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A pesquisa experimental nas escolas
de comunicação: Reduzindo a
distância entre academia e mercado

Por José Marques de Melo
Presidente de Honra da INTERCOM

O ensino de comunicação na universidade brasileira contabiliza meio século de trajetória histórica. As primeiras décadas – 50 e 60 – foram marcadas por avanços e retrocessos de natureza pedagógica, decorrentes da inserção institucional dos pioneiros cursos de jornalismo nas faculdades de filosofia e letras. Tais espaços acadêmicos refletiam as demandas dos agentes educativos, vocacionados para atuar nas redes de ensino secundário, inibindo as identidades peculiares a segmentos profissionais, como o nosso, moldados compulsoriamente pelo estilo discursivo que ali era hegemônico.

Assim sendo, as primeiras gerações de profissionais midiáticos formados em nosso país sofreram as agruras de um modelo pedagógico que valorizava o beletrismo e a didática do giz-e-quadro negro. Poucos cursos desenvolveram processos sintonizados com a natureza típica do jornalismo , ou seja, atividades de produção noticiosa, a não ser exercícios redacionais, dentro ou fora da sala de aula, usando bem mais a caneta do que a máquina de escrever.

Felizmente aquele era um tempo em que os estágios dos estudantes nas empresas midiáticas eram permitidos e estimulados, como uma forma de compensar o “teoricismo” das aulas. O estágio funcionava, em alguns casos, como mecanismo de deserção universitária, especialmente para os jovens impacientes, que preferiam aproveitar as chances de trabalho remunerado, aprendendo na prática. Renegavam, desta maneira, a participação nos colóquios agendados pela rotina universitária, jubilando-se a médio prazo, o que significava perder o direito ao diploma.

A criação das primeiras faculdades de comunicação, em Brasília, São Paulo e Porto Alegre, ainda na década de 60, estabeleceu um divisor de águas. Libertando-se da tutela das faculdades de filosofia e letras, os cursos de jornalismo passaram a funcionar de modo articulado com as carreiras emergentes de publicidade, relações públicas, cinema, editoração, radio e televisão.

Tecnofobia

Tais espaços acadêmicos facilitaram a convivência entre professores que procediam do universo profissional, demandando condições de trabalho capazes de sintonizar o aprendizado dos estudantes com a dinâmica singular dos fluxos noticiosos, persuasivos ou diversionais, quer nas empresas midiáticas, quer nos serviços de comunicação. Sua voz nem sempre repercutia nas instâncias de decisão acadêmica, ainda monopolizadas por dirigentes universitários conservadores, pouco permeáveis às inovações pedagógicas. A área de comunicação continuava a ser dimensionada à imagem e semelhança dos cursos humanísticos, respaldados apenas pela aula de sala e pela biblioteca. A reivindicação de laboratórios soava como pedagogicamente incorreta, pois alguns mandatários temiam que as novas carreiras trilhassem pelos descaminhos do “tecnicismo”.

Essa tecnofobia somente foi superada nos anos 70, quando o Conselho Federal da Educação reformou o anacrônico currículo mínimo então vigente, instituindo novas exigências didático-pedagógicas para os cursos de comunicação. Entre elas estava a necessidade de equipamentos profissionais e laboratórios especializados . Como a reforma do velho currículo demorou muitos anos para ser completada, tendo em vista o dissenso imperante em nossa área do conhecimento , por razões de natureza ideológica (professorado) ou mercantil (donos de escolas), a implantação dos laboratórios foi sendo adiada .

Finalmente a Resolução CFE 2/84 tornou obrigatória a infra-estrutura laboratorial, criando o ambiente propício ao desenvolvimento do experimentalismo nas faculdades de comunicação de todo o país. Apesar da hegemonia então exercida pelos adversários do empirismo, a força da lei atuou no sentido de estruturar atividades de ensino comprometidas com a aplicação prática dos conhecimentos assimilados pelos jovens na sala de aula ou adquiridos nas leituras recomendadas pelos mestres que valorizavam a bibliografia segmentada. Isto facilitou a criação de pontes com o mercado de trabalho . Essa nova safra de diplomados já possuía experiência na criação, produção e difusão de mensagens ou na gestão de campanhas, o que os habilitava a disputar vagas nas indústrias do ramo, sem reciclagem prévia.

Quando a INTERCOM foi criada, no final da década de 70, o Brasil vivia essa conjuntura marcada pela luta equivocada entre as duas correntes que se digladiam na arena acadêmica: os teóricos contra os empíricos e vice-versa .

Refletindo a concepção de pesquisa cultivada nacionalmente pelo setor das humanidades, os nossos primeiros congressos foram caracterizados pela prevalência dos teóricos em relação aos práticos. Melhor dizendo, nosso público foi sendo forjado pelos professores mais afeitos à reflexão crítica dos fenômenos comunicacionais. Se não desprezavam, pelo menos minimizavam a pesquisa aplicada. Os anais dos nossos encontros pioneiros refletem essa primazia do ensaísmo, guiado pela ótica das ciências humanas, em detrimento das reflexões sobre os práticas profissionais que transcorriam no interior das indústrias midiáticas .

Tornava-se evidente a dicotomia entre as temáticas dos ciclos interdisciplinares e as tendências dos grupos de estudos que se organizavam segundo a clivagem peculiar às carreiras legitimadas pelo currículo mínimo . Tanto assim que os docentes das habilitações profissionais, justamente pela necessidade de oxigenar seus debates, tornando-os mais úteis ao cotidiano da vida universitária, criam fóruns especializados, nas atividades pré e pós congresso. Essa era uma demonstração de que o campo acadêmico da comunicação se convertia em arena complexa.

Espírito plural

Foi graças ao espírito pluralista da INTERCOM que tais segmentos encontraram terreno fértil para cultivar suas especificidades, naturalmente preservando a articulação orgânica com as diretrizes científicas propostas pelas lideranças situadas no bloco das disciplinas teóricas ou na pós-graduação.

Percebendo esse hiato intelectual e procurando evitar que os fóruns periféricos se transformassem em guetos, tomei a iniciativa de propor à diretoria da nossa sociedade, no início dos anos 90, a criação de um novo espaço dentro dos nossos congressos anuais. Preocupava-me a ausência dos estudos laboratoriais nos debates que realizávamos periodicamente. Começavam a florescer iniciativas arrojadas, dentro dos laboratórios didáticos . Quando muito, elas se difundiam perante o mundo do trabalho, tendo em vista a convocação de profissionais do mercado para integrar as bancas examinadoras dos trabalhos finais de curso. Mas eram ignoradas pelos professores das disciplinas básicas, que em geral as rejeitavam solenemente, dizendo tratar-se de reprodutivismo estéril.

É verdade que alguns trabalhos se limitavam a mimetizar os produtos que circulavam no mercado, etapa pedagógica indispensável ao aprendizado das rotinas laborais. Contudo, havia exercícios de criatividade e de renovação, tanto em linguagem quanto em conteúdo. Eles davam passos significativos na acumulação de eficácia planificadora, pragmatismo e competência gerencial.

Tais peças funcionavam como passaporte dos recém-formados para o ingresso imediato nas empresas de comunicação, graças à percepção dos recrutadores de novos talentos. Em muitos casos, os alunos desenvolviam produtos e serviços de acordo com os padrões das empresas que se dispunham a atuar como “clientes” das agências experimentais mantidas pelas universidades. Ao familiarizar-se precocemente com a cultura empresarial, esses estudantes fustigados pelo empreendorismo asseguravam o primeiro emprego.

Minha proposta à INTERCOM foi a instituição de um concurso destinado a selecionar, anualmente, os produtos laboratoriais que refletissem criatividade estética, inovatividade tecnológica e ousadia conteudística. Tais peças gerariam uma exposição aberta a todos os participantes do nosso congresso, no sentido de emular os professores e alunos daquelas instituições que permaneciam em patamares didáticos convencionais. Para tanto, busquei o apoio da revista IMPRENSA, que premiava com viagens ao exterior os autores dos melhores trabalhos, bem como os docentes que haviam supervisionado a pesquisa experimental nos laboratórios das universidades.

O surgimento da Expocom

Surgiu desta maneira a EXPOCOM – Exposição Universitária da Pesquisas Experimental em Comunicação, um projeto modesto que pretendia exibir a ponta do iceberg representado pelos mais arrojados exercícios de criação, produção e difusão de produtos midiáticos, submersos inexplicavelmente no imenso oceano da graduação em comunicação social. Lançado em 1993, o certame começou a ser viabilizado no congresso de Piracicaba, contando com a liderança, o empenho e sobretudo o entusiasmo do Prof. Paulo Rogério Tarsitano. Ele não apenas formatou o projeto, mas lhe deu consistência acadêmica, propondo uma taxionomia para as atividades experimentais realizadas pelas faculdades de comunicação, em todas as habilitações profissionais e no conjunto das disciplinas que integram o universo empírico das ciências da comunicação.

Seu envolvimento intelectual foi de tal natureza que a pesquisa experimental em comunicação converteu-se em objeto do seu trabalho doutoral. Defendida na Universidade Metodista de São Paulo, em abril de 1999. a tese, sob o título A Expocom como agente gerador de qualidade no ensino da comunicação social, foi assim resumida pelo autor:

“Criada como evento paralelo do XVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, a Expocom (Exposição da Pesquisa em Comunicação) é um dos grandes avanços da Intercom nos anos noventa. O crescimento que ela experimentou nas suas cinco edições, desde que foi implantada em 1994, mostrou que as instituições de ensino que dela participaram apresentaram uma sensível evolução da sua qualidade, perceptível nos trabalhos inscritos. O que estava motivando essa evolução ? As escolas estavam apresentando produtos comunicacionais, projetos experimentais e pesquisas laboratoriais melhores a cada ano, tanto no conteúdo quanto na fundamentação teórica, assim como na finalização e apresentação.”

A EXPOCOM mudou a fisionomia dos congressos da INTERCOM, passando a aglutinar um segmento importante da comunidade acadêmica da comunicação no Brasil, que antes participava olimpicamente dos debates anuais. Ela alterou também o perfil das próprias instituições de ensino superior, que, emuladas pelos paradigmas legitimados pelos comitês encarregados de premiar os trabalhos experimentais, apontavam modelos e indicavam tendências.

Foi tamanho o vulto assumido pela EXPOCOM em nossos congressos anuais, catalisando principalmente o interesse dos jovens estudantes e mobilizando dezenas de especialistas para julgar trabalhos situados em dezenas de categorias midiáticas, que o espaço ocupado pelo evento se multiplicou, assumindo proporções gigantescas. Tanto assim que as suas lideranças, neste momento em que a iniciativa celebra seu primeiro decênio, começam a avaliar intensamente os seus resultados científicos e as suas implicações pedagógicas, no sentido de estabelecer parâmetros consensuais e operativos.

Um indicador concreto da validade da EXPOCOM está contido na assimilação do modelo brasileiro de pesquisa laboratorial pelos países vizinhos do Mercosul. A realização de exposições semelhantes na Argentina e no Uruguai, em anos recentes, confirma essa percepção valorativa .

O grande dilema com que se debate, nesta conjuntura, o segmento da pesquisa experimental, nas escolas de comunicação, é certamente o de sistematizar todo o conhecimento acumulado, passando da descrição dos resultados à sua generalização. Tais evidências, convertidas em axiomas universalmente aceitos e em princípios testados empiricamente, podem gerar uma autêntica teoria da práxis comunicacional brasileira .

Papel histórico

A EXPOCOM cumpriu um papel relevante na história das ciências da comunicação, em nosso país, legitimando o trabalho empírico. Em certo sentido o projeto vem fortalecendo a identidade peculiar ao campo. Começamos a nos distanciar organicamente do ensaísmo sociológico para adotar o perfil que efetivamente nos corresponde como integrante do bloco das ciências sociais aplicadas, de acordo com a classificação adotada pelo sistema nacional de ciência e tecnologia.

Todavia, muito resta por fazer e aperfeiçoar. A principal tarefa a exigir nossa atenção e acurácia é sem dúvida a produção de uma literatura consistente, capaz de resgatar as metodologias usadas nesses trabalhos laboratoriais considerados emblemáticos pelos comitês que os selecionam para as exposições realizadas anualmente. Da mesma forma, torna-se imprescindível a construção de uma taxionomia resultante do consenso entre os praticantes de cada uma das áreas, no sentido de evitar uma babel terminológica que ocasione ruídos indesejáveis. Sem essas duas providências fundamentais será difícil, senão inviável, produzir um arcabouço teórico capaz de embasar a formação das novas gerações e de ser replicado nas atividades profissionais que elas irão desenvolver no interior das indústrias midiáticas.

Esse processo de consolidação teórica pressupõe naturalmente um amplo diálogo entre os agentes da pesquisa experimental desenvolvida pelas universidades e os praticantes dos ofícios legitimados pelas corporações profissionais, ensejando fluxos interativos entre academia e mercado. Trata-se de uma tarefa ancorada nos espaços nacionais, mas que não pode perder de vista aqueles consensos epistemológicos internacionalmente validados.

Os seminários organizados no último biênio para explicitar os procedimentos operacionais dos experimentos realizados pelos vencedores dos prêmios EXPOCOM representam um primeiro passo nessa direção. Mas eles precisam ser aprofundados e ampliados, de modo a superar o caráter exploratório até agora vigente, efetuando a sistematização dos conceitos empregados e manualizando aqueles conhecimentos resultantes de comparações validadas no tempo e no espaço.

Este é o desafio que lanço enfaticamente aos participantes da EXPOCOM 2003, nesta mensagem de júbilo pelo primeiro decênio da iniciativa e pelas conquistas acumuladas em todo o território nacional.

Bibliografia

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3 MARQUES DE MELO, José – Universidade, cultura e comunicação no Brasil: o dilema das alternativas possíveis, In: Subdesenvolvimento, Urbanização e Comunicação, Petrópolis, Vozes, 1976, p. 79-89

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5 MARQUES DE MELO, José –A questão tecnológica, In: Comunicação e Modernidade, São Paulo, Loyola, 1991, p.32-44

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7 MARQUES DE MELO, José –Laboratórios de jornalismo, In: Comunicação e Modernidade, São Paulo, Loyola, 1991, p.32-44

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9 MARQUES DE MELO, José – Laboratórios de jornalismo: conceitos e preconceitos, In: Comunicação: Teoria e Política, São Paulo, Summus, 1985, p.128-139
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12 MARQUES DE MELO, José – Ciências da comunicação no Brasil, In: Teoria da Comunicação: paradigmas latino-americanos, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 145-182

13 MARQUES DE MELO, José – Impasses da pesquisa brasileira nos anos 90, In: Comunicação e Modernidade, São Paulo, Loyola, 1991, p.91-94

14 MARQUES DE MELO, José & COELHO SOBRINHO, José, orgs. – Formação dos jornalistas na universidade: desafios para a década de 90, Simpósios em Comunicações e Artes, 4, São Paulo, ECA-USP, 1990

15 KUNSCH, Waldemar – Dissertações e teses defendida no Póscom, Comunicação & Sociedade, n. 31, São Bernardo do Campo, UMESP, 1999, p. 294-295

16 MARQUES DE MELO, José – Pensamento comunicacional brasileiro: gênese, autonomia, reinvenção, In: Intercom – 25 anos, São Paulo, 2002, p. 71-74

17 MARQUES DE MELO, José- Pensamento comunicacional brasileiro: o desafio da renovação, In: História do Pensamento Comunicacional, São Paulo, Paulus, 2003, p. 239-245.

Fonte: ScienceNet, Ano VIII - nº 53 - Março de 2004.
<http://www.sciencenet.com.br>

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