cf. Gomes, 2003). Entretanto, se o interesse público está apenas ligado à prática da cidadania política, há aí uma incoerência, pois as demandas dos destinatários dos jornais (tanto televisivos quanto impressos) extrapolam os limites da economia e da política. A diversidade é parte inerente do ser humano, que necessita também do cotidiano, do lúdico e da distração para manter-se atento às seriedades exigidas no cotidiano. Por que, então, o entretenimento e o popular seriam desvalorizados pelo discurso dominante do jornalismo?
O jornalismo transformou-se num ramo de negócios de produção e distribuição de informações. Seria, no contexto capitalista, impossível permanecer no mercado sem estar atento às vendas. Assim, a notícia ganha uma produção quase industrial e, como nos outros ramos, o consumidor passa a ser servido.
O interesse público, então, vem se transformando e se confundindo com a “vontade da audiência”, com o interesse do público consumidor. O vocabulário é mantido, mas não o sentido. Entretanto, nem todo desejo do público pode ser nomeado de interesse público; senão, não haveria limites para este, ou seja, tudo o que a mídia faz seria de interesse público.
De acordo com Habermas (1984, p. 188), “o público se transforma em massa”. As legitimadas instituições da esfera pública política (o parlamento e a imprensa) contradizem o ideal de uma opinião pública gerada pela participação racional e discursiva, protegida da influência do dinheiro, do poder ou das hierarquias sociais.
Na mídia, a esfera pública mistura-se com a privada, e a franca acessibilidade para todos participarem, manifestando ou contradizendo suas opiniões, é um mito. Para o autor, portanto, as bases originais da esfera pública não existem mais; tornaram-se em um ideal, uma “pseudo-esfera pública” dominada pela cultura do espetáculo e pelos meios de comunicação de massa. A imprensa deixa de ser o espaço do livre debate e passa a ser um meio de circulação de idéias prontas, do estereótipo, do lugar-comum.
Ao ler críticas como as de Habermas ou as da Escola de Frankfurt, as transformações parecem sempre degeneradas e negativas. O jornalismo, porém, não precisa mais viver num iluminismo nostálgico. Afinal, se o homem não é só razão, por que o jornalismo tem que ser reduzido à racionalidade?
Duas objeções podem ser apresentadas ao conceito de esfera pública de Habermas, conforme Wilson Gomes (1998): ela é muito sisuda (por que não pode haver efemeridade e sedução no conceito de democracia?) e não dá conta da posição conflituosa da política (o consenso, como a escolha da melhor posição, pode ser vinculado com a diversidade partidária?).
Para este, existe sim uma esfera pública, ainda que diferente da liberal clássica. Ela é midiática, menos ritualística e intimamente ligada com a qualidade democrática das sociedades. Por isso, segundo o autor, “o conceito de esfera pública não pode ser descritivo, mas normativo (...) a partir daquilo que se considera como sendo a essência dos fenômenos” (Cf. Gomes, 1998, p. 184).
É problemático, ainda, relacionar a esfera pública apenas a um “dever ser”. Se o fenômeno é pensado como um processo histórico, a compreensão dele distancia-se da busca por uma essência. A democracia, os lugares de debate público e o jornalismo são marcados por contextos sócio-culturais específicos, em constante transformação; por isso, não podem ser explicados por conceitos normativos que não se dobram à história.
Diante da dificuldade de definições e da percepção vaga do funcionamento da esfera pública hoje, conclui-se que: ou deixamos de usar tal conceito ou ele precisaria ser re-trabalhado e ampliado. Ao abordar a relação do jornalismo com a esfera pública, certamente deveriam ser levadas em conta, não apenas as questões cognitivas ou racionais, mas também as contribuições emocionais, culturais etc.
Na percepção da impossibilidade de manter o conceito de Habermas, alguns autores o modificaram ou o ampliaram para além da necessidade da argumentação verbal (cabendo aí a televisão e a sua lógica do entretenimento), para uma “esfera pública cultural” (Fiske, 2000) ou para uma “esfera pública alternativa” (Ornebring, 2004).
Ronald Jacobson (2004) trabalha ainda com a idéia de uma “esfera pública não factual”, onde o debate público acontece por programas ficcionais que discutem o real. Para os estudos culturais, segundo Peter Dahlgren (2000), a esfera pública se dá também na apropriação doméstica das notícias na vida cotidiana.
3. Jornalismo e cultura popular
Conforme Dahlgren (2000), as práticas e identidades profissionais reconhecidas socialmente, partilhadas e consolidadas pelos jornalistas (que ele chama de “self-evidente jounalism”: definição de jornalismo, como é feito, seus ideais e propósitos na sociedade, etc.), deverão ser re-pensadas diante de mudanças sociais, tecnológicas, organizacionais e das transformações na estrutura da mídia.
Para o autor, o “jornalismo sério”, que se apropria do discurso dominante favorável às hard news (notícias “sérias” sobre política, economia etc.), está em declínio; e o modelo tablóide e “popular” (grupo majoritário que está fora do bloco de poder) está em franco crescimento. Porém, o discurso dominante ainda deixa muitos gêneros sem explicação e o jornalismo popular é visto sob suspeita: seria mesmo jornalismo? Ou seria um jornalismo de baixa qualidade?
Vale ressaltar que, na realidade política, os dois pólos de oposição numa sociedade moderna são "o povo" e "o bloco do poder' (Sparks, 2000). Esta contradição (povo versus bloco do poder) é ratificada por John Fiske (Cf. 2000, p. 45), que explica que o bloco de poder não é uma classe, e sim “uma aliança de forças de dominação, expressa em instituições como o governo, as políticas, a indústria, a mídia, o sistema educacional e as leis”. Para ele, a esfera pública foi construída e é mantida pelo bloco do poder, que tem aprendido como o controle das notícias pode contribuir para seu controle da esfera pública.
Com a Semiótica, os Estudos Culturais e as pesquisas de recepção, observou-se que o jornalismo tanto constrói, quanto é construído. O processo de produção de sentidos inclui um receptor que não mais decodifica passivamente a mensagem, mas que a interpreta mediante contextos sociais e referências pessoais.
A partir de então, a distinção entre o jornalismo e o não-jornalismo (ou o bom e o mau jornalismo) passou a ser relativizada (Dahlgren, 2000): de acordo com que critério pode-se classificar tal programa como não-jornalístico? Um telejornal popular é mau jornalismo para quem? Este conceito é baseado em que padrões, se, por exemplo, o Jornal Nacional e o Balanço Geral usam estratégias semelhantes (a narrativa, os especialistas legitimados socialmente para explicar um fenômeno, as entrevistas com pessoas comuns etc.)?
Para John Fiske (2000), as “notícias oficiais” do jornalismo tradicional são aquelas que o bloco de poder deseja que as pessoas considerem sérias e verdadeiras. No entanto, conforme o autor, a esfera pública tem sido tão corrupta, que o povo tem canalizado sua energia política para si e para a micro-política da vida cotidiana – e, com isso, tem criado táticas de resistência interpretativa às mensagens oficias.
Assim, ganha força o conjunto de notícias alternativas ou populares, que se opõem ao consenso e questionam o poder da elite (Cf. Ornebring, 2004, p. 7). Fiske (2000) explica que, subvertendo as normas do jornalismo tradicional, o jornalismo popular explora as contradições, que são o centro da cultura popular, e as experiências das pessoas comuns.
Contudo, como é extremista a perspectiva totalmente determinista de alguns autores, é também complicada a ausência de determinação na explicação de Fiske sobre a tática de resistência interpretativa do povo. Para compreender melhor a crítica à resistência interpretativa, é necessário retomar o modelo de codificação/ decodificação de Stuart Hall, no qual esboça três posições hipotéticas a partir das quais a leitura do discurso televisivo poderia ser construída: a posição dominante-hegemônica (leitura preferencial), a posição negociada (postura majoritária na sociedade) e a posição oposicionista (que só pode ser alcançada por sujeitos revolucionários autoconscientes).
O valor-notícia operado por um telejornal popular não é jornalístico; mas é um valor-drama. Ou seja, retoricamente ele lida com os valores jornalísticos, mas na prática ele os recusa. Para Sparks (2000), o “jornalismo popular” fala um idioma reconhecido pelas massas e dá mais espaço ao esporte do que à política, a categorias de interesse humano do que à vida econômica, aos indivíduos do que às instituições, ao local e ao imediato do que ao internacional e de longo prazo.
A experiência pessoal está presente também na “imprensa de qualidade”; mas, na popular, é o elemento mais intensamente frisado e aparece como ferramenta interpretativa. Enfim, de acordo com o autor, no jornalismo popular os assuntos da vida diária são mais importantes do que a esfera pública. Há nele um processo de despolitização ou de apresentação superficial de um conteúdo político relacionado à exploração e à opressão.
Esta posição, entretanto, é adotada também pelo dito “jornalismo de qualidade”. A diferença é que este mostra uma “fragmentada representação do mundo”, enquanto o outro “embute uma forma imediatista e totalitária no manuseio do assunto público” (Cf. Sparks, 2000, p. 39).
As semelhanças entre o jornalismo popular e o jornalismo tradicional têm se acentuado nos últimos anos. Em ambos, a vida das pessoas comuns tem ganhado espaço. Conforme João Freire Filho (Cf. 2007, p. 70), “ao desestabilizarem o papel do expert como a única autoridade aceitável no debate público, contribuíram na mudança da visão habermasiana da mídia como o domínio de uma elite política para um modelo de negociação entre diversos públicos”.
Para o autor, a Sociedade do Espetáculo é responsável não apenas pelo sensacionalismo ou pela exploração do grotesco; mas por uma cultura de celebrização do ordinário, muitas vezes confundida erroneamente com uma democracia radical. O telejornalismo contemporâneo, na visão pouco otimista de João Freire, é marcado pelo neopopulismo, caracterizado pela estratégia da incorporação das demandas e da presença do receptor como astro ou co-produtor interativo dos novos formatos.
Hoje o telespectador pode sugerir pauta, pode entrar no chat depois do programa e conversar com o entrevistado, pode interagir mais do que simplesmente interpretando.
Contudo, o autor adverte: essa interatividade não apenas é uma estratégia de arrecadação fácil e imediata de dinheiro, mas também de fornecimento de informações acerca da opinião e dos gostos da audiência.
O discurso do “empoderamento da audiência” está presente no jornalismo popular, como também no jornalismo tradicional. Ambos levam mão de meios que os aproximam do indivíduo comum e, logo, da vida cotidiana. Entretanto, esta não é simplesmente uma questão de estratégia comercial. Para Dahlgren (2000), jornalismo é cultura popular.
Repensar o jornalismo como parte da cultura popular e a compreensão de que isso não necessariamente significa a morte da esfera pública (e pode inclusive apontar para sua renovação) deve ser um passo construtivo (...). O jornalismo deve estar sensível e reconhecer aspectos como as múltiplas subjetividades da vida cotidiana, os propósitos e prazeres que as pessoas associam ao jornalismo, os processos pelos quais a audiência se transforma em comunidades de públicos, a polissemia dos textos, as qualidades especiais da televisão enquanto meio e os modos particulares de conhecimento associados à narrativa. Essas dimensões precisam ser construtivamente incorporadas numa renovada auto-definição do jornalismo (Cf. Dahlgren, 2000, p. 18-19).
Para o autor, o jornalismo é fruto da cultura popular, uma vez que esta é o modo de produção de vida cotidiana, que “torna popular o sentido de experiência social” (Cf. Fiske apud Sparks, 2000, p. 35), e o material trabalhado pelo jornalismo é prioritariamente a vida cotidiana – tanto na ênfase das práticas do dia-a-dia quanto na materialidade do seu discurso.
O jornalismo, enfim, é popular, independentemente da forma como é classificado: tradicional, tablóide (nomenclatura com forte carga ideológica, negativa), infotainment (modelo que une informação e entretenimento) ou popular. Apesar de, aqui, partirmos do princípio de que todo jornalismo é parte da cultura popular, usamos a expressão “jornalismo popular” pois esta é uma classificação amplamente aceita nos estudos teóricos do jornalismo.
Esse tipo de jornalismo se diferenciaria do chamado “jornalismo sério” ou “jornalismo de qualidade” pela sua linguagem e pelas suas estratégias – apesar de, como vimos, eles se diferenciarem cada vez menos. Enfim, quando se fala em “jornalismo popular”, fala-se do lugar teórico do jornalismo e não dos Estudos Culturais, que consideram o jornalismo, em geral, como cultura popular.
Apesar das diferenças que existem na produção jornalística, todas mobilizam símbolos com cargas afetivas e cognitivas. Por operar principalmente pelo modo dramático, da narrativa, o jornalismo (de forma geral) se aproxima também de apelos culturais e do entretenimento.
4. Jornalismo e entretenimento
O entretenimento está ligado à cultura midiática popular, mas é mais amplo e antigo que esta. Conforme Itânia Gomes (Cf. 2008, p. 4), “entretenimento é um valor das sociedades ocidentais contemporâneas que se organiza como indústria e se traduz por um conjunto de estratégias para atrair a atenção de seus consumidores”.
Shusterman, (2003) explica que, no inglês, outras palavras são usadas para expressar o conceito de entretenimento: pastime (passatempo), amusement (diversão), divertissement (divertimento), distraction (distração), recreation (recreação). O termo amusement deriva do verbo to muse, que significa ficar atônico ou perplexo. Ao mesmo tempo, o sentido aqui é o de “parar o trabalho sério que nos mantém atentos para se ater a outras coisas mais leves”.
Os termos distraction, diversion e divertissement sugerem sair do nosso foco habitual de atenção para algo mais disperso. O termo “entretenimento” deriva do Latim inter + tenere, “segurar junto”, “manter”, sustentar”. Dessa apropriação, o principal sentido de entretenimento seria “a ação de ocupar a atenção de uma pessoa de forma agradável” (Cf. Shusterman, 2003, p. 292- 293). O autor aponta, então, um paradoxo entre os sentidos etimológicos de distração e de captura da atenção, também presente nas abordagens filosóficas sobre o entretenimento.
A tradição filosófica apresenta uma dicotomia entre o cognitivo e o sensível (o que seduz, apela, estimula, provoca prazer). Shusterman (2003), no entanto, argumenta que nem o entendimento está dissociado da sensibilidade, nem o entretenimento é inferior aos fenômenos reconhecidos pelo campo cognitivo.
“Por que precisamos assumir que há uma oposição essencial entre verdade e entretenimento, conhecimento e prazer?”, questiona Shusterman (2003, p. 300). A hipótese do autor é que o entretenimento contribui para a cognição. Ou seja, “a função de relaxar não apenas inclui alívio ou diversão, que podem restaurar a concentração, mas pode também aguçar a sensibilidade da percepção”. Para ele, “a função de relaxamento do entretenimento, portanto, pode provocar não apenas mero alívio restaurador, mas pode aguçar a nossa sensibilidade para novos insights” (Cf. Shusterman, 2003, p. 299).
Partindo do princípio de que o prazer é parte da nossa experiência de vida, o autor defende que a lógica do prazer nos guia para aquilo que precisamos mais do que as deliberações racionais. Assim, para ele, o prazer tende a intensificar nossa atenção para o trabalho de um modo que aguça nossa percepção e entendimento. Por isso, na perspectiva dos Estudos Culturais, “o prazer é indissociável da vida cotidiana e, como tal, não se opõe à vida política” (Cf. Gomes, 2008, p. 4).
Para Ronald N. Jacobs (2003), o entretenimento televisivo influencia as discussões da esfera pública. Ele aproxima o conceito de debate público ao de visibilidade pública (estendendo a noção de esfera pública habermasiana) e lembra que Habermas atribuiu importância à literatura, à música, ao esporte, ao teatro e a outros entretenimentos baseados em formas culturais, na formação histórica da esfera pública.
A mídia ficcional institucionaliza o discurso da sociedade civil nas narrativas principais, características míticas e enredos exagerados que capacitam os leitores para desenvolver um domínio maior da estrutura cultural e uma maior sutileza do discurso, precisamente porque eles não são reais (Alexander e Jacobs, 1998). Ignorar as mídias ficcionais e de entretenimento é esquecer um grande número de criatividade e efervescência discursiva na sociedade civil (Cf. Jacobs, 2003, p. 9).
Entretanto, quando se fala em formação da opinião pública ou nas esferas civil, política e pública, o factual ainda tem lugar privilegiado. A busca pela “verdade” é um valor que distancia a notícia do entretenimento. Mas, e quando estes dois elementos se articulam num mesmo produto midiático? Quando o jornalista é performático ou a notícia projeta efeitos de espetáculo, ainda estamos no âmbito da esfera pública?
“Sim”, responderia Geoffrey Baym (2004).
O programa analisado por ele é o Daily Show (apresentado pelo ator e comediante John Stewart): “uma velha forma de comédia” em “um novo tipo de jornalismo” (Cf. Baym, 2004, p. 4). Neste “experimento do jornalismo”, as notícias são apresentadas com humor e subjetividade, seguidas por entrevistas com representantes públicos. Segundo Baym, o Daily Show apresenta notícias que entretém, e não entretenimento com maquiagem de notícia.
Esses formatos híbridos tem se espalhado pelo globo. No Brasil, programas como Pânico e CQC (Custe o Que Custar), por exemplo, usam a paródia para “desconstruir” notícias contemporâneas e interrogar o poder. No entanto, aquele convoca o jornalismo para fazer a piada (mas não há relevância pública nos assuntos) e este convoca o teatro de improviso, a irreverência, a ironia e a sátira para fazer jornalismo (usa o modo de construção satírica para endereçar a leitura de assuntos de interesse público, marcando a sua parcialidade).
As barreiras entre notícia, mercado, assunto público, entretenimento e cultura popular vem se dissolvendo. Neste cenário, ganha espaço o formato híbrido do infotainment (infotenimento). Esta tendência da mídia contemporânea resulta do “embaralhamento de fronteiras entre informação e entretenimento” e aponta duas conseqüências para o jornalismo: “o infotainment evidencia o caráter de processo histórico e cultural do jornalismo; o infotainment permite legitimar o prazer como parte dos propósitos jornalísticos e obriga-o ao reconhecimento de que o entretenimento faz parte da sua história” (Cf. Gomes, 2008, p. 10).
Um programa de infotainment,portanto, desvenda a natureza cultural da distinção entre informação e entretenimento e “nos convida a reconsiderar convenções do jornalismo em um tempo de multiplicidade e integração discursiva na mídia” (Cf. Baym, 2004, p. 7).
O Daily Show e o CQC violam os padrões jornalísticos de objetividade, de neutralidade e de diminuição das possibilidades de múltiplas interpretações. O âncora e os repórteres não são meros intermediários da informação; são atores centrais do espetáculo.
Sua performance (em representar papéis: do jornalista impertinente, do jornalista celebridade, entre outros) é marcada em matérias que mostram mais o repórter que o assunto. Assim, “Enquanto a meta das notícias paródicas do Daily Show pode ser para gerar uma risada, sua punhalada mais funda é a subversão, um ataque nas pretensões e convenções das notícias, de um modo a desconstruir o paradigma de autoridade jornalística” (Cf. Baym, 2004, p. 15).
Aos que questionam se esses programas são efetivamente jornalísticos, sugere-se observar, além do uso das técnicas próprias ao gênero, seus enquadramentos de assuntos relevantes, ainda que não necessariamente da esfera política. A notícia está não apenas nas respostas dos entrevistados, mas no silêncio destes e nas próprias perguntas dos repórteres. A informação está também nos subentendidos, nas ironias, nas sutilezas cheias de significados e no jogo de conhecimentos requeridos para compreender a piada. Possuindo como estratégia o entretenimento, eles cumprem funções jornalísticas.
Conforme Baym, essa nova forma de jornalismo crítico alcança o que a imprensa popular não está mais disposta a procurar – o enfrentamento do político, com a licença do humor. Eles atacam as falhas dos atores públicos, mas usam táticas para reduzir a sensação de compromisso com a esfera pública política, recusando a seriedade e investindo na subjetividade – e de forma surpreendente, se tornam uma fonte influente de informação política.
Para o autor, os jovens não têm interesse nas notícias tradicionais e aprendem sobre política em talk shows noturnos e comédias; por isso, a forma híbrida dos programas que misturam discursos diversos em inimagináveis combinações garante seu sucesso comercial e a participação política da audiência. Com outras palavras, Jacobs (2003) também explica que ao adotar formatos de entretenimento, as notícias televisivas levam a discussão política até o telespectador, que, torna-se mais motivado a participar do debate de assuntos de interesse público.
5. Considerações finais
À primeira vista, parece haver um consenso sobre a forma como o jornalismo é concebido e percebido, na academia e na profissão. Mas, como todas as instituições sociais, o jornalismo se fundamenta em valores socialmente construídos e reconhecidos, bem como em funções práticas às quais é atribuída grande importância, para construir um discurso que o legitime na sociedade (Cf. Gomes, 2003).
Assim, o discurso de autolegitimaçao do jornalismo, além da função de refletir e configurar a identidade da corporação, cumpre a decisiva tarefa de convencer a todos de que o jornalismo é uma instituição importante, preciosa e necessária para toda a sociedade e que, portanto, deve ser mantida, protegida e cuidada pelos cidadãos, mediante uma cultura e uma mentalidade, e pelo Estado através das suas leis e princípios (Cf. Gomes, 2003, 29).
Servir ao interesse público e ao que concerne à cidadania, possibilitando o funcionamento da esfera pública, é o discurso ainda dominante do jornalismo.
Apesar de não existir um exemplo concreto de telejornal (ou mesmo de jornal impresso) que cumpra perfeitamente às funções de objetividade, verdade, imparcialidade e interesse público, a categoria “jornalismo sério” ou “de qualidade” é mantida, em oposição ao jornalismo popular ou a programas de entretenimento.
A prática mercadológica, a produção de notícias e os ideais do jornalismo são historicamente situados. Houve um tempo em que não havia responsabilidades ou normas particulares para a mídia.
O jornal era o “megafone da burguesia” (Cf. Ornebring, 2004), partidário, opinativo, segmentado. Depois, visando ampliar a quantidade de consumidores, a objetividade – atualmente reforçada pela “credibilidade da imagem” – foi apresentada como condição necessária, distanciando o jornalismo de textos opinativos, com públicos muito específicos. Hoje, para aumentar ainda mais a audiência, os jornais impressos têm se assemelhado aos televisivos (por meio de histórias curtas, da maior atenção às seções de estilo de vida, do formato e do uso de imagens) e estes, a outros gêneros.
Os discursos teóricos mantêm barreiras que estabelecem as diferenças entre os vários tipos de jornalismo. Paradoxalmente, entretanto, estes se misturam na prática. Os telejornais tradicionais têm trabalhado com linguagens, temas e formatos próprios do jornalismo popular e com a sedução dos programas de entretenimento. Esse fenômeno aponta uma provável mudança no discurso legitimador do jornalismo.
Conforme Itânia Gomes (Cf. 2008, p. 12), “as transformações nos valores e nas formas culturais quase sempre chegam através de formas híbridas”.
Do nascimento à consolidação do jornal, tudo neste é resultado de seleção (inclusive o que omite). Por isso, deve ser completamente abandonada a idéia de que os jornalistas reproduzem a “realidade” de maneira objetiva, com precisão, verificação, veracidade e neutralidade. “Tanto o discurso jornalístico como o histórico fazem uma síntese a partir de uma pluralidade de vozes, como se isso bastasse para legitimar a presença de vários pontos de vista.
Na medida em que organizam as vozes, apropriam-se de falas de outros a que acabam por atribuir sentidos diferentes” (Cf. Sato, 2002, p. 33). Ao atribuir sentidos, sintetizar, omitir e selecionar, o jornal está propondo modelos de entendimento do mundo e constituindo padrões de comportamento, sob a máscara de exposição da verdade.
O produto jornalístico não passa de um discurso; por isso, a demarcação conceitual do jornalismo é sempre provisória e histórica, pois os valores e ideais mudam ao longo do tempo. Nunca “o jornalismo é...”. Sempre “o jornalismo está sendo...”, “nesse momento histórico, é visto como...”. Até a ética profissional, que é uma questão fundamental para a definição do que pode ou não ser jornalismo, é mutável e construída socialmente. Abordando o jornalismo televisivo, Itânia Gomes conclui:
O telejornalismo é, então, uma construção social, no sentido de que se desenvolve numa formação econômica, social, cultural particular e cumpre funções fundamentais nessa formação. A concepção de que o telejornalismo tem como função institucional tornar a informação publicamente disponível e de que o que faz através das várias organizações jornalísticas é uma construção: é da ordem da cultura e não da natureza do jornalismo ter se desenvolvido deste modo em sociedades específicas (Cf. Gomes, 2007, p. 4).
Portanto, “existirão tantos jornalismos quantas são as culturas, as sociedades e os tempos históricos em que ele é praticado” (Cf. Gomes, 2007, p. 17). Os valores-notícia, como as normas profissionais adotadas pelos jornalistas, são discursos marcados por contextos sócio-culturais e são re-configurados a partir da sua relação com o público.
O jornalismo está vinculado à vida cotidiana e é nela que se dá a significação. Os telespectadores produzem sentido sobre o mundo não nos mesmos moldes propostos pelos produtos jornalísticos. Devem ser considerados seus conhecimentos sobre a esfera pública, suas experiências na esfera privada, seus sentimentos, prazeres e suas percepções. “A relação entre os media e seus consumidores não se restringe a um problema de interpretação de uma mensagem, entendida no sentido discursivo, mas remete também a questões de percepção e sensibilidade” (Cf. Gomes, 2008, p. 5).
Talvez um dos principais objetivos ou desafios da mídia deveria ser transformar o cidadão em participante da esfera política (Cf. Ornebring, 2004). Porém, não há indicações de que o jornalismo tradicional é melhor nesse aspecto do que o jornalismo popular ou o que possui uma linguagem mais próxima ao entretenimento. Por conseguirem alcançar um público maior, os telejornais populares ou os programas de infotainment podem também corresponder aos ideais democráticos do jornalismo.
Os episódios que surgem no espaço público não podem ser reportados apenas factualmente. A informação precisa ser apresentada de maneira a interessar o maior número possível de pessoas: tocando nos sentimentos tão bem quanto na razão.
Assim, o criticado apelo à emoção pode, ainda, permitir que o jornalismo contemporâneo estimule a participação e afete mudanças sociais e políticas. Assumindo tais leituras, o jornalismo poderia talvez cumprir sua função econômica, sem contradizer seus ideais simbólicos, e o discurso do jornalismo poderia ser menos utópico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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*Lidiane Santos de Lima Pinheiro é doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora do curso de Comunicação Social da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
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